“No ambiente on-line, ao contrário do que afirma Nietzsche, Deus certamente não está morto. A web está repleta de espaços sagrados e, no máximo, Ele (ou Ela ou Isso) foi libertado da doutrina tradicional para se tornar tudo para todos”, afirma o psicólogo e jornalista Aleks Krotoski.
O comentário é de Nathalie Béchet, mestra em Antropologia e Ciência de Dados e pesquisadora de antropologia digital. O artigo foi publicado por L’Atelier BNP Paribas, 14-10-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As religiões se adaptam; não são meros artefatos de um passado estranho. Hoje, elas estão profundamente enredadas com as tecnologias modernas.
Como uma europeia ocidental de uma capital urbana, aprendi a traçar uma linha entre a tradição e a modernidade... e, por extensão, a opor religiosidade e tecnologia. Essa distinção resiste a um exame minucioso?
Essas oposições, tradição/modernidade e religião/tecnologia, se parecem ao seu primo mais comumente discutido, “vida offline” versus “vida online”. As professoras Mia Lövheim e Heidi A. Campbell observam que “online” e “offline” não podem mais ser vistos como “campos de prática completamente distintos, pois, para muitos, eles são esferas integradas de interação”.
De fato, quando a capacidade de criar é dada às pessoas no ciberespaço, elas podem optar por incorporar elementos de prática religiosa. Tecnologia e religião estão interligadas... e, assim como todas as coisas em interação, impactam a evolução uma da outra.
Nos anos 2010, no mundo virtual Second Life, assistimos à (re)criação de catedrais, entre outros espaços de culto. Os jogadores tinham infinitas possibilidades de modificar e personalizar itens; eles facilitavam a habilidade de outros de comparecer a cerimônias e outros rituais.
Órgãos religiosos também criam e adaptam itens destinados a facilitar o culto em tempos digitais. Em 2019, a Igreja Católica lançou um “Click to Pray eRosary”, que “serve como uma ferramenta de ensino baseada na tecnologia para ajudar os jovens a rezarem o Rosário pela paz e a contemplarem o Evangelho” [veja o vídeo abaixo].
Assim como qualquer órgão tradicional adapta as estratégias de comunicação ao público moderno, os órgãos religiosos também se adaptam às novas normas. As ferramentas se adaptam na mesma moeda; a tecnologia às vezes é projetada especificamente para acomodar estilos de vida guiados pelas crenças.
O navegador Salamweb foi criado em 2019 para facilitar uma “navegação na web amigável aos muçulmanos” entre os seguidores do Islã. Ele pode notificar os usuários sobre o tempo de oração, indica o Qibla (a direção para Meca) e localiza as mesquitas próximas. Ele também afirma ser um serviço da web em conformidade com a Sharia, alertando os usuários quando há a probabilidade de encontrarem conteúdo pornográfico ou relacionado a jogos de azar.
Em 2005, dispositivos da Motorola foram criados para judeus ultraortodoxos. Eles ostentavam uma espécie de “certificado kosher”, já que o acesso à internet, assim como as mensagens e os vídeos, estava desativado. Campbell, especialista em religiões digitais, chamou o lançamento do telefone kosher de “um exemplo único do modo como uma comunidade religiosa pode redesenhar uma tecnologia para que seja compatível com os seus padrões de prática”.
Como os grupos religiosos conservadores, assim como aqueles que praticam o judaísmo ultraortodoxo, seguem regras culturais e ideológicas restritas, isso também ilustra o que está em jogo quando se tenta adaptar a tecnologia à religião ou vice-versa.
Essas adaptações específicas se baseiam nas práticas existentes, em vez de produzir novas. Se você não pode realizar a Umrah, a peregrinação islâmica anual a Meca, sempre foi tradicionalmente possível pedir a alguém para ir em seu nome. Hoje, alguém pode transmitir essa jornada ao vivo para você. Ahmed Alhaddad, fundador do iUmrah.World, um aplicativo que conecta os fiéis a pessoas substitutas dispostas a realizar essa tarefa, vê isso como uma adaptação contemporânea natural da necessidade mais recente.
Em uma semelhante “extensão dos espaços sagrados offline”, o Muro das Lamentações em Jerusalém é agora transmitido ao vivo [aqui], graças aos serviços prestados pela comunidade digital Aish HaTorah. Em certo momento, as pessoas podiam até tuitar orações, que eram impressas e colocadas “nas fendas da parede física”.
A cultura de gamificação da tecnologia também se infiltrou na religião, muitas vezes para tornar os ensinamentos mais acessíveis e divertidos. Follow JC Go! é um imitador de Pokémon Go criado por um grupo católico carismático, antes de um evento juvenil em 2019 [veja o vídeo abaixo].
Já o jogo Muslim 3D educa os peregrinos sobre os princípios do Hajj de uma forma divertida e acessível [veja o vídeo abaixo].
A gamificação também cultiva novos meios para fomentar a devoção espiritual. Em 2012, Andy Robertson, um jornalista de tecnologia e jogos com formação teológica, organizou na Catedral de Exeter um rito da comunhão guiado por jogos [veja o vídeo abaixo]. Enquanto os fiéis cantavam, eles podiam manipular um controle de Playstation para simular, na tela, o caminho de uma pétala de flor que girava ao vento sobre colinas luxuriantes.
Robertson acredita que os videogames, assim como qualquer arte, voltam-se para as emoções e o coração, criando espaço para o diálogo divino. Quando questionado sobre isso, o Rev. Stephen Santry explicou:
“Foi revolucionário entender que os desenvolvedores de jogos criam espaços ou mundos para as pessoas explorarem e descobrirem. Esse também é o âmbito de um padre. Ao facilitar atos de culto, eu crio um ambiente para que as pessoas se encontrem com Deus.”
A realidade virtual também entra em cena quando os fiéis não podem acessar o espaço sagrado. Esse se tornou um grande problema durante a pandemia da Covid-19, quando as pessoas não podiam mais se reunir nos locais de culto. Soluções como o Labbaik VR promove o seu Hajj virtual como uma alternativa viável para os peregrinos, assim como uma ferramenta educacional [veja o vídeo abaixo].
A tecnologia não permite apenas que as práticas clássicas atendam às necessidades modernas. À medida que as plataformas online se tornaram os meios preferidos para transmitir mensagens, elas capacitaram as autoridades intermediárias e as vozes “não especializadas” para promoverem suas próprias interpretações dos documentos sagrados.
Alguns exemplos incluem uma freira popular, a Ir. Bethany, no Twitter; um pastor que usa o TikTok para elogiar o chá Chai; mestres taoístas que usam sites para promover consultorias de Feng Shui; e mulheres rabinas feministas no Instagram.
Muitas dessas vozes podem soar para alguns como uma lufada de ar fresco. Mas, com mais freiras e monges se voltando para o Twitter ou o Facebook, as autoridades religiosas também entraram em cena para negociar valores tradicionais no pântano digital. O papa tentou abrir um precedente aqui: em 2018, o Vaticano publicou um documento [aqui, em espanhol] que exorta as freiras a usarem as redes sociais com “sobriedade e critério”, na esperança de que “não sejam ocasião para a distração e a evasão da vida fraterna”.
Essa multiplicação de vozes vai além das figuras de autoridade religiosa. Os fiéis, sejam novatos ou participantes de longa data, também se tornaram modders [“modificadores”, no jargão da informática] ativos das crenças.
Isso é especialmente perceptível quando as práticas contemporâneas invadem as práticas religiosas. O agora infame canal cristão Girl Defined, no YouTube, viralizou depois de postar vídeos como “As mulheres cristãs deveriam enviar nudes?” e “As mulheres cristãs deveriam usar o TikTok?”.
Mas essas discussões informais por figuras não autorizadas parecem palatáveis para os espectadores que lutam para encontrar respostas para perguntas imediatas sensíveis. Não é nenhuma surpresa, então, que os menonitas e os amish tenham virado tendência no TikTok, e que as mães blogueiras mórmons estejam decolando: ao contrário das freiras ou dos monges, trata-se de pessoas tentando viver uma vida normal, equilibrando modernidade e tecnologia com estilos de vida ascéticos.
Esses movimentos encarnam o modo como as religiões mudam e modelam novas formas de praticar a crença na vida. Eles fazem isso abordando possíveis conflitos ideológicos entre crença e tecnologia ou ainda fomentando técnicas que as unem harmoniosamente. O interesse renovado pela bruxaria moderna e, por extensão, pelo paganismo é um exemplo não desprezível disso.
As práticas modernas e ocidentais de bruxaria já estavam na moda nos anos 1970, em parte graças ao movimento Nova Era. Mas as redes sociais digitais são um terreno fértil para o seu crescimento de novo. As bruxas tiktokers, associadas à hashtag #witchtok, tiveram 19,6 bilhões de visualizações em outubro de 2021. As bruxas também proliferam no Instagram, com contas como “Witches of Insta” ou “The Witch of the Forest”, que, somadas, têm mais de 950.000 seguidores.
Alguns atribuem essa popularidade à estética e aos acessórios comercializáveis da bruxaria moderna (pedras, frascos de poções, velas). Outros acham que ela chegou na hora certa. Um artigo publicado no Quartz, “A bruxaria é a religião perfeita para os millenials liberais”, argumenta que a natureza modular da bruxaria e o seu relativo anti-institucionalismo a tornam uma válvula de escape espiritual perfeita para jovens progressistas que cada vez mais se definem como ateus.
O retorno da bruxaria também pode sinalizar outro fenômeno atual – a individualização e a especialização das práticas religiosas, impulsionadas pelas redes sociais digitais.
Em conversa com o L’Atelier, Campbell explicou: “O que estamos vendo é muito mais diversificação e especialização online. É uma forma de tribalismo (...). As pessoas estão procurando conexões e grupos altamente especializados, como quando alguém diz: ‘Eu sou batista do Sul, mas acredito na igualdade de gênero e nos direitos dos homossexuais. Então, vou encontrar o meu subgrupo’. Permite-se muito mais diversificação e especialização do que um terreno comum”.
Isso nos leva de volta às rabinas do Instagram, que defendem um judaísmo feminista. A internet generalizou práticas no sentido de “encontrar alguém como você” e de “moldar da forma como quiser” ao longo de décadas; a religião também não está isenta.
Campbell sugere que os recursos da internet – serviços ao vivo, aplicativos, textos sagrados prontamente disponíveis – podem inspirar abordagens mais pessoais à religião. Questionada se a prática individualizada é o futuro da religião, ela respondeu: “Acho que sim. Essa é uma tendência mais ampla na cultura digital. Os estudiosos chamam isso de ‘individualismo conectado’. Porque, nas comunidades tradicionais, as relações se baseiam nas conexões com a instituição, a família, a geografia, que é o que define quem faz parte das comunidades e quem não faz”.
Por outro lado, “no mundo digital, eu escolho a minha comunidade, eu crio essas conexões, eu decido o quanto quero investir nelas: estou muito mais empoderada”.
A natureza individual da construção de uma comunidade é agora um pressuposto com o qual as pessoas, especialmente as mais jovens, costumam acessar a internet, observa Campbell. “A comunidade não é mais algo que eu assumo; é algo que eu crio”.
Não é de se admirar que o tecnopaganismo seja tão atraente. Ele fala a uma sociedade em que os indivíduos fazem parte de uma comunidade personalizada, uma “rede de egos” que a internet amplifica. É improvável que isso mude, sugere Campbell. “A cultura digital sempre vai empurrar as pessoas para o individualismo.”
A internet e as mídias sociais abriram as portas para mais personalização e hibridização, mas não parecem ter transformado a nossa abordagem à mística. As religiões foram mudadas pela tecnologia? Fundamentalmente, não... mas certas camadas, sim.
“Como pesquisadora, descobri que a internet não fez nada que já não estivesse em vigor antes”, disse Campbell com uma risada. “Não há nada completamente novo debaixo do sol. Acho que os padrões são sempre os mesmos, mas a aparência e a forma como se manifestam são diferentes. Nós, humanos, queremos cultura, queremos comunidade, queremos rituais, queremos limites. Portanto, sempre navegamos rumo a essas coisas, mesmo que tenham uma aparência diferente.”
É improvável que a humanidade deixe de precisar pertencer ou de dar sentido ao mundo e à humanidade. As mudanças são canais pelos quais interagimos com outros fiéis e modders de fé.
Campbell diz que a internet e a tecnologia eram antes apenas suplementos para as práticas religiosas, não substitutos... mas isso está mudando drasticamente. Os espaços online se tornaram um ponto de partida para a maioria das pessoas: elas primeiro se encontram e partilham online, e somente depois, eventualmente, se encontram offline. Toda uma experiência religiosa, da iniciação à realização de cerimônias complexas, pode ocorrer agora de forma completa pelo celular ou pelo computador.
“Essa é a única coisa que eu acho realmente nova. Será interessante ver o que vai surgir a partir disso na próxima década ou duas, como será a orientação online-offline”, diz Campbell.
Uma ideia comum continua sendo a de que a tecnologia subverte a necessidade da religião. Mas, considerando o número de seguidores que as contas religiosas reúnem nas mídias sociais e o grau no qual a religião permanece central em muitas conversas online, parece que a tecnologia e a religião simplesmente põem à prova as habilidades de adaptação uma da outra.
Observe-as desenvolverem uma variedade de formas e cores nos próximos anos e aproveite o espetáculo.