22 Setembro 2021
"Os textos devem ser lidos em seu contexto, aquele do judaísmo vivo, articulado e até polêmico do primeiro século de nossa era e de suas apaixonadas discussões. Com o passar do tempo, cada vez mais os Evangelhos foram lidos sem consciência de seu contexto e, então, por um determinado Cristianismo que se difundia e por fim se afirmava como religião majoritária, em bloco contrapostos com a alteridade judaica permanente e viva que tanto o inquietava. A consciência desta história e das consequências nefastas de seus discursos sempre deve estar presente, mesmo - aliás, muito mais – quando se escreve um sermão ou se elabora uma obra de divulgação", escreve Daniele Garrone, professor de Antigo Testamento na Faculdade Valdense de Teologia, em Roma, em artigo publicado por Riforma, Semanal de Igrejas Evangélicas Batista Metodista e Valdense, 24-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O teste do perfil, da consistência e da resistência das posições de autocrítica e de revisão que a maioria das igrejas cristãs têm assumido sobre o Judaísmo a partir do segundo pós-guerra e que formularam em importantes documentos doutrinários é a cotidianidade do discurso cristão. Em outras palavras, é na catequese, na pregação e nas intervenções destinadas ao grande público que podemos ver se e como o discurso mudou em relação a séculos e séculos de visões polêmicas. O desafio não é pequeno e as apostas são altas: como durante séculos alguns preconceitos fizeram parte da cultura e do imaginário do "cristão comum", agora as novas perspectivas, aquelas da superação do antijudaísmo tradicional, deveriam se enraizar não apenas entre os especialistas na área ou entre aqueles que têm um interesse particular pelo Judaísmo e por Israel, mas entre todos os cristãos, enraizando-se no centro do seu "discurso" e tornando-se consciência comum.
No entanto, o "velho" continua a reaparecer, talvez até de forma irrefletida. Um caso recente despertou justificadas reações do lado judeu.
Trata-se do artigo escrito por Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica, o reconhecido quinzenal dos jesuítas, no Il Fatto Quotidiano de 29 de agosto passado. O artigo é acessível online e é bom lê-lo. É um breve comentário sobre Marcos 7, 1-23, uma das passagens em que Jesus parece discutir ou polemizar com outros expoentes do Judaísmo de seu tempo, ao qual foi atribuído o infeliz título A "religião do coração" é o oposto da "doutrina dos fariseus".
Na paráfrase com que o autor atualiza o texto, os fariseus são representados como expoentes de uma ordem constituída, “aquela das formalidades, da banalidade que reduz a transcendência a um fenômeno esotérico ou externo. Os fariseus, de fato, e todos os Judeus não comem a menos que tenham lavado cuidadosamente as mãos, atendo-se à tradição dos antigos”. A prática judaica de lavar as mãos antes das refeições é lida como um exemplo de “práticas piedosas [...], coisas externas que nada têm a ver com o coração, com o sentido, com o sabor da verdadeira santidade. O ser humano, de fato, oprimido pelas obrigações formais, não tem mais tempo para ler o seu coração e fazer-lhe expressar o amor por Deus. Tudo se reduz a bajulações”.
O ouvinte não é levado a questionar sua própria religiosidade e piedade, mas é envolvido em uma acusação contra uma imagem dos "Judeus".
O judaísmo após a destruição do templo no 70 de nossa era é certamente o herdeiro consciente e vivo do grande movimento dos fariseus, mas esta história vem em uma única passagem achatada em uma visão estereotipada dos fariseus, construída a partir dos textos dos Evangelhos lidos a-historicamente. O estigma imposto a esses fariseus é transferido para "todos os Judeus". Assim reaparece, com a linguagem da divulgação, talvez inconscientemente, a tradicional visão cristã do Judaísmo como "negativo" da verdade cristã; seu "erro" que atesta a "nossa verdade".
Uma única frase em todo o artigo não tem como alvo os outros: “Quantas pessoas ainda hoje estão ligadas a práticas em que a fé é delegada ao bordado bem costurado, à fórmula incompreensível ou ao gesto perfeito!”. Por um lado, um grupo identificado com precisão, desde os fariseus aos "Judeus" de hoje, pelo outro "quantas pessoas ainda hoje...". O leitor é envolvido na estigmatização da hipocrisia atribuída a outros, e a verdadeira questão não aparece: o que fizemos e o que fazemos nós, cristãos, do ensinamento de Jesus sobre o mal que vem de dentro de nós, precisamente de nós.
As passagens polêmicas dos Evangelhos e de todo o Novo Testamento não podem ser eliminadas ou evitadas; também os Evangelhos - como todas as fontes e os "clássicos" - devem ser lidos, estudados e interpretados como são. No entanto, também nos sermões e na divulgação, devemos analisá-los com uma abordagem histórica. A tentação que ameaça toda leitura dos textos é de "atualizá-los", pulando os milênios que nos separam de sua origem e ignorando o contexto em que nasceram, como se fossem palavras atemporais que nos falam com imediatismo. Os textos devem ser lidos em seu contexto, aquele do judaísmo vivo, articulado e até polêmico do primeiro século de nossa era e de suas apaixonadas discussões. Com o passar do tempo, cada vez mais os Evangelhos foram lidos sem consciência de seu contexto e, então, por um determinado Cristianismo que se difundia e por fim se afirmava como religião majoritária, em bloco contrapostos com a alteridade judaica permanente e viva que tanto o inquietava.
A consciência desta história e das consequências nefastas de seus discursos sempre deve estar presente, mesmo - aliás, muito mais – quando se escreve um sermão ou se elabora uma obra de divulgação.
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Sermões, divulgação e preconceito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU