04 Junho 2021
O dom e o discernimento [Il dono e il discernimento] é o livro escrito pelo teólogo Occhetta e Mariella Enoc, presidente do Bambino Gesù. Um diálogo "entre um jesuíta e uma gestora", a partir do qual afloram os problemas éticos inerentes à gestão do grande hospital pediátrico ligado ao Vaticano.
A reportagem é de Ferruccio de Bortoli, publicada por Corriere della Sera, 03-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Il dono e il discernimento
"Por que as crianças sofrem?" perguntou uma enfermeira ao Papa: “Não tenho resposta. Nem mesmo Jesus respondeu com palavras, mas mostrou-nos a via para dar sentido também a esta experiência humana”. Francesco Occhetta, teólogo, jesuíta e professor da Gregoriana, relembra este episódio - ocorrido durante uma audiência em 2016 concedida pelo Papa aos funcionários do Bambino Gesù - em sua longa conversa com Mariella Enoc, que é a combativa presidente do hospital pediátrico do Vaticano. "Uma leoa", assim Francisco a definiu. Ele não está exagerando, inclusive porque teve prova de seu caráter.
O dom e o discernimento (Rizzoli) é o título de seu livro. Mariella Enoc fala sobre sua vida como administradora e como católica praticante. Dois papéis que não estão em contradição. “Em minha experiência, vi pessoalmente como a fé sem as obras é algo morto e como as obras sem fé são estéreis”. Mesmo um pequeno gesto pode ser terapêutico.
No encontro com a dor e o sofrimento dos outros, em particular das crianças, mas também dos seus pais e familiares, está o “olhar profundo” de uma missão vivida como “antídoto para qualquer deriva desumana e utilitarista”. Não só uma profissão exercida com aquela severidade e rigor na gestão que, infelizmente, muitas vezes faltou aos serviços de saúde católicos, que Enoc enumera, a par de muitas qualidades, limites e defeitos. A providência divina, infelizmente, não conserta os balanços. E ela se viu, em vários e dramáticos momentos de sua vida como gestora de saúde, consertando as consequências.
Sem discernimento, mesmo um esplêndido “dom compartilhado” como certamente é o hospital Bambino Gesù, excelência mundial no cuidado pediátrico, mas também um dos centros de pesquisa mais avançados, especialmente em doenças raras, corre o risco de esmaecer. Isso não acontece, graças ao trabalho de médicos e pessoal de saúde. Há quem o defina de "hospital dos filhos do mundo".
Muitos. Tratados também graças às doações. Alcançados em todos os lugares. Como Waafa, uma menina síria que teve 70% de seu corpo queimado "cujas amigas não a olhavam mais porque era feia". Trazida para a Itália, passou por diversas intervenções. Mas agora "ela se maquia, se olha no espelho". Tem doze anos. Como Ervina e Prefina, as gêmeas siamesas da África Central unidas pela cabeça e separadas com uma difícil cirurgia que durou 18 horas. Primeiro caso no mundo. Um dia o Papa indicou um caso a Enoc com estas palavras: "leia, chore, decida". Ela não chorou, decidiu. Após a abertura do jubileu de 2015 em Bangui, Francisco pediu a ela que construísse um hospital pediátrico na República Centro-Africana. Ela viajou, decidiu-se e fez ainda mais. As doações que o Papa havia recebido, administradas com profissionalismo, produziram mais do que o bem previsto. “A senhora começou a cortar o salame em fatias - o Papa um dia disse-lhe a respeito de seu trabalho não desprovido de contestações internas também no Vaticano - vá até ao fim”.
Enoc é um exemplo daquele laicato católico que ela considera um pouco subestimado pelas hierarquias. E menciona um episódio. Quando interveio com uma palestra, muito aplaudida, no primeiro congresso dos catequistas, foi advertida de cima, temendo que quisesse liderar um novo movimento. “Eles também me cortaram das fotos”, conta. Importante na formação da presidente do Bambino Gesù foi Anna Maria Canopi, freira de clausura em Orta, na região de Novara, a primeira mulher a escrever as meditações para a Via Sacra com João Paulo II.
“As mulheres - diz Enoc - representam uma voz antiga e sempre nova e o novo sempre causa medo. Uma atitude defensiva que impede o Vaticano de admitir as mulheres em cargos de responsabilidade. Também vale para os leigos. Quando surgem problemas, a Igreja da instituição se defende e premia aqueles que são obedientes, acriticamente, à hierarquia, mas entre os leigos não faltam aqueles que o fazem por interesse pessoal”. E o poder? O que é para Mariella Enoc? “Para mim é o exercício do serviço. É apenas uma missão." Aquela que pede a todo o pessoal sanitário uma nova aliança terapêutica entre médico e paciente. Paciente não cliente. Junto com uma grande atenção à inovação e à pesquisa. “A ciência é uma das formas mais elevadas de amor, é uma forma de crescer na busca de Deus, como ensinava Santo Inácio”.