28 Setembro 2021
Pecuária é uma das principais atividades responsáveis por casos de trabalho análogo à escravidão; associações de exportadores de carne e de frigoríficos coordenam a atuação do Instituto Pensar Agro sobre o tema.
A reportagem é de Leonardo Fuhrmann, publicado por O Joio e O Trigo, 27-09-2021.
A redução dos direitos trabalhistas e a redução dos casos em que é possível enquadrar violações como situação análoga ao trabalho escravo é uma das prioridades dos ruralistas no Congresso. Dentre eles, um setor mostra especial predileção pelo tema: a cadeia da carne. Tanto é que as associações dos exportadores de carne e dos frigoríficos estão na coordenação da comissão que trata de assuntos trabalhistas do Instituto Pensar Agro (IPA), entidade formada por associações patronais ligadas ao agronegócio que atua em simbiose com a Frente Parlamentar da Agropecuária.
Neste especial, O Joio e O Trigo está mostrando como as associações do agronegócio atuam para pressionar o Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros a tomarem decisões que as beneficiem. O trabalho tem como base um organograma das metas temáticas do IPA/FPA organizadas por temas e onde cada um deles tramita: Câmara, Senado, Executivo e Judiciário. Apresenta também quem são os políticos com mandato e os representantes de associações e assessores técnicos do instituto responsáveis por tratar de cada pacote de demandas.
A série trata das prioridades, mostra como os parlamentares e integrantes das associações trabalham nos bastidores do Congresso para conseguir avançar com suas demandas e as relações de representantes das associações e técnicos do instituto com o poder público e empresas privadas: a chamada “porta giratória” de profissionais que passam por associações, empresas e por cargos na administração pública.
As reportagens mostram ainda a relação entre alguns setores com temas específicos. As associações são formadas por empresas e produtores rurais, que pagam para manter suas atividades. Da mesma forma, são as associações que financiam o funcionamento do IPA.
Criado em 2011, o instituto apresenta sua atividade como “defender os interesses da agricultura e prestar assessoria à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) por meio do acordo de cooperação técnica” e se coloca como “interlocutor entre as entidades da cadeia produtiva rural e os parlamentares que estão envolvidos na causa”.
A coordenação da comissão que trata de direitos trabalhistas está sob responsabilidade de Antônio Camardelli, da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne). Segundo a entidade, fazem parte dela “39 empresas do setor no país, responsáveis por 97% da carne negociada para mercados internacionais”. Atual presidente, Camardelli foi diretor de estratégia empresarial do frigorífico JBS e diretor-executivo da Abiec no período entre 2003 e 2008, quando o presidente da entidade era o ex-ministro Pratini de Moraes.
Seu suplente na coordenação é Paulo Mustefaga, da Abrafrigo (Associação Brasileira de Frigoríficos). A entidade reúne frigoríficos e associações regionais ligadas à atividade. Economista, Mustefaga se apresenta como consultor em gestão econômica, especialista em relações governamentais e gestão tributária. Com experiência de mais de 22 anos no mercado da pecuária de corte e da bovinocultura, ele foi diretor de relações institucionais em Brasília antes de assumir a presidência da entidade e “participou, como representante do setor privado, de missões de negociações e abertura de mercado para o setor agropecuário brasileiro à União Europeia, EUA e Ásia”.
O técnico do IPA que atua junto com eles é o advogado Cristiano Zaranza, coordenador da Comissão Nacional de Relações do Trabalho da CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária). A coordenação política do grupo é do deputado Zé Rocha (PR-BA), que é produtor rural.
Assim como outras comissões da FPA, como a de “Direito à Propriedade e Minorias”, eles colocam como prioridade o desarquivamento do PLS 432/2013, que trata da “expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravo”. O principal ponto de interesse deles no projeto, do Senado, é garantir que “o mero descumprimento da legislação trabalhista não caracteriza trabalho escravo”, ou seja, diminuir as possibilidades de enquadramento atual do trabalho análogo à escravidão.
Outra prioridade no Senado é o desarquivamento do PL 149/2014, que altera a CLT para estabelecer que “a fiscalização deverá observar o critério de dupla visita, salvo se, nos dois anos anteriores à verificação da infração, o empregador já tenha recebido orientação oficial sobre o cumprimento das leis de proteção ao trabalho”. Assim, os envolvidos em irregularidades trabalhistas só poderiam ser punidos depois de serem flagrados pela segunda vez.
O trabalho escravo é tema de mais um projeto tido pela comissão como prioritário no Senado, o PL 5970/2019. A proposta regulamenta a expropriação de propriedades urbanas e rurais em que for constatada a exploração de trabalho escravo. Apesar de tratar do mesmo tema do primeiro projeto, que está arquivado, a proposta se diferencia por não reduzir as possibilidades de enquadramento em “trabalho escravo”. Por isso, a comissão fala em “acompanhar o projeto” e “ver possível apensação”. O apensamento de outra proposta é usado muitas vezes para descaracterizar o original. A proposta está na Comissão de Direitos Humanos, com relatoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES). Apesar de ser signatário da FPA, ele não é considerado parte do núcleo mais afinado com a direção da frente.
Na Câmara, uma das prioridades é a aprovação do PL 9623/2018, que “acaba com a permissão dada à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para averbar a certidão de dívida de pessoa física ou pessoa jurídica nos órgãos de registro de bens”. Com dois outros projetos semelhantes apensados, a proposta é apresentada pelos ruralistas como uma forma de limitar os “superpoderes do Ministério Público”.
A comissão do IPA também indica a necessidade de proposição de um novo texto de reforma trabalhista rural, com a escolha de quem será o parlamentar responsável por sua apresentação. Originalmente, o assunto era tratado no PL 6442/2016, de autoria do então deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), hoje presidente do instituto. O projeto foi alvo de críticas por prever a possibilidade de o trabalhador rural ser remunerado com casa e comida. Atualmente, uma situação assim seria caracterizada como trabalho escravo.
Na época, a direção da FPA trabalhou pela aprovação do texto, sob os argumentos de que a “legislação trabalhista arcaica (…) não se adequa à realidade do campo”, essas leis são feitas “com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos e costumes e, de forma geral, a cultura do campo” e normas “subjetivas, dependentes das interpretações dadas pelos Auditores Fiscais do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho em determinados casos, o que põe o produtor rural em situação de insegurança jurídica”. Para eles, a Constituição de 1988 teria trazido a “indiscriminada extensão da legislação trabalhista urbana ao contrato rural”.
Os coordenadores também falam em acompanhar o andamento do projeto 3097/2020, sobre contratos de parceria agrícola. A proposta tem posição favorável da assessoria técnica da FPA. As Pastorais Sociais do Campo, da Igreja Católica, se manifestaram contra o projeto, por considerar que “privilegia os interesses empresariais nas parcerias agrícolas, agropecuárias e extrativas, e representa grave ameaça à política pública de erradicação do trabalho escravo”. Eles também colocam entre as prioridades o monitoramento de “orientações relacionadas ao nexo casual entre o trabalho e a COVID-19”.
A preocupação obsessiva da pecuária em descaracterizar o trabalho escravo tem relação direta com a realidade, como mostra o relatório “Trabalho escravo na indústria da carne”, divulgado em janeiro deste ano pela Repórter Brasil. O documento mostra, de acordo com “dados do Governo Federal sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra, mais de metade dos casos de trabalho escravo flagrados no Brasil entre 1995 e 2020 aconteceram no setor da pecuária”.
Os 1950 casos relacionados ao setor representam 51% do total. Também é a atividade da qual mais trabalhadores foram resgatados. “Foram 31% dos libertados, somando um total de 17.253 resgatados”, afirma. O trabalho mostra como fazendeiros flagrados na exploração de trabalho escravo continuavam como fornecedores para os grandes frigoríficos, inclusive pelos responsáveis pelas exportações brasileiras.
As más condições de trabalho no setor não se restringem ao trabalho escravo no meio rural. O Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho de 2019 aponta quase 23 mil ocorrências nas linhas de abates de frangos, bovinos e suínos no ano, uma média de 62 registros por dia. Como mostra outra reportagem da Repórter Brasil, o setor está entre os dez com maior número de solicitações de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, entre 2012 e 2018. Foram 31 mil benefícios concedidos por problemas de saúde comprovadamente ligados ao ambiente de trabalho no período. O trabalho em baixas temperaturas, o esforço repetitivo e o uso constante de facas e serras estão entre as causas dos problemas.
A preocupação com o monitoramento de ações relacionadas à pandemia de Covid-19 também tem relação direta com o que aconteceu no setor. No ano passado, os frigoríficos foram apontados como um foco importante da aceleração da pandemia no interior do país.
O fato de serem ambientes fechados, com funcionários trabalhando próximos na linha de produção, facilitam naturalmente a proliferação do vírus. A falta de políticas de testagem, de equipamentos de proteção e de afastamento de pessoas que conviveram com casos positivos podem ter elevado os casos. Para complicar ainda mais, o ambiente refrigerado pode provocar ressecamento das vias aéreas e facilitar infecções.
A Abrafrigo foi procurada pela reportagem, mas informou, por meio de sua assessoria, que no momento não poderia atender à solicitação. A Abiec também foi procurada, mas não respondeu ao pedido. A associação afirma que deixou a coordenação da comissão sobre temas trabalhistas do IPA, que passou a ser exercida pela Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).
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Indústria da carne comanda ações de ruralistas para dificultar punições a trabalho escravo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU