16 Julho 2021
Ainda resta saber que impacto isso poderá ter no curso da justiça em um tribunal vaticano, mas um ponto está se tornando cada vez mais claro sobre o caso do cardeal italiano Angelo Becciu, que foi indiciado junto com outros nove réus por várias formas de crimes financeiros e corrupção, e que será julgado a partir do dia 27 de julho.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 15-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Qual ponto? Como tudo no século XXI, o caso Becciu está sendo politizado e está emergindo como um teste decisivo para as atitudes mais amplas em relação ao papado de Francisco.
Se você gosta do Papa Francisco, se você está inclinado a pensar nele como um bravo reformador lutando contra uma instituição rígida e tacanha, então provavelmente você verá Becciu como a “Prova nº 1” pelo que ele está enfrentando – um clássico exemplo da velha guarda italiana que resiste às mudanças e que, para a surpresa de ninguém, também é corrupto e foi pego com a mão na botija.
Por outro lado, se você vê Francisco como uma figura instável e doutrinalmente duvidosa, alguém que fomentou um culto à personalidade ao seu redor e que buscou se vingar de qualquer um que se atrevesse a desafiá-lo, então você pode estar inclinado a ver Becciu como um bode expiatório, um costas-largas que está sendo submetido a um julgamento-espetáculo a fim de isolar o papa e seus asseclas – especialmente o cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado e fidelíssimo de Francisco – de qualquer culpa.
É claro, nenhuma dessas perspectivas sobre Francisco tem qualquer coisa a ver com a questão legal de saber se Becciu, 73 anos, realmente infringiu a lei, mas elas explicam bastante o modo como o caso está sendo coberto pela imprensa, especialmente aqui na Itália.
Recapitulando, desde 2018 o Vaticano está envolvido em um escândalo crescente, que envolve uma tentativa de 400 milhões de dólares [2 bilhões de reais] da Secretaria de Estado para comprar um antigo depósito da Harrod’s no bairro londrino de Chelsea, originalmente programado para ser convertido em apartamentos de luxo.
Para piorar as coisas, o dinheiro do negócio veio do Óbolo de São Pedro, a coleta anual anunciada aos católicos comuns em todo o mundo como uma forma de sustentar as atividades de caridade do papa em prol dos pobres e necessitados. A primeira fase do negócio ocorreu enquanto Becciu ainda era o “substituto”, ou seja, a segunda autoridade da Secretaria de Estado.
No dia 3 de julho, 10 indivíduos e três entidades corporativas foram indiciados por juízes vaticanos pelos seus papéis no caso, incluindo, pela primeira vez, um cardeal – neste caso, Becciu.
No domingo passado, o jornal italiano La Repubblica publicou uma reportagem que não citava explicitamente qualquer fonte, mas que dava a impressão de confiar em investigadores vaticanos, no sentido de que Becciu e os dois financistas italianos indiciados no sábado estavam envolvidos em um plano elaborado para despistar a investigação, lançando ofertas inflacionadas para comprar a propriedade de Londres por um valor maior do que aquele que o Vaticano havia gasto com ela, gerando curtos-circuitos em torno das acusações de pagamento excessivo.
Como parte do panorama, em certo ponto eles afirmam que Becciu teria chamado os magistrados vaticanos de “porcos”, jurando que eles teriam que “engolir as suas palavras”. A reportagem do La Repubblica também sugeriu que algumas das figuras envolvidas em ajudar Becciu estão associadas ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi e ao seu partido de direita Forza Italia.
Nessa quarta-feira, foi a vez do jornal italiano Libero, que publicou uma notícia assinada por Vittorio Feltri, um dos jornalistas mais conhecidos (e polêmicos) do país, acusando juízes vaticanos de terem enterrado deliberadamente um documento que absolve Becciu das principais acusações no indiciamento.
A declaração de duas páginas, assinada pelo cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado e, portanto, supervisor de Becciu, é dirigida ao Credit Suisse, um dos bancos que o Vaticano usou para depositar dinheiro do Óbolo de São Pedro, e datada de 21 de dezembro de 2016. Entre outras coisas, Parolin declara que “não há nenhum limite” para a faculdade da Secretaria de Estado de usar esses fundos e que tudo o que eles fazem está em conformidade com a lei vaticana. Parolin também declara que Becciu tem plena autoridade para executar contratos de uso desses fundos em nome da Secretaria de Estado.
Feltri perguntou: como Becciu pode ser acusado de exceder a autoridade que seu próprio chefe disse explicitamente que não tem limites? Como ele pode ser acusado de violar o Vaticano, quando Parolin jurou que qualquer uso dos fundos aprovados por Becciu estava em conformidade com aquela lei?
Na realidade, pode haver formas menos condenatórias de ver essas supostas armas fumegantes.
As trocas entre Becciu e os financistas podem ser vistas simplesmente como réus que acreditam estar sendo injustamente culpados, buscando formas de demonstrar sua inocência de forma convincente. Quanto ao memorando de Parolin ao Credit Suisse, ele data de 2016, antes que todos os contornos do acordo de Londres se tornassem claros, e ele poderia argumentar que se tratou simplesmente de um caso de confiança mal depositada em Becciu.
O que talvez seja mais relevante no momento é o seguinte: o La Repubblia é o principal jornal de esquerda da Itália e um torcedor descarado do Papa Francisco – ele foi fundado por Eugenio Scalfari, o idoso jornalista italiano a quem Francisco concedeu várias entrevistas exclusivas.
O Libero, por sua vez, foi fundado por Feltri, um autodenominado “conservador, eurocético e populista”, que criticou abertamente o Papa Francisco em várias ocasiões. Há apenas um ano, ele escreveu um artigo em que sugeriu que o tratamento romântico dado por Francisco à pobreza é realmente pior do que o comunismo à moda antiga, pois é mais ingênuo.
Em outras palavras – surpresa! – é a mídia de esquerda impugnando Becciu, e os direitistas o defendendo.
Para qualquer sistema jurídico, é importante que seus resultados não sejam apenas justos, mas também percebidos como justos. Neste momento, essa pode ser uma montanha cada vez mais íngreme para o tribunal vaticano escalar, dado o óbvio subtexto político – de fato, todo o caso corre o risco de transformar Becciu no Jean Valjean da direita católica, alguém visto como perseguido por um sistema injusto.
Tudo isso talvez torne ainda mais importante que o processo se desenrole com a máxima transparência e que os seus vereditos sejam o máximo possível à prova de balas.
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Histórico julgamento de cardeal corre o risco de se transformar em disputa política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU