28 Setembro 2017
Alardeado como nova fronteira agrícola do país, estado reproduz problemas enfrentados em toda a Amazônia durante o “boom” do agronegócio: desmatamento, grilagem de terras e conflitos no campo.
A reportagem é publicada por Greenpeace, 27-09-2017.
Em setembro de 2016, o navio Alexia zarpou do Porto de Santana, próximo à foz do rio Amazonas, a 18 quilômetros de Macapá, com destino a Liverpool, na Inglaterra, transportando cerca de 25 mil toneladas de soja comercializada pela empresa Fiagril e importada pela Mitsui & Co Group. Ainda que a exportação de soja pelo estado do Amapá tenha começado em 2014, esta foi a primeira vez que os grãos saíram diretamente por um porto do estado.
A exportação foi amplamente comemorada pelos produtores e pela elite política local nos meios de comunicação do estado, com a promessa de que a soja catalisaria o desenvolvimento econômico da região.
Historicamente, no entanto, o avanço do agronegócio para exportação vem acompanhado por desmatamento ilegal e concentração fundiária, com danos que atingem principalmente camponeses e populações locais. No Amapá, não é diferente: comunidades quilombolas e antigos posseiros que aguardam a regularização fundiária de seus territórios vivenciam uma crescente tensão com os recém-chegados, que rapidamente conseguem licenças para exercer atividades agropecuárias.
Entre janeiro e setembro de 2017, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) embargou 47 áreas no estado Amapá por desmatamento ilegal. Deste total, 34 embargos resultaram da operação "Nova Fronteira", realizada pelo IBAMA no estado entre junho e julho de 2017. O Greenpeace visitou algumas dessas áreas e conversou com comunidades que já sentem na pele os impactos da rápida e recente expansão do agronegócio na região.
O bioma Amazônia é composto quase todo por formações florestais. Mas outras paisagens, como cerrados ou lavrados e campinas, conhecidas como não florestais, também podem ocorrer. Até hoje, os sistemas oficiais de monitoramento do desmatamento na Amazônia vêm ignorando estas áreas, dificultando a fiscalização e a devida responsabilização pelos crimes ambientais cometidos. Só no Amapá, as áreas de Cerrado ocupam cerca de 1 milhão de hectares.
As condições geográficas do estado aliadas à capacidade portuária (tem o porto brasileiro mais próximo do Canal do Panamá, Estados Unidos e Europa) e o baixo preço das terras quando comparado a outros estados produtores de soja contribuem para alardear o Amapá como a "nova fronteira agrícola do Brasil", acelerando a ocupação de terras pelo agronegócio. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) no Amapá, o estado possui cerca de 400 mil hectares de sua área de Cerrado aptos para a agricultura. Nos últimos cinco anos, a área de soja plantada no Amapá quadruplicou, passando de 4.550 hectares em 2013 para 18.900 em 2017.
Ao longo de 2017, o Ibama embargou 47 áreas por desmatamento ilegal no Amapá, abrangendo os municípios de Cutias, Vitória do Jari, Itaubal, Macapá, Tartarugalzinho, Ferreira Gomes, Calcoene, Pracuuba e Oiapoque, somando pelo menos 11.748 hectares de vegetação nativa destruída. Até o final de setembro (24/09), entretanto, dos 47 processos registrados, 24 não se encontram mais na lista pública de embargos do Ibama – o equivalente a 84% da área total (em hectares) embargada em 2017. Os desembargos ocorreram com uma rapidez incomum a esse tipo de processo, que historicamente pode levar anos até sua conclusão.
Embora muitas das áreas embargadas na operação Nova Fronteira estivessem licenciadas para cultivo pelo Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do Estado do Amapá (Imap), nenhuma apresentou autorização do órgão ambiental para a supressão de vegetação – exigência prevista no artigo nº26 da Lei nº12.651 de 2012 (novo Código Florestal).
O Greenpeace esteve em 18 das 34 áreas embargadas pela operação Nova Fronteira. Destas, 83% estavam ocupadas por soja. Com base na lista disponibilizada pelo Ibama, foi possível constatar que algumas áreas embargadas pertencem a produtores ligados à Associação do Produtores de Soja (Aprosoja). Na lista aparecem, ainda, nomes envolvidos em conflitos pela terra com as comunidades locais.
O navio que saiu do porto de Santana em 2016 incluía o transporte de 80 mil sacas de soja proveniente de propriedades dos empresários Alexandre Márcio Menin e Juliano Passos. Em junho de 2017, Menin teve duas áreas embargadas na operação "Nova Fronteira" do Ibama, nos municípios de Itaubal e Macapá, somando 447 hectares. Menin faz parte da diretoria da Aprosoja no Amapá. As áreas em questão não se encontram mais na lista pública de embargo do Ibama.
As 25 mil toneladas de soja do primeiro carregamento exportado pelo Amapá, em 2016, foram desembarcadas em Liverpool, na Inglaterra. A Fiagril foi responsável pela comercialização de toda a soja, importada pela empresa Mitsui & Co Group. Em 2017, outro navio partiu do porto de Santana carregando 33,7 mil toneladas de soja. No site do porto de Santana há ainda a previsão de um segundo navio de soja, que deve chegar no dia 6 de outubro para transportar 21 mil toneladas de soja. Porém, o destino destes dois carregamentos não é conhecido.
A empresa Fiagril surgiu em Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, há 30 anos. Hoje a comercializadora e processadora de grãos possui 35 unidades, distribuídas entre Mato Grosso, Amapá e Tocantins. Em 2016, a Fiagril abriu uma filial em Macapá e uma fatia da empresa foi comprada pela Hunan Dakang Pasture Farming Co. Ltd., empresa chinesa controlada pelo PengxinGroup. A Fiagril é associada da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e também faz parte da Moratória da Soja.
O agravamento dos conflitos e da disputa pela terra é a face mais perversa dos danos que atingem principalmente os camponeses e as populações tradicionais com o avanço do agronegócio sobre biomas naturais. Nesse processo, a presença de diversas famílias de pequenos agricultores no Amapá foi ignorada pelos grandes produtores de soja, que foram se apropriando das terras ao longo da rodovia AP-070 e no seu entorno.
Em 2013, Maria Saraca dos Santos Souza, o marido e seus filhos foram expulsos da área onde viviam. Nascida e criada na comunidade Pedreira do Abacate, certo dia foi surpreendida por um homem que se dizia dono de toda a área. “Ele chegou aqui e disse que era para gente se retirar da área porque tudo era dele. Ele disse que era para gente sair que nós não tínhamos poder para brigar com ele na justiça. Que o que valia era isso aqui”, conta, fazendo o sinal de dinheiro com as mãos.
Maria conta que um tempo depois estava em casa com os filhos, quando foi novamente surpreendida – desta vez pela polícia – e forçada a se retirar de sua casa de forma violenta - por ordem judicial. “Chegaram lá, pegaram o trator, passaram a corrente em cima da nossa casa e quebraram tudo”, conta ela, que teve a plantação destruída e a casa derrubada.
Segundo o relatório “Amazônia, um bioma mergulhado em Conflitos”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o conflito teve início em 2013, quando a empresa Agrocerrado — nome fantasia da empresa Agropecuária Cerrado Verde — instalou-se nas proximidades e começou a requerer várias áreas no entorno da rodovia AP-070. No mesmo ano, o caso foi parar na justiça. A área total pretendida pela empresa era de cerca de 4 mil hectares, divididas em diversos lotes menores, cada um em nome de pessoas ligadas ao empresário Gilberto Laurindo.
De acordo com o relatório, a área pretendida pela empresa se sobrepunha a várias outras, ocupadas historicamente por famílias que nunca conseguiram regularizar sua situação fundiária. O processo judicial inclui Celso Carlos dos Santos Junior, sócio da empresa Agrocerrado (ou Agropecuária Cerrado Verde) e atual suplente do Conselho Fiscal da Associação de Produtores de Soja (Aprosoja Brasil). A Agropecuária Cerrado Verde teve áreas embargadas na operação Nova Fronteira, mas que já não constam mais na lista pública de embargos do Ibama.
Em 2003, a trabalhadora rural tentou regularizar a área que ocupava. Ela conta que entrou com um pedido de regularização fundiária no Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do Amapá (Imap). Na ocasião, Maria foi aconselhada a cancelar o pedido no órgão estadual e solicitar a regularização junto ao Incra, já que as terras eram da União, mas ainda não obteve sucesso.
Os produtores de soja, por outro lado, parecem não encontrar obstáculos burocráticos para garantir o acesso à terra. “Eles chegam hoje e quando é amanhã já estão com licença, trabalhando, derrubando... E a gente, que é filho daqui da terra, que mora aqui há anos, nascido e criado, não tem nossos direitos que é digno de ter. Passamos anos e anos para conseguir documentação, licença, a gente não consegue, e eles de um dia para o outro conseguem rapidinho; tudo tem em mão pra eles”, indigna-se ela.
Maria Saraca é hoje uma das centenas de agricultores e agricultoras sem terras para cultivar. Acuada pela violência, vive há cerca de quatro anos com a família na outra margem da rodovia AP-070, vendendo bolos e salgados à caminhoneiros que passam pela rodovia, de frente para a terra que ela cuidou por quase dez anos. “Daqui não tenho para onde ir porque não tenho casa. A minha casa era aí onde eu estava morando”, diz. “Minha casa era lá”.
Maria Saraca dos Santos Souza, 43, foi expulsa de suas terras e hoje mora ao lado da rodovia AP-070, no Amapá. (Foto: ©Otto Ramos/Greenpeace)
Perto dali, Feliciano Pereira Ramos Picanço passou todos os 65 anos de sua vida no Quilombo do Ambé e hoje acompanha com preocupação o avanço do agronegócio nos limites do território que pertenceu a seus antepassados. Ambé, conta, é o nome de um cipó que existia em abundância na região e que é como ele e sua comunidade: “resistente a todas as pressões”. Que são muitas.
Picanço conta que espera há anos o reconhecimento oficial do quilombo. Enquanto isso, é obrigado a ver, impotente, o avanço da soja, que já chegou às portas da comunidade: “O plantio cada ano avança um pouco. O projeto de hoje era desmatarem aqui, praticamente dentro da nossa vila”, lamenta.
Segundo ele, esse avanço da soja tem causado inúmeros prejuízos à comunidade, como o sumiço dos animais de caça, a diminuição dos peixes e a convivência forçada com os agrotóxicos pulverizados nas plantações. “O veneno dá um impacto muito grande, sem contar que a terra daqui, em dez anos, não vai produzir mais nada”, alerta.
Em sua juventude, relembra, Feliciano podia colher cajus e mangabas do pé, assim como outras dezenas de frutos do Cerrado. Mas os pomares e a biodiversidade já não existem mais. “É um direito adquirido que nós tivemos desde o começo dessa comunidade e não é justo que alguém venha e tome conta de tudo”, diz.
“O motivo do conflito tem sido a chegada do agronegócio, que, ocupando muito rapidamente uma área grande, de 19 mil hectares, não tem observado a existência ou pré-existência dessas comunidades em muitas das regiões do estado”, afirma o promotor de Justiça do Meio Ambiente de Macapá, Marcelo Moreira.
O modelo de expansão do agronegócio, atualmente em curso no Amapá, reproduz mazelas que já se mostraram desastrosas em outras regiões da Amazônia: além do desmatamento ilegal e a contaminação de rios e solos, a concentração fundiária agrava as disputas violentas pela terra, com danos principalmente para as populações locais.
Feliciano Pereira Ramos Picanço, 64, morador do Quilombo do Ambé, no Amapá. (Foto: ©Otto Ramos/Greenpeace)
O desmatamento das áreas de Cerrado na Amazônia é invisível aos olhos do governo e das empresas, já que não é monitorado pelos sistemas oficiais ou por acordos de mercado que visam o Desmatamento Zero. Desde 2006, o setor que opera na Amazônia se comprometeu a não comprar soja proveniente de áreas desmatadas após 2008. O acordo, conhecido como Moratória da Soja na Amazônia, completou 11 anos em maio de 2017. Segundo o Greenpeace, uma das ONGs que faz parte do Grupo de Trabalho da Soja (GTS), que monitora o acordo, o compromisso obteve avanços importantes para conter o desmatamento nas áreas florestais na Amazônia, mas ainda não conseguiu conter o avanço do grão sobre as áreas não-florestais – dentro e fora do bioma.
“É fundamental que, a exemplo das áreas florestais da Amazônia, critérios como o Desmatamento Zero sejam exigidos pelo mercado para garantir que a produção de soja não ocorra a partir da destruição dos nossos biomas naturais e não torne o consumidor um cúmplice involuntário da destruição das áreas de Cerrado e dos conflitos com comunidades locais”, defende Cristiane Mazzetti, da campanha da Amazônia do Greenpeace.
No último dia 11 de setembro, organizações da sociedade civil, incluindo aquelas que participam da Moratória da Soja, publicaram um manifesto apelando ao mercado que interrompa o desmatamento no bioma Cerrado, adotando políticas e compromissos eficazes para eliminar o desmatamento e desvincular suas cadeias produtivas de áreas naturais recentemente convertidas para o plantio de grãos ou pastagens.
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Amapá: no olho do furacão do agronegócio e da especulação fundiária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU