10 Setembro 2021
“Para que se possa falar de humanidade, é preciso deixar-se atingir. A soma de indiferentes é desumanidade. Ao mesmo tempo, nega o 'direito ao sinal' que cabe a cada ser humano. Esse estranho direito é uma pretensão importante, é o mais fundamental dos direitos, mas é diferente dos direitos jurídicos: pode ser proclamado e escandalizar-se diante do espetáculo de tantas vidas desperdiçadas; mas se o escândalo momentâneo não encontrar um ambiente social receptivo, nada mais será do que um fogo-fátuo. É um 'direito' que deve ser acompanhado e cercado por reações ambientais que fogem ao domínio do direito. Não há juiz a quem recorrer para exigir sensibilidade. Mas, para as pessoas sensíveis, tudo pode ter significado, até a morte, nossa ou de outrem”, escreve Gustavo Zagrebelsky, jurista italiano, ex-presidente da Corte Constitucional da Itália, em artigo publicado por La Repubblica, 09-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A humanidade é o resultado da infinidade de vidas que deixaram suas marcas. Não é uma religião e nem um "grande ser" com seus ritos, sacerdotes, juízes, dogmas, catecismos, paraísos e infernos. Se assim fosse, estaríamos totalmente dentro de uma perigosa metafísica administrada pelos "padres da humanidade" e a sociedade se apresentaria como um monstro tentacular.
Usando esta nobre palavra - humanidade – ela não deve ser absolutizada e despersonalizada, sob pena dos mais terríveis desvios e crueldades. Ocorre, por exemplo, na época de uma petição da Revolução: "Par pitié, par amour pour l'humanité, soyez inhumains!". O livre entrelaçamento dos signos nem mesmo tem a ver com o que se diz programaticamente nas primeiras palavras do Catéchisme positiviste de Auguste Comte: os sociólogos, isto é, os especialistas da humanidade (hoje poderíamos ironicamente dizer: os analistas), tomam para si o governo do mundo.
A humanidade é um conceito descritivo, aberto, humilde e disponível para acolher muitas experiências.
Acolhe o menor gesto, a pequena palavra que fica impressa quase por acaso, a tecla de piano que rompe o silêncio e leva a pensar, os atos grandiosos e terríveis das "personalidades históricas", os atos de amor e as sórdidas transações de consciência, as manifestações de orgulho que humilham os fracos e as revoltas às humilhações. Quem pode dizer o que é importante e o que é irrelevante, o que conta mais e o que conta menos? A humanidade, assim, não é garantia, não é o paraíso das virtudes, e nem mesmo o inferno de todas as baixezas. É uma floresta na qual nos encontramos imersos, na qual é difícil se esgueirar. Acima de tudo, é uma floresta na qual ninguém pode vagar com sua vontade soberana.
Podemos trabalhar para melhorá-la, ou seja, para reduzir ou eliminar os sinais que não gostamos, mas mesmo a humanidade desumana ainda é humanidade.
Porém, para que se possa falar de humanidade, é preciso deixar-se atingir. A soma de indiferentes é desumanidade. Ao mesmo tempo, nega o "direito ao sinal" que cabe a cada ser humano. Esse estranho direito é uma pretensão importante, é o mais fundamental dos direitos, mas é diferente dos direitos jurídicos: pode ser proclamado e escandalizar-se diante do espetáculo de tantas vidas desperdiçadas; mas se o escândalo momentâneo não encontrar um ambiente social receptivo, nada mais será do que um fogo-fátuo. É um “direito” que deve ser acompanhado e cercado por reações ambientais que fogem ao domínio do direito.
Não há juiz a quem recorrer para exigir sensibilidade. Mas, para as pessoas sensíveis, tudo pode ter significado, até a morte, nossa ou de outrem.
Até a morte é capaz de contar, pelo menos como um sinal de atração (que devamos ficar felizes por "passar a uma vida melhor", é algo que em vão se tenta fazer acreditar para fins consoladores), pelo menos como sinal de humanidade, e não como amarga e escandalosa proclamação de insensata derrota. É o que acontece com admiração, no momento de sua morte, ao cinzento burocrata “de bem” Ivan Ilitch no romance de Tolstói, quando no final consegue apreender o que o sol ilumina e que ele nunca havia observado. E é o que às vezes nos acontece quando acompanhamos alguém que nos é caro, ficando perto dele e amando-o até ao fim; quando de sua maneira de morrer saímos marcados e crescidos em humanidade. Se alguém teve a sorte dessa experiência de intimidade na vida e na morte com alguém, compreenderá o valor desta lição.
Qohelet parece muito distante desse tipo de gaguejante meditatio mortis. Mas ele está sempre inexoravelmente à nossa frente, olhando para nós com as órbitas vazias de uma esfinge. Olhe para dentro de si mesmo e encontrará apenas vaidade, diz ele. Não apenas a vaidade da vida e da morte, mas também a vaidade da sua meditação.
Qohelet nunca fala de medo. O medo pressupõe que existe um terreno no qual nos apoiamos, mas que poderia desmoronar. Ele diz que este terreno não existe e que toda a vida é vazia, então a morte também o é. Não temos nada em que nos apoiar, nada a perder ou a ganhar. Por que, então, ter medo? Vamos nos enrodilhar em nossa solitária insensatez e não pensar mais a respeito. Talvez a mensagem final que ele nos deixa seja precisamente esta: esquecem, mortais; se puderem, contentem-se com algum paliativo que, como um alívio, ajude a afastar os pensamentos. Paradoxos ou sabedoria extrema? Você não causa medo, morte, mas o preço é muito alto: anulá-la, você deve, na anulação da própria vida. Se você não tem medo da morte é porque não espera nada da vida. No final, você deveria se perguntar qual é o sentido de não morrer, mas viver. Justamente como fazem os "deprimidos", os desgostosos da vida que equiparam vida e morte. Então, como não há razão alguma para viver, também não há razão alguma para não morrer. É preciso muito pouco, uma doença, uma dor, uma perturbação, para que da vida se decida passar para a morte: uma insensata, a outra insensata. Não que Qohelet teça louvores ao suicídio, mas certamente quebra a barreira, o amor à vida que protege da tentação.
A esse ponto nos conduziram os pensamentos que Qohelet pôs em movimento. A conclusão não é dele e não pode de forma alguma ser considerada uma interpretação. É uma meditação "a partir de". Qualquer um que envie uma mensagem, ainda mais se for enigmática, sabe que será acolhida, alterada, rejeitada para além de sua vontade e previsão. E será de pouco interesse saber qual é, se houver, um significado que possa ser considerado autêntico. Depois que o autor desaparece, a autenticidade é uma quimera.
Ainda mais, num caso como o nosso, em que o autor é desconhecido, talvez ele nem mesmo existe e não sabemos em que circunstâncias deixou suas palavras. Talvez sejam frases de (pseudo) sabedoria popular reunidas por algum escriba creditando-as a uma máscara.
O ponto de partida e de chegada desta pequena meditação é a rejeição de sua visão lúgubre da vida. Não há verdade a pregar. É uma atitude espontânea de quem sabe sentir as alegrias que se encontram ao longo dos dias de vida e as valoriza mais do que as dores. É uma tarefa da qual somente aqueles que desprezam a vida podem escapar. Sua vida não é bela, e nem mesmo bela é sua morte.
Qohelet não ajuda a viver bem, nem a morrer bem.
Alguém, tendo chegado até aqui, talvez diga a si mesmo: falta algo. Talvez. Em um cartão postal lançado de um "transporte" para Auschwitz, felizmente salvo, lemos: "Abro a Bíblia ao acaso e encontro o seguinte: ‘O Senhor é meu refúgio’. Estou sentada na minha sacola no meio de um vagão de carga lotado [...] A partida veio de forma um tanto inesperada, apesar de tudo. [...] Saímos de campo cantando, papai e mamãe estão muito fortes e calmos, e Mischa também. Vamos viajar por três dias. Obrigado por todo o seu cuidado. [...] Até logo, de nós quatro”.
Essas palavras são de uma jovem holandesa de 29 anos, Etty Hillesum, que estava destinada a morrer pelos nazistas por ser judia. Teria sido morta em 30 de novembro de 1943, talvez até naquele momento cantando, depois de espalhar ao seu redor doçura, ajuda e amor pela vida. Todos esses são certamente "sinais".
Recebê-los ou rejeitá-los é algo pessoal. Quem sim e quem não. Quem tiver a sorte, ou a graça, de dizer sim, terá vencido a tristitia com um excedente de laetitia até o último momento da vida.
Isso é tudo, e não há nada a acrescentar.
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Entre a luz e a escuridão o eterno enigma do Eclesiastes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU