16 Agosto 2021
"Incomoda-me que os bispos não prestem a devida atenção à libertação que muitos dos nossos concidadãos sentem da tutela onipresente e autoritária que a Igreja Católica tem exercido em grande parte da Europa Ocidental durante séculos. E, entre nós em particular, durante os quarenta anos da ditadura de Franco, durante os quais vigorava o nacional-catolicismo: isto é, todos católicos por decreto".
O artigo é de Jesús Martínez Gordo, padre e teólogo da diocese de Bilbao, publicado por Settimana News, 15-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) comunicou nos últimos dias de julho seu desejo de trazer às Cortes (Parlamento) uma Lei sobre Liberdade de Consciência, Religiosa e de Convicções - suspensa no último legislatura do governo Zapatero - e renegociar os Acordos de 1979 entre a Espanha e a Santa Sé, afastando-se de uma sua "denúncia" unilateral.
Trata-se de um duplo anúncio que em breve reabrirá o debate sobre a diferença entre a "a-confessionalidade" do Estado (mas não da sociedade), conforme consta dos artigos 16.1 e 16.3 da Constituição espanhola e sobre os diversos conteúdos atribuídos ao que se entende por "laicidade", muitas vezes contraditórios entre si, bem como justapostos, alguns deles, à a-confessionalidade acordada no pacto constitucional.
Também tivemos conhecimento de um documento da Conferência Episcopal espanhola, definido por alguns comentadores - diria apressadamente - como o melhor texto dos bispos em muito tempo: Fiéis ao envio missionário. Aproximação ao contexto atual e ao quadro eclesial; orientações pastorais e linhas de ação para a Conferência Episcopal espanhola (2021-2025).
Nesse texto, aprovado durante a assembleia plenária da primavera espanhola de 2021, os bispos defendem que na Espanha assiste-se a "uma tentativa deliberada de ‘desconstrução’ ou desmantelamento da visão cristã do mundo" em favor de "uma proposta neopagã" que, pautada pelo desaparecimento da "solidez nos grandes princípios ideológicos e nas grandes causas", dá lugar a uma sociedade pós-moderna, "líquida" e "volúvel" em benefício de "emoções e sensações".
Além disso - diz-se -, seria uma demolição que a cidadania estaria vivendo "quase com indiferença, aliás, como uma conquista da liberdade", apesar de suas consequências muito preocupantes: "os populismos, os particularismos nacionalistas, o individualismo, os radicalismos da ideologia de gênero, o fundamentalismo, a xenofobia ou a aprofobia (medo e hostilidade para com os pobres) e, em geral, a luta para afirmar a própria posição”. A essas consequências dever-se-ia acrescentar “a colocação de lado da escolha democrática” e o “ressurgimento artificial das 'duas Espanhas' de tão dramática memória”.
Penso que o leitor dessa e de outras passagens do documento – que, inclusive, não apresentadas oficialmente à mídia - concordará em alguns pontos e discordará de outros por diferentes razões. É impossível se deter neles de maneira detalhada. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. Mas essa dificuldade não me impede de propor, ainda que brevemente, algumas considerações.
A primeira, para reconhecer que de fato estamos assistindo a uma importante mudança de época. Pessoalmente, acredito que essa mudança esteja repleta de incertezas preocupantes. Mas, ao contrário do que afirmam os bispos, acho difícil aceitar que as nuvens ameaçadoras que veem ao horizonte obedecem apenas a uma estratégia dominada pelo desejo de instaurar uma sociedade "neopagã", "líquida" ou consumista.
Incomoda-me que os bispos não prestem a devida atenção à libertação que muitos dos nossos concidadãos sentem da tutela onipresente e autoritária que a Igreja Católica tem exercido em grande parte da Europa Ocidental durante séculos. E, entre nós em particular, durante os quarenta anos da ditadura de Franco, durante os quais vigorava o nacional-catolicismo: isto é, todos católicos por decreto.
É evidente que essa observação não me impede de reconhecer o papel decisivo desempenhado pela Igreja, especialmente através das figuras do Papa Paulo VI e do Cardeal Tarancón, no período de transição política para a democracia.
A segunda, para sublinhar que também sinto a falta de uma nova forma de comunicar e, sobretudo, de se posicionar da Conferência Episcopal espanhola neste momento.
Provavelmente, a tarefa mais delicada e importante de um Estado democrático é regular a convivência livre e pacífica de todos os seus cidadãos, independentemente das verdades e convicções que professem e da coerência que possam exibir. Isso significa, se não me engano, que a qualidade de um bom governo se mede por sua capacidade de favorecer – no âmbito do pacto constitucional - o equilíbrio entre a coerência com o próprio programa político e o cuidado com a convivência entre maiorias e minorias, bem como entre diferentes religiões e concepções de vida.
Da mesma forma, acredito que a qualidade - neste caso, evangélica tanto quanto democrática - da Conferência Episcopal (e da Igreja Católica) se mede por sua liberdade de afirmar o que entende dizer sobre qualquer tema, mas tendo em mente que sua a verdade e a sua palavra não são aquelas de todos os cidadãos.
Portanto, me parece mais sensato que, sem esconder seus diagnósticos, os bispos prestem mais atenção às possibilidades que se abrem neste momento. E, naturalmente, tenham o cuidado de excluir qualquer perspectiva analítica dominada pela convicção de que "qualquer tempo passado", não sendo pagão, "era melhor".
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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Espanha: uma sociedade neopagã? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU