Além de mais rentável, restauração pode evitar desmatamento de 1 milhão de hectares por ano até 2030, mostra estudo do projeto Amazônia 2030.
A reportagem é de Cristiane Prizibisczki, publicado por ((o))eco, 15-09-2021.
A crescente demanda por carne bovina e o aumento da produção no setor até 2030 poderão resultar em desmatamento de 1 milhão de hectares/ano na Amazônia, caso a pecuária não tenha ganho de produtividade ao longo da próxima década. Este cenário, no entanto, não precisa acontecer: com uma coordenação política eficiente, a região pode produzir mais sem desmatar, empregando técnicas e recursos financeiros já disponíveis, a um custo agregado até 72% menor do que o necessário para abrir novas áreas.
As conclusões constam em nova análise produzida pelo projeto Amazônia 2030, iniciativa de pesquisadores que busca o desenvolvimento sustentável para o bioma.
De autoria do pesquisador associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) Paulo Barreto, o trabalho traz uma revisão da literatura científica para identificar mudanças públicas que possam frear o desmatamento e garantir que a pecuária na região se torne mais eficiente.
Ao longo da próxima década, a demanda brasileira por carne bovina deve crescer entre 1,4% e 2,4%, segundo projeções do Ministério da Agricultura e Abastecimento.
A partir dessas projeções, o estudo estimou que seria necessário desmatar, respectivamente, 634 mil e 1 milhão de hectares por ano entre 2020 e 2030, caso a atividade não ganhe em produtividade, com custos que variam entre R$ 950 milhões e R$ 1,63 bilhão/ano.
Atualmente, 4 de cada 10 cabeças de gado no Brasil estão na Amazônia Legal, sendo que a baixa produtividade predomina – em média, na área onde seria possível alimentar 33 animais, existem apenas 10 na Amazônia. Os pastos cobrem cerca de 90% das áreas desmatadas no bioma.
Pastos cobriam cerca de 90% da área desmatada no bioma Amazônia em 2019. (Foto: Fonte: Rodney Salomão/Mapbiomas)
Segundo o documento, para atender a demanda por meio de ganho de produtividade, sem desmatar novas áreas, seria necessário reformar 170 mil e 290 mil hectares de pasto degradado por ano até 2030, considerando as taxas de crescimento projetadas pelo MAPA (1,4% e 2,4%). Isso equivaleria a reformar somente entre 0,37% e 0,64% da área de pasto existente no bioma, com custo entre R$ 270 milhões e R$ 873 milhões.
Ou seja, o valor da reforma da pastagem chega a ser 72% menor do que o custo de abertura de novas áreas através do desmatamento (R$ 270 milhões/ano contra R$ 950 milhões/ano, no cenário de crescimento mais conservador).
O documento leva em conta o custo agregado de toda área, considerando todos os gastos com investimentos que devem ser feitos por pecuaristas na abertura de novas terras e o ganho de produtividade da reforma de pastos, que passaria dos atuais 80kg por hectare para 300kg por hectare. “É necessário desmatar mais para produzir o mesmo que será produzido na área reformada”, explica Paulo Barreto.
Foto: ((o))eco
Os números apresentados pelo pesquisador do Imazon não são apenas hipotéticos. Ainda que não seja uma prática disseminada no bioma, a recuperação de pastagem e aumento de produtividade é realidade para alguns produtores da Amazônia.
Este é o caso de Mauro Lúcio Costa, pecuarista no município de Paragominas, no Pará, cuja propriedade, de grande porte, consegue até 10 vezes a média nacional de produção de carne.
“Eu, que lido na prática diariamente com essa questão, a cada dia tenho mais certeza de que a melhoria do processo produtivo é viável e é a única saída para o futuro da pecuária”, disse, a ((o))eco.
Quando considerado somente o custo de derrubada da vegetação e plantio de pasto, de fato, o desmatamento é mais atrativo: R$ 1,5 mil por hectare, contra R$ 3 mil/ha para recuperação da pastagem. A conta, no entanto, não leva em consideração o custo global da atividade, muito menos o custo ambiental associado.
“Embora seja viável tecnicamente e financeiramente produzir sem desmatar, não há garantia de que esta alternativa prevalecerá. […] os incentivos à destruição da floresta e as barreiras à adoção das melhores práticas podem tornar a opção do desmatamento ainda sim vantajosa para o indivíduo”, diz trecho do documento.
As barreiras para a adoção de melhores práticas fazem parte de um conjunto de “incentivos perversos” que desestimulam avanços técnicos, diz o estudo: há muita terra barata disponível, mão-de-obra pouco qualificada e infraestrutura precária.
Outro trabalho recente sobre regularização fundiária na Amazônia, também do Imazon, estimou que existam aproximadamente 144 milhões de hectares de terras – 28% do território – não destinadas ou sem informação de destinação no bioma. A promessa do governo de legalizar ocupações irregulares, as constantes mudanças na lei beneficiando a grilagem e os irrisórios valores de terra incentivam mais invasões.
Em Roraima, por exemplo, o hectare de terra (10 mil m²) sai por R$ 73. No Tocantins, o preço cobrado para regularizar uma terra pública invadida chega a ser de apenas R$ 3,50.
“As pessoas trabalham demais em cima de especulação. Eles colocam a bandeira que abrir novas áreas é para produzir, mas não é, desmata para especular, então, aumentar o tamanho da terra é primordial. Poucas são aquelas que querem ter um aumento de produtividade”, diz o pecuarista Mauro Lúcio Costa.
O enfraquecimento do imposto contra a especulação fundiária, déficit de infraestrutura rural, déficit educacional, de assistência técnica e de capital social também estão na lista dos “incentivos perversos” que desestimulam a melhoria de produtividade, segundo o trabalho de Barreto.
“No estudo olhei dados pra entender quais os fatores que levam os produtores a adotarem tecnologia para aumento de produtividade, porque no Brasil tem a conversa de que, se tem crédito e assistência técnica, está resolvido o problema. Mas a experiência global mostra que tem vários outros fatores, como capital social, cooperativas, nível de educação. Na Amazônia tem um oceano de baixa produtividade e escassez desses fatores. E quando olha para outras regiões onde a produtividade é maior, tais fatores são melhores”, explica Barreto.
A falha na regularização fundiária é outro fator importante para a pecuária de baixa produtividade na Amazônia. “Não vou investir em casa alugada”, disse um fazendeiro de São Felix do Xingu ao se referir ao fato de que não possui o título da terra, por isso não faria investimentos nela.
Mas a falta de interesse é só um aspecto da questão: quando não há documentos, também não é possível adquirir créditos. “Enquanto você não tem título, não tem crédito e o produtor entra num ciclo que não consegue sair: a pessoa não consegue aumentar a produtividade porque não tem crédito e não tem crédito porque não tem documentos suficientes da área. É preciso avançar com a regularização fundiária, sem que isso signifique desrespeitar o que está estabelecido no Código Florestal”, diz Jordan Timo Carvalho, pecuarista em Redenção, também no Pará.
Ter crédito é importante devido aos altos custos da transferência de uma pecuária extensiva para intensiva, de alta produtividade, explica Carvalho. “O mais barato, que ainda sim é caro, é o preparo do solo, com correção, adubação e semeio. Depois tem a divisão da pastagem, a questão das cercas, da água, mas o mais caro do processo são os animais. Quando você tem uma taxa de lotação de um animal por hectare e passa para três, você precisa comprar duas vezes mais animais do que você tem ali”, explica.
A boa notícia, segundo o estudo de Barreto, é que já existe crédito para recuperação das pastagens degradadas. Para produzir sem desmatar, o pesquisador estima que os produtores da Amazônia Legal precisariam de um valor que pode variar entre 3% e 9,5% do crédito rural contratado para a região em 2020, que chegou a R$ 9,15 bilhões.
São empréstimos feitos pelos produtores rurais e que, hoje, são principalmente empregados na compra de novos animais, mas que podem se redirecionados para a recuperação de pastagens. “Os bancos continuam investindo em pouca produtividade, estamos financiando uma pecuária que não é eficiente”, diz Barreto.
Para mudar o atual status da pecuária na Amazônia, o estudo recomenda que o poder público induza o uso mais produtivo das terras, desestimulando a expansão de fronteiras agrícolas especulativas e ineficientes, e trabalhando para fornecer os serviços e a infraestrutura que vão facilitar os investimentos nas áreas já desmatadas.
Barreto recomenda atuar, simultaneamente, em duas frentes: 1) Combate ao desmatamento e especulação fundiária e 2) Facilitação do uso mais produtivo da terra, por meio do treinamento e assistência continuados, oferecendo crédito rural focado em ganhos de produtividade, além da instalação de infraestrutura e serviços necessários nas diferentes regiões.
“Idealmente, o governo deveria agir nos dois lados ao mesmo tempo. Mas, se fosse fazer uma coisa só, eu diria que é preciso controlar o desmatamento, porque isso força o setor privado a adotar melhores práticas e a usar melhor as áreas que já estão desmatadas. A gente viu que isso aconteceu no passado e dá para repetir esse modelo. Agora, dado o cenário de baixíssima governança pública atualmente, os estados e setor privado têm um papel enorme e precisam começar a agir”, diz Barreto.