28 Novembro 2019
A Faculdade Teológica da Itália central, sediada na capital da Toscana, sediou em 23 de novembro o encontro “Humildade, desinteresse, bem-aventurança. Releitura da Convenção Eclesial de Florença", uma conferência realizada há quatro anos e durante a qual, em 10 de novembro de 2015, Francisco interveio com um discurso fundamental.
A reportagem é publicada por L'Osservatore Romano, 26 e 27-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nele, o Papa falou entre outras coisas de "humildade, desinteresse, bem-aventurança", apresentando-as como três características a serem levadas em consideração para uma meditação exaustiva sobre o novo humanismo cristão (tema do encontro): "Essas características também dizem algo à Igreja Italiana que hoje se reúne para caminhar juntos em um exemplo de sinodalidade. Eles nos dizem - ele sublinhou - que não devemos ficar obcecados pelo ‘poder’, mesmo quando isso assume a forma de um poder útil e funcional à imagem social da Igreja".
Aberto pelas saudações do presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Gualtiero Bassetti, o encontro contou com a palestra do padre jesuíta Christoph Theobald, professor de teologia fundamental e dogmática no Centre Sèvres, de Paris, no centro do debate. Publicamos trechos de sua apresentação intitulada “Cristianismo como estilo. Por um novo humanismo”.
Em seu encontro com os participantes da quinta Conferência Nacional da Igreja Italiana, há quatro anos, na catedral de Santa Maria del Fiore, o Papa Francisco evocou um novo humanismo, que ele já auspiciado diante do Conselho da Europa no ano anterior. O primeiro humanismo, que gerou o antropocentrismo ocidental, provavelmente precisa ser revisado. Mesmo conservando sempre viva a memória dos valores que gerou e de suas institucionalizações políticas - direitos humanos, liberdade, igualdade e fraternidade, bem como nossas constituições democráticas -, devemos nos perguntar também sobre as terríveis perversões que ocorreram em sua área de influência e sobre a crescente incapacidade de nossas sociedades europeias de resolvê-las.
No contexto dessa paralisia, há uma verdadeira "mudança de época" - "não uma época de mudança, mas uma mudança de época", é lido no discurso do papa - mudança que não parou diante das portas da Igreja e que manifesta hoje em uma crise sistêmica desta última: a criminalidade ligada à pedofilia está, sem dúvida, em primeiro plano, mas as mudanças nas modalidades de pertencimento à Igreja, ou mais ainda, os distanciamentos em relação a ela são muito anteriores, sem falar das dificuldades da comunidade cristã para fazer ressoar o evangelho, para que possa alcançar o coração das pessoas. Disso decorre o convite constante do Santo Padre para uma reforma da Igreja a partir do "centro da fé", o kèrigma ou o Evangelho, como diz nesse mesmo discurso; uma reforma que corresponda à "mudança de época" a que estamos assistindo e que leve à invenção de um novo estilo de vida cristão no mundo contemporâneo e de uma nova maneira de estar presente nele; estilo ou maneira dos quais o fundamento e o efeito poderão ser sentidos por nossos contemporâneos como um novo humanismo.
Vamos lembrar a estrutura triangular que emerge dos diferentes polos que acabamos de evocar e que, devido à sua articulação mais ou menos apropriada, conferem à tradição cristã sua mobilidade interior e a abrem à criatividade humana: o Evangelho de Deus, como se encarna no itinerário de Cristo Jesus, o Ecce homo; os seus destinatários, ou seja, o contexto em que deve ser anunciado, que são as nossas “Galileias” de hoje; e a Igreja que o anuncia, povo de Deus duplamente "descentralizado" e, portanto, por um lado, na escuta do Evangelho e, pelo outro, pronto para captar as aspirações e ansiedades expressas em nossas sociedades. Precisamos partir dessas últimas para ver nelas os "sinais dos tempos", para podermos nos questionar sobre Evangelho de Deus e sobre a maneira eclesial de torná-lo "presente", de torná-lo presente em nossas culturas contemporâneas, precisamente na forma de um novo humanismo.
São a autenticidade ou concordância consigo mesmo, a hospitalidade ou a empatia com o outro, e a liberdade com relação à morte ou doação de si mesmo que caracterizam a "santidade" de Jesus Cristo, seu "estilo" único. Aqueles que entram nesse espaço de hospitalidade do Nazareno e se referem livremente a ele como o "Santo de Deus" são chamados a adotar seu modo de "estilização". Eles não deixarão de confessar sua incapacidade de seguir seu ímpeto incondicional até o fim, a reconhecer ao mesmo tempo a santidade única de Deus e de seu Unigênito. No entanto, seu senso estilístico também revela a eles que a "desmedida" oculta na existência de Jesus Cristo é - efeito de sua graça - "na medida" de inúmeras medidas, de modo que cada um de nós se torna, por isso mesmo, "incomparável".
Teremos compreendido o profundo enraizamento desse estilo em nossa humanidade, que inevitavelmente enfrenta a distinção entre "a minha casa" ou "em nossa casa" (o espaço de intimidade em que todos precisamos viver) e um "outro lugar" que é outro (o espaço dos outros, a "sua casa" ou "na casa deles"). O que pressupõe fronteiras e barreiras de todos os tipos levanta a questão: como atravessá-las? E sugere o êxito da hospitalidade.
Falar em santidade hospitaleira ou hospitalidade santa, portanto, revela o lado humanístico do Evangelho de Deus, esses "lugares" em nossas sociedades e em nosso planeta onde, nas nossas éticas humanas e nas nossas condições muitas vezes difíceis, pode emergir o que faz parte de uma gratuidade incondicional e de uma liberdade propriamente teologal. Assim, encontramos os três "sentimentos" evocados pelo Papa Francisco, no início de seu discurso em Florença, para apresentar certas características desse novo humanismo cristão: a humildade, o desinteresse e a bem-aventurança. Os dois primeiros se referem à exortação que, no apóstolo Paulo, precede o hino cristológico da Carta aos Filipenses; o hino do périplo de Cristo Jesus, que o Papa introduz desde o início para orientar o comportamento dos cristãos, convidando-os a contemplar seu rosto: que "esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Filipenses 2, 7). Essas são "atitudes" relacionais ou hospitaleiras: " Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade - conhecemos bem esses impulsos profundos - mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos”, algo que está na base do gesto hospitaleiro. "Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros”, isso representa sua condição elementar (ib. 2, 3-5).
Humildade e saída do narcisismo autorreferencial, essas duas características da santidade hospitaleira são por fim coroadas por um terceiro sentimento, bem-aventurança: isto é, uma felicidade adquirida em um caminho marcado pelas "bem-aventuranças", mas recompensada pela alegria, como aquela, eu acrescentaria que nasce quando Zaqueu acolhe Jesus em sua casa. O Papa Francisco explicitou esses traços do humanismo cristão em sua exortação apostólica Gaudete et exsultate (cf. Mateus 5,12), na qual encontramos não apenas as duas grandes tentações que ameaçam o estilo cristão, o pelagianismo e o gnosticismo, mas também um longo comentário sobre as bem-aventuranças. Já em seu discurso florentino, fala da "parte mais humilde do nosso povo", na qual "há muito dessa bem-aventurança: é aquela de quem conhece a riqueza da solidariedade, do compartilhar até o pouco que se possui"; poderíamos acrescentar a bem-aventurança que surge de nossas experiências de hospitalidade, particularmente frequentes nos ambientes populares. Gaudete et exsultate prolonga esse interesse pelo que acontece na penumbra de toda vida cotidiana, falando dos "santos da porta ao lado".
Poder-se-ia pensar que essas três "atitudes" dizem respeito apenas à comunidade cristã; isso é o que parece se aplicar à Carta aos Filipenses. Em seu discurso em Florença, no entanto, o Papa Francisco disse explicitamente: "Uma igreja que apresenta esses três traços - humildade, desinteresse, bem-aventurança - é uma igreja que sabe reconhecer a ação do Senhor no mundo, na cultura, na vida cotidiana das pessoas.”. Aqui, abordamos um aspecto fundamental do ensino pontifício, que não apenas milita a favor de um "humanismo cristão", mas já vê o nascimento, em nossas sociedades, de um "novo humanismo", ou, para dizer as coisas de forma diferente, não se satisfaz com uma Igreja que oferece hospitalidade a todos, mas a convida também a tornar o Evangelho de Deus "presente" no meio da cultura, tornando-se a si mesma "presente" nela e pedindo hospitalidade.
Um novo humanismo como um impulso íntimo de nossa cultura não é criado de repente e por pura vontade. O Evangelho nunca pode se tornar presente como um "arranjo": seria acrescentar violência à violência que já atravessa nossas culturas e que produz ilhas ideológicas de tensão, diante da crise de confiança que vivem os indivíduos e a inteira sociedade. A maneira de Cristo Jesus na Galileia é, antes, a oferta gratuita de uma hospitalidade diária e, mais ainda, o humilde e desinteressado pedido de hospitalidade, confiando no fato de que a confiança gera confiança e libera as forças criativas do cara-a-cara, sinal discreto da presença do Espírito.
Muitos campos de nossa vida cotidiana e da cultura contemporânea podem, assim, ser irrigados pela "presença" do Evangelho. Um primeiro terreno são os nossos espaços de socialização humana; um segundo, o nexo inextricável entre nossa falta de hospitalidade em relação aos excluídos e a recusa de hospitalidade que silenciosamente continua a nos oferecer a nossa Terra. Uma "presença" gratuita de cristãos entre seus concidadãos pode ter um grande impacto no clima global da sociedade e restaurar a confiança. Mas devemos ter em mente que a confiança é gerada em grupos relativamente reduzidos, que é chamada a amadurecer no encontro com o outro e, graças à possibilidade de exercer a sua razão crítica nas trocas, nos debates, por mais duros que sejam e na deliberação comum. Nenhuma palavra eclesial, deixada cair "do alto", pode despertar essa confiança.
Como no plano individual, a confiança é gerada ao mesmo tempo de fora e de dentro dos corpos sociais e de suas instituições. Disso decorre a necessidade de uma presença hospitaleira de "discípulos missionários" em suas famílias, nas escolas e institutos de formação, na vida associativa e política. Eles estarão no mesmo nível de todos os pais, educadores, atores sociais e políticos: será sua credibilidade a ganhar a convicção e, provavelmente, a sua alegria, por não terem sido coroados um dia pelo sucesso, mas de ver as nossas sociedades e instituições reencontrar confiança em si mesmas e em sua capacidade de enfrentar coletivamente um futuro incerto.
Se os cristãos podem ter alguma liderança na nova cultura nascente, é no âmbito dessa descoberta eminentemente espiritual: oferecendo hospitalidade a todos e cada um, pedindo-a na sociedade, em vez de se comportar nela como em uma terra conquistada e, acima de tudo, dando acesso à experiência de uma hospitalidade que nos precede e à qual devemos a vida, isto é, aquela da Terra. Conscientizar-se de que a Terra é doada às gerações que atualmente a habitam, àquelas que nos precederam e àquelas que ainda não nasceram é consentir uma verdadeira metamorfose, uma maneira de se aproximar do mistério da Ressurreição, se não mesmo de "Deus" como Ressurreição. A confiança assume então os traços de esperança, daquela "esperança contra toda esperança" que se manifesta na capacidade ou força de doar gratuitamente o que herdamos gratuitamente.
A mudança de época que ocorre diante de nossos olhos obriga a nos questionar novamente sobre a identidade de nossa fé. Expressá-la em termos de estilo é uma maneira de levar a sério o que o Vaticano II foi capaz de dizer sobre a "presença" pastoral e missionária dos cristãos na sociedade. Se, na época do concílio, ainda se falava de humanismo cristão, a aposta em jogo atual é tornar mais amplamente acessível um novo humanismo, humanismo não apenas atento à singularidade dos itinerários humanos, mas também à convivência em nossas sociedades e no futuro da vida humana em nosso planeta, sendo a oferta e a demanda por hospitalidade o que liga esses três âmbitos: “Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber alguns acolheram anjos." (Hebreus13: 2).
Parece-me que, no exercício desse ministério, a Igreja tem um recurso notável que deve, enfim, colocar de volta no centro de nossa assembleia, sem esquecer o que foi dito sobre o cristianismo como estilo: a Bíblia, ao mesmo tempo clássico da cultura europeia, que permite decodificar o nosso patrimônio, e sagradas Escrituras que guardam a Palavra de Deus, para quem tem ouvidos para ouvir. Em virtude de ambos os aspectos, ela pode reunir cristãos, aqueles que estão à sua própria maneira e muitos outros, permitindo que todos entrem em uma escola da humanidade da qual poderá nascer, estou convencido, um novo humanismo europeu.
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O humanismo da hospitalidade. Por um novo estilo de vida cristão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU