23 Junho 2021
“Para enfrentarmos o mal, a nossa sombra em geral e o nazismo em particular, é importante que fomentemos a liberdade de expressão, que venham à luz de maneira controlada os piores aspectos da natureza humana, e que possamos canalizá-los de forma não destrutiva, antes que explodam em uma reedição da barbárie”, escreve Ángel Sánchez Bahíllo, psiquiatra e psicoterapeuta, em artigo publicado por El Diario, 21-06-2021. A tradução é do Cepat.
Tanto o conceito como a imagem do mal foram mudando ao longo da história. Platão negava que o mal em si existisse, organizando seu pensamento em torno da presença do bem em maior ou menor grau, sendo a ausência do bem algo análogo ao que nós chamamos de mal.
Entre os gregos, havia alguns elementos rejeitados socialmente, particularmente os bárbaros ou estrangeiros, com costumes contrários à ordem e a civilização que consideravam representar: os centauros representavam a barbárie agressiva e a perda de controle com o vinho.
Podemos relacionar esta figura com os cavaleiros das estepes, como os citas que conheciam os gregos ou os hunos e os mongóis, que conhecemos depois. Também as amazonas, que representavam a subversão da ordem patriarcal, constituíam uma figura rejeitada pelos gregos. No entanto, nenhuma destas figuras é assimilável ao mal em estado puro.
No mundo cristão, o diabo, sim, representa a encarnação do mal. Provavelmente, influenciado pelo maniqueísmo e o zoroastrismo, o diabo abre as portas para um dualismo cósmico em que o bem e o mal se opõem. Embora o cristianismo não chegue a abraçar este dualismo, ao sempre considerar Deus como uma entidade superior, flerta com ele e confere ao diabo atributos próprios do polo oposto a Deus.
Neste esquema de pensamento, podemos considerar como mau tudo o que tem a ver com o diabo e este como o centro de todo o mal. É representado com chifres e cascos de bode, em analogia com Pã, o deus grego da natureza selvagem e a sexualidade masculina, elementos rejeitados por um cristianismo que, seguindo Santo Agostinho e Platão, valoriza a espiritualidade acima do corporal.
Em um mundo descristianizado, a figura do diabo perdeu grande parte de sua marca intolerável, sendo utilizada como fantasia carnavalesca e imagem de transgressão diante de uma ordem opressiva.
Se o diabo perdeu o trono de senhor das trevas, atualmente, imagem encarna os atributos do mal puro? Acredito que, atualmente, colocamos nesse lugar a figura do nazismo.
O nacional-socialismo alemão foi um regime político explicitamente oposto à democracia, que enfrentou militarmente o conjunto de potências aliadas do ocidente, sendo derrotado na Segunda Guerra Mundial, e que foi responsável por múltiplas atrocidades.
Os horrores do nazismo levaram à definição dos Direitos Humanos para tipificar as ações inaceitáveis deste regime, que atualmente marcam o limite que não devemos ultrapassar no funcionamento da civilização.
A figura do nazismo ocupa o lugar do inaceitável, do mal absoluto do qual não podemos nos aproximar. Quando no ano de 2005, o príncipe Harry da Inglaterra se fantasiou de nazista em uma festa, foi um escândalo cujos ecos ainda reverberam hoje. Foi considerado então, assim como se considera agora, que era inaceitável que um membro da família real britânica encarnasse uma figura tão ofensiva socialmente.
E eu pergunto, para que servem as festas à fantasia e os carnavais a não ser para encarnar aqueles aspectos da natureza humana que a civilização não permite dar vazão abertamente? Jung chama de sombra aqueles aspectos da personalidade (e podemos estendê-los à cultura) que são rejeitados e escondidos, e propõe uma aproximação controlada para conhecer e administrar melhor estes aspectos de nós mesmos, que não desparecem por ser escondidos, mas que reemergem de forma intempestiva em sintomas, atos falhos, etc.
No carnaval podemos nos aproximar das figuras de nossa sombra, com um formato de brincadeira supostamente inofensiva, e entender um pouco melhor as perspectivas silenciadas. As fantasias de diabo e de monstros de diferentes tipos são habituais neste contexto.
A natureza selvagem que Pã representava não pode se desenvolver sem limites na sociedade, a oposição à ordem, divina ou social, também não. No entanto, podemos nos inteirar para conhecer melhor a nós mesmos, encontrar formas construtivas de canalizar a sexualidade e a rebeldia, e evitar que essas dimensões de nossa humanidade nos dominem. No entanto, a aproximação ao nazismo não é considerada aceitável.
Diferente da encarnação do mal metafísico que supõe o diabo, os nazistas eram seres humanos. Alguns de seus atos foram detestáveis, mas humanos. Compartilhamos com os nazistas a natureza humana e as baixas paixões que podem nos descarrilar para ações monstruosas. Somente conhecendo o que há de nazista em cada um de nós e o que há de nazista em nossa sociedade, podemos aspirar controlá-lo e evitar que a barbárie exploda.
Desumanizar o nazismo, fazendo-o encarnar o mal metafísico é distorcer a realidade e repetir um dos erros cometidos pelo nacional-socialismo ao desumanizar os seres humanos que não se encaixavam em seu cânone de pureza.
Para enfrentarmos o mal, a nossa sombra em geral e o nazismo em particular, é importante que fomentemos a liberdade de expressão, que venham à luz de maneira controlada os piores aspectos da natureza humana, e que possamos canalizá-los de forma não destrutiva, antes que explodam em uma reedição da barbárie.
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O mal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU