01 Outubro 2021
O discurso do Papa Francisco aos fiéis da Diocese de Roma coloca novamente no centro o que há de claro e o que precisa ser esclarecido no processo sinodal incipiente.
A opinião é de Sergio Ventura, jurista italiano, em artigo publicado em Vino Nuovo, 29-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao chegar à metade do discurso que dirigiu aos fiéis da Diocese de Roma, o Papa Francisco parou por um momento para recuperar o fôlego e beber um gole de água. Depois disse: “Desculpem-me pelo discurso longo, mas o Sínodo é uma coisa séria, e por isso me permiti falar”.
Seguiu-se um aplauso estrondoso: apesar de já se terem passado 20 minutos e de ainda terem que passar outros tantos antes da conclusão; apesar de o papa já lhes ter dado um “puxão de orelhas”, seguido também de um aplauso estrondoso, com a pergunta: “Seria um ‘papelão’ para o papa e também para vocês se a diocese do papa não se empenhasse nisso, não?”.
Um discurso longo, mas denso, em certo sentido recapitulativo, que não por acaso o Papa Francisco considerou central na sua visão do processo sinodal, quando, há poucos dias, também discutiu esse assunto com o Conselho dos Cardeais.
Por isso, ele merece ser retomado e focado nos seus pontos fundamentais, que me parecem confirmar aquilo que já foi levantado como hipótese anteriormente – aquilo que já está claro e que precisa ser esclarecido – a respeito do documento preparatório do Sínodo e do que o Sínodo deveria ser, segundo Francisco.
No discurso romano, reitera-se, acima de tudo, a necessidade absoluta e prioritária de o Sínodo ativar “um dinamismo de escuta recíproca”, um “interescutar-se” – segundo uma das já costumeiras imagens inesperadas, mas extremamente eficazes cunhadas por Francisco. Prestando atenção para que isso ocorra “sem querer impor as nossas coisas”. Porque todos sabemos bem, espero, o que significa – e quanto é difícil – escutar-se de verdade e não se limitar a ouvir os outros (EG 171): uma questão já evocada por Simon & Garfunkel, há quase 50 anos, quando cantavam um críptico “hearing without listening”...
Nessa “interescutar-se”, além disso, “todos são protagonistas, ninguém pode ser considerado um simples figurante. É preciso entender bem isso”, afirmou Francisco decisivamente, ganhando outro aplauso estrondoso: como se muitos desses “todos” se sentissem tratados como “figurantes” pelos seus pastores.
E, talvez tomado pela dúvida de não ter sido suficientemente claro, ele também levantou, de improviso, uma pergunta retórica, mas decididamente afiada (sobretudo se ouvida ao vivo, a partir de 1:10:00 no vídeo abaixo): “‘Mas, padre, o que está dizendo? Os pobres, os mendigos, os jovens toxicodependentes, todos esses que a sociedade descarta, fazem parte do Sínodo?’ Sim, meu caro, sim, minha cara: não sou eu quem digo, quem o diz é o Senhor: eles fazem parte da Igreja. A tal ponto que, se você não os chamar, eles verão como fazer isso, ou, se você não for ao encontro deles para ficar um pouco com eles, para sentir não o que eles dizem, mas o que eles sentem, até os insultos que lhe proferem, você não está fazendo bem o Sínodo. O Sínodo é até o limite, inclui a todos”.
Por outro lado, como já havíamos assinalado aqui [em italiano], essa abertura total ou melhor, infinita encontra o seu fundamento e normatividade na Escritura (retomada também pelo já citado Doutor da Igreja São João Crisóstomo): “Quantas vezes os ‘descartes’ se tornaram ‘pedra angular’ (cf. Sl 118,22; Mt 21,42), os ‘distantes’ se tornaram ‘próximos’ (Ef 2,13). Os marginalizados, os pobres, os sem esperança foram eleitos como sacramento de Cristo (cf. Mt 25,31-46)”.
Mas, para fazer isso, de novo, “é preciso sair dos 3-4% que representam os mais próximos e ir além para escutar os outros, os quais às vezes vão lhes insultam, vão lhes expulsar, mas é preciso ouvir o que pensam”. Sem medo, sem temer que “o debate entre visões e expectativas diferentes” possa desembocar em “confrontos que atingem picos dramáticos”, mas prosseguindo com “a makrothymía de Deus, isto é, aquela paciência do olhar que se alimenta de visões profundas, visões amplas, visões longas: Deus vê longe, Deus não tem pressa”.
Essa escuta, que eu definiria antropológica, tem – e pode ser o meio de – um fim teológico ou, melhor, pneuma-teo-lógico: “Deixar que o Espírito nos fale”, “escutar o Espírito Santo” (Ap 2,7) – que é “o diretor desta história” – mas também “discutir com o Espírito Santo, que é uma forma de rezar”; “ouvir a voz de Deus, captar a sua presença, interceptar a sua passagem e o seu sopro de vida” – aquela “brisa leve”, “voz sutil de silêncio”, “fio de silêncio sonoro” de que fala 1Rs 19,11-13.
De fato, há algo mais, novo, diferente, que ad-vém em nós, mas não vem de nós, do nosso eu e que é difícil de captar em meio ao barulho das nossas discussões e das nossas tagarelices para não discutir: por isso, recorda Francisco fortemente (recebendo mais um aplauso estrondoso), o Espírito Santo “nos pede que limpemos os nossos ouvidos para ouvir bem”, e nós certamente “devemos preparar os nossos ouvidos” para esse advento.
Porque “Deus é sempre um Deus das surpresas”, a partir da de Pentecostes – em que o fato de serem estrangeiros uns em relação aos outros não impediu, graças ao Espírito, que eles se compreendessem (At 2,8) – até à surpresa, deliciosa, narrado em Números 22 – na qual “até mesmo uma jumenta pode se tornar a voz de Deus, abrir os nossos olhos e converter as nossas direções equivocadas”.
E, mesmo que seja um off topic, não posso deixar de aproveitar a oportunidade para relembrar o modo extraordinário que o saudoso Paolo De Benedetti narrava, recitava, tornava vivo o dissídio entre a jumenta anônima e o adivinho Balaão que a montava...
Voltando a nós, Francisco evidencia – com razão – o fato de que, para “suportar” essa modalidade de agir do Espírito, é necessária “uma contínua inquietação interior”: “Se um cristão não sente essa inquietação interior, se não a vive, alguma coisa lhe falta”, porque é ela que continuamente “nos convida a avaliar o que é melhor fazer, o que deve ser mantido ou mudado” nas tradições para fazer com que resplandeça melhor a Tradição.
Esta última, segundo o que duas imagens usadas pelo Papa Francisco nos convidam a recordar, é como “uma massa fermentada, uma realidade em fermento na qual podemos reconhecer o crescimento”, é como a “água” e, “se a água não flui e é rançosa, é a primeira a entrar em putrefação”.
Por isso, “a fidelidade à Tradição não consiste em adorar as cinzas da Igreja, isto é, da associação de vocês, do grupo de vocês, mas em conservar o fogo do Espírito”: “Não se pode conservar o ‘depósito da fé’ sem fazê-lo progredir: ‘Consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade’ (São Vicente de Lérins).
Com todo o respeito pelos tradicionalistas e pelos progressistas, portanto, segundo Jesus e Paulo, é o Espírito que, no tempo das tradições, deverá recordar (Jo 14,25), ampliar (Jo 16,13) e aprofundar (1Cor 2,10) a Tradição da verdade do Deus de Jesus Cristo.
Pois bem, o que foi evidenciado aqui é aquilo que, na nossa opinião, já está claro que – do ponto de vista de Francisco – deve caracterizar o processo sinodal. Outra parte do discurso, por sua vez, diz respeito àquilo que acreditamos que ainda precisa ser esclarecido – o que tentaremos fazer em uma segunda parte da análise.
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O Sínodo é coisa séria! Artigo de Sergio Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU