09 Junho 2021
"Temos feito isso obstinadamente por 100 anos (pelo menos na maior parte): agora temos que mudar de estilo, como o Papa João e o Concílio Vaticano II nos ensinaram e como o Papa Francisco aprendeu com eles", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 04-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como fala Mattia Lusetti, nos dois artigos dedicados a uma acirrada discussão em torno da chamada "Lei Zan" (aqui e aqui), ninguém deveria cair na armadilha de dividir o mundo em "bons e maus" dependendo se for ou não a favor de uma lei. Assim, ele, que por si mesmo seria colocado ao lado dos "maus", tenta sair dos estereótipos que os "bons" traçam sobre ele; de minha parte, que gostaria de começar pelo lado dos "bons", procuro interceptar esses seus esforços e tento dar uma perspectiva às tantas coisas importantes que leio em seu texto.
No entanto, vou começar de longe. Porque a meu ver, em matéria de identidade, sexualidade, gênero e direitos, quando escrevemos como católicos, e ainda mais como filósofos ou teólogos, devemos descontar uma “gap” que deriva justamente de nossa história, de nossa tradição e de nossa Igreja. Gostaria de começar citando a maneira como um dos documentos mais influentes sobre a tradição católica do século XIX, o Silabo (1864), fotografou um erro "decisivo" na forma como a cultura liberal da época entendia a lei. Aqui está a definição de "erro": LIX. O direito consiste no fato material; todos os deveres dos homens são nome vão e todos os fatos humanos têm força de direito.
Depois de 150 anos, este texto continua muito instrutivo, porque não apenas descreve uma "opção errônea", mas também a reação preocupada a essa opção. Contra uma redução do direito ao fato, defende-se, não sem fundamento, a diferença do direito do fato. Este é um argumento que certamente existia antes do Sílabo e que chegou até nós. E que permanece, sob o radar, mesmo após o documento que, no Concílio Vaticano II, superou sua lógica, ou seja, o decreto Dignitatis Humanae. Que assume a história da liberdade como significativa para o acesso à revelação, à verdade e ao dever. Pouco antes daquele texto, porém, em sua última Encíclica, João XXIII havia utilizado, de forma muito simples, o conceito de "sinais dos tempos", isto é, de "fatos" que permitem à Igreja conhecer melhor sua própria tradição:
“Ao invés, universalmente prevalece hoje a opinião de que todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação, pelo menos no plano doutrinal. E isto é de um alcance e importância imensa para a estruturação do convívio humano segundo os princípios que acima recordamos. Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão de sua dignidade, nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos.”. O caminho que se realiza nas relações de trabalho, no papel das mulheres e na emancipação dos povos abre a Igreja a uma releitura singular da sua própria doutrina e do seu "depositum". Os fatos podem esclarecer os direitos, os deveres e os dons.
As duas afirmações de Pio IX e de João XXIII, que se situam com quase um século de diferença entre si, constituem de certa forma uma grande mudança de paradigma na maneira de compreender a lei, a sua função e as possibilidades de reforma. Os direitos humanos reduzidos a “delírios humanos” (Pio X) são o legado da formulação do Sílabo que ainda permanece bem ancorado no Código de 1917 e que somente o Código de 1983 começou a reelaborar. Mas a cultura católica ficou presa por uma "suspeita em relação à afirmação e ao reconhecimento dos direitos", apesar das poderosas intuições que João XXIII e o Concílio Vaticano II introduziram em sua linguagem e sensibilidade. Apesar disso, Mattia Lusetti tem seus motivos para tomar distâncias de uma “cultura homologada” que aplaude apenas um novo direito reconhecido. Creio que a reação, do ponto de vista eclesial, nunca deva ter reservas sobre o reconhecimento do direito, mas apenas sobre sua conexão com o dever e o dom. Aqui, creio, a vocação comunitária da Igreja não deve perder força e argumentos. Porém, não negando o direito, mas acompanhando-o com o dever e o dom. Essa correlação, irrenunciável, deve, no entanto, começar pela liberdade. Este é o desafio: não ter medo de começar - certamente sempre abstratamente - da liberdade, sem pretender que seja sempre um "falso começo" ou um "engano" ou uma "forma invertida de autoritarismo", como pode ser de fato. Mas não o é "por princípio". Nós, devemos reconhecer isso, somos os últimos a poder dizer isso com antecipação. Temos feito isso obstinadamente por 100 anos (pelo menos na maior parte): agora temos que mudar de estilo, como o Papa João e o Concílio Vaticano II nos ensinaram e como o Papa Francisco aprendeu com eles.
Pode parecer uma coincidência singular que, nestes mesmos dias, se discuta ao mesmo tempo uma lei penal do Estado italiano e "não se discuta" a reforma da lei penal canônica. Com efeito, por um lado, se levanta uma justa questão a respeito da Igreja ad extra e ad intra e que visa contribuir para um avanço da proteção dos sujeitos sem comprometer a possível expressão e experiência de todo o corpo civil; mas, por outro lado, assiste-se à apresentação de uma reforma sem debate, sem confronto, puramente interna. A divisão de poderes e o poder indiviso tem suas vantagens e desvantagens. E isso nos oferece um contraste singular! A isso gostaria de acrescentar a diferente concepção de "sanção penal" no âmbito civil e no âmbito eclesial. A elaboração de um “sistema de crimes e penas” em âmbito estatal tem indiretamente uma função pedagógica, mas que permanece em segundo plano tanto na administração da justiça como nas formas de aplicação e cumprimento das penas. No âmbito eclesial, porém, o sistema penal está sempre relacionado ao sistema penitencial. Sem ter um "penitenciário" próprio, a Igreja tem na penitência um lugar de absolvição das culpas que estruturalmente entra em concorrência - virtuosa ou viciosa - com o "sistema penal". Isso está escrito no DNA da Igreja e encontra seu ponto cego e crise em uma série de acontecimentos recentes, ligados sobretudo aos abusos sexuais. Uma gestão de "foro interno" do drama dos abusos muitas vezes tem causado abusos piores. Aqui o clericalismo, o sistema administrativo, o direito penal e a teologia se cruzaram, se aliaram ou se chocaram. Mas uma estrutura “de foro externo”, que consiga se impor, implica uma mudança profunda não só dos procedimentos, mas da “mens” eclesiais. Certeza do castigo e direitos de terceiros são, no campo eclesial, palavras de significado não tão simples, porque provêm de outros mundos e de outras formas de relação pessoal e comunitária. Hoje, porém, é urgente responder com autoridade precisamente nesse plano.
Em seu texto Mattia Lusetti, em uma passagem interessante, coloca uma das questões que foram levantadas sobre a "lei Zan", não apenas do lado católico: com a afirmação dos direitos que a lei garante, não poderia haver um fenômeno invertido de “marginalização” de formas de pensamento ou doutrinas que não estão “em linha” com o vocabulário que a lei propõe como normativo? A questão não pode ser subestimada. Que, no entanto, eu proporia endereçar de uma forma menos drástica. Retomo brevemente as palavras precisas de Mattia, para comentá-las. De acordo com a lei tal como está formulada, ele fala de “um perigo concreto de predispor de fato dos crimes de opinião. Poderemos nos declarar convictos daquele que é o ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade? Será possível escolher esse paradigma educacional?"
E é evidente que, tal como formulada, a questão toca um ponto sensível. Mas talvez a urgência do problema não possa ser superada, mas pelo menos aparada, se não cairmos na pequena tentação de fazer do ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade uma espécie de "monólito" que nada tem a aprender, que não tem "sinais dos tempos” a reconhecer ou "histórias de vida" a ouvir e sobre as quais meditar. Como se a homossexualidade fosse uma “definição dogmática” e não uma “forma de vida”. Que uma lei do estado, ao estabelece novas formas de direitos a serem respeitados por todos, possa ser percebida apenas como "ameaça" e não como "oportunidade" parece ser uma reação pensada mais pelo modelo do Sílabo, do que pelo modelo da Pacem in terris ou de Dignitatis Humanae. Mas não é de forma alguma dito – e, aliás, estou convencido disso - que mesmo o ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade também tenha algo a aprender com as formas civis de vida, como aconteceu com a relação intrafamiliar, que descobriu, apenas com João XXIII, a "igualdade entre marido e mulher", deduzindo-a não dos textos da Escritura ou da tradição eclesial, mas do grande texto da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
Com isso, não estou dizendo de forma alguma que no texto de Mattia Lusetti se permaneça na nostalgia de um modelo de lei apenas pedagógico. Pelo contrário, há sinais claros de uma verdadeira tentativa de diálogo com as razões do outro. Mas digo que o esforço de um confronto com os "novos direitos" nunca deve ceder à possibilidade de reduzi-los a uma simples ilusão. É precisamente a tradição eclesial que conhece bem os limites da lei penal e não exige muito das sanções. Mas a tradição civil nos ensina, por sua vez, que o excesso de discricionaridade, no reconhecimento dos direitos ou no julgamento dos crimes, não protege suficientemente terceiros e torna pouco eficazes até as melhores das intenções. Por isso, novas leis civis, por mais questionáveis e justamente discutidas, podem reconciliar a Igreja não só com seu rosto de mestra, fazendo-a meditar profundamente sobre o revestimento contingente de sua própria doutrina, mas sobretudo com aquele de mãe, e assim retornando com determinação à substância da antiga doutrina do depositum fidei.
Nos dias 11 e 21 de junho de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o evento A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente os pressupostos teológicos, antropológicos e morais subjacentes à resposta negativa da Congregação para a Doutrina da Fé à bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo e suas implicações pastorais para as comunidades eclesiais.
A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate
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Do Silabo à “lei Zan”. Em diálogo com Mattia Lusetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU