31 Mai 2021
"A atmosfera que prevalece é de desolamento e solidão, acentuada pelo modo como se filma muitas vezes em plano aberto a pequenez dos indivíduos diante do espaço. Os ruídos se amortecem, as palavras parecem sussurradas", escreve José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, em comentário sobre o filme Alvorada, publicado por Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles e reproduzido por Outras Palavras, 27-05-2021.
Alvorada é, paradoxalmente, um filme sobre o crepúsculo. Ao acompanhar os últimos dias de Dilma Rousseff no Palácio da Alvorada, em 2016, o que o documentário de Anna Muylaert e Lô Politi registra é não apenas o ocaso de um projeto de governo, mas de uma ideia de país.
Circunscrito espacialmente ao palácio e seu entorno, Alvorada tem como balizas temporais o dia da aprovação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, em 17 de abril, e a saída de Dilma do prédio, em 6 de setembro. Significativamente, sobre os créditos iniciais ouvimos em off o sórdido discurso do então deputado Jair Bolsonaro, dedicando seu voto pelo impeachment ao torturador Brilhante Ustra, “terror de Dilma Rousseff”. Aquilo deu nisto, as diretoras parecem dizer.
Mas esse início dá também uma pista sobre o esquema expositivo adotado pelo filme, qual seja, o de não sair do palácio, não se dispersar geograficamente. Toda a turbulência do que acontecia no Congresso e nas ruas só nos chega por meio dos aparelhos de TV espalhados pelo enorme prédio, dos salões nobres à cozinha, da garagem aos gabinetes.
O som e a fúria dos tempos são, de certo modo, filtrados e amortecidos pelo próprio ambiente clean, inóspito e frio do Alvorada – daí que o filme talvez tenha um travo de anticlímax quando cotejado com documentários mais vibrantes e dramáticos, como O processo, de Maria Augusta Ramos, e Democracia em vertigem, de Petra Costa. Não por acaso, três longas-metragens dirigidos por mulheres.
A ideia original das diretoras Anna Muylaert e Lô Politi, explicitada em entrevistas, era mergulhar na intimidade, ou pelo menos na personalidade de Dilma, tentando captar o que significava uma mulher ocupando aquele lugar tradicionalmente tão masculino.
Mas em algum momento do processo a abordagem parece ter-se bifurcado, e o interesse passou a ser duplo: a pessoa e o lugar, a mulher e o espaço físico, quase como se fossem dois filmes justapostos que ocasionalmente se tocam, um sobre Dilma e o outro sobre o Alvorada. Digo isso diante do resultado na tela, sem ter conversado com as diretoras a respeito.
O olhar que busca a intimidade possível de Dilma Rousseff por trás da persona política encontra muitas dificuldades, em grande parte graças à própria personalidade arredia da então presidente. “Eu não sou uma personagem o tempo inteiro”, ela declara a certa altura, depois de dizer que considera “invasiva e às vezes excessiva” a câmera que acompanha seus passos.
Raras vezes Dilma baixa a guarda e desfaz a fisionomia crispada de agente da História com “h” maiúsculo. Uma dessas vezes é durante uma entrevista a um jornalista argentino, em que ela admite gostar de tango e relembra que costumava ouvir Gardel na prisão, na vitrola de uma companheira de cela. Pouco depois, emite uma formulação um tanto confusa e intrigante: “Não sei se concordo que eu tenho que ser humana. Porque tem gente que acha que eu não sou. Será que eu sou o quê, então, se não sou humana?”
É estranha essa mulher cujos sorrisos parecem custar um enorme esforço, como se ela tivesse incorporado profundamente o conhecido poema de Brecht “Aos que vão nascer”, aquele que diz (na tradução de Paulo César de Souza): “Entretanto sabemos:/ também o ódio à baixeza / deforma as feições./ Também a ira pela injustiça/ torna a voz rouca. Ah, e nós/ que queríamos preparar o chão para o amor/ não pudemos nós mesmos ser amigos”.
É enorme o contraste entre a Dilma captada em Alvorada e o Lula retratado em Entreatos (2004), o documentário de João Moreira Salles sobre os bastidores da campanha lulista de 2002. Não só porque se trata de dois temperamentos opostos, mas porque um registrava um momento de ascensão e triunfo; o outro, de solidão e derrota.
Ainda assim, as diretoras tentaram captar a humanidade recôndita da ex-presidente. Há uma reunião com ministros e assessores, por exemplo, em que a câmera fica o tempo todo focada no rosto dela, entre o ombro de um participante e a cabeça de outro, entre um copo e um vaso de flor, enquanto outras pessoas falam – como num jogo de futebol em que se acompanha apenas os gestos de um jogador, mesmo quando a bola está longe dele.
Mas o resultado dessa perscrutação é limitado. Só o que vemos mesmo, no mais das vezes, é Dilma exercendo seu papel de Dilma, em conversas com ministros e assessores, em entrevistas internacionais, em audiências com movimentos populares, etc.
Por conta dessa aparente escassez de calor humano da protagonista, e de certo modo relacionada a ela, assoma ao primeiro plano a força opressiva do espaço e de seu funcionamento “automático”, por assim dizer. Aí reside talvez o interesse maior do documentário, ao mostrar o peso da instituição (a presidência da República) concretizado num edifício que parece ter vida própria, independentemente de quem o ocupa e de seus projetos políticos.
Alheios às refregas político-ideológicas, legiões de trabalhadores realizam suas tarefas diárias na cozinha ou nos jardins, um administrador vê-se às voltas com a água turva da piscina, um faxineiro limpa o teto altíssimo de um salão equilibrado numa escada de rodinhas, uma assessora escolhe os brincos da presidente num closet do tamanho de um apartamento. O palácio parece ser, alternadamente, escritório, teatro, tribuna política, sala de estar e, sobretudo, mausoléu.
A atmosfera que prevalece é de desolamento e solidão, acentuada pelo modo como se filma muitas vezes em plano aberto a pequenez dos indivíduos diante do espaço. Os ruídos se amortecem, as palavras parecem sussurradas. Naquele mundo retilíneo de concreto, aço e vidro, todo sinal de vida parece suspeito, reprimido de antemão. A presença eventual de representantes de movimentos populares colore por momentos o ambiente, mas não chega a abolir sua atmosfera predominantemente fúnebre. “Aqui não é um lugar de morar”, diz Dilma a uma certa altura, embora aquela seja a “residência oficial” dos presidentes.
Nada representa mais claramente a artificialidade despropositada de todo o aparato palaciano que os Dragões da Independência marchando do nada para lugar nenhum na pista de asfalto em torno do Alvorada, hasteando e recolhendo a bandeira todos os dias com uma pompa meticulosa, sob o calor seco do Planalto Central, num patético arremedo do Palácio de Buckingham ou do Vaticano.
Perto do final do filme, uma grande ave (um jacu, talvez) entra inadvertidamente numa área envidraçada do palácio e depois tenta sair chocando-se repetidas vezes contra o vidro imaculadamente transparente, até que um funcionário piedoso a afugenta para dois metros adiante, onde acaba o vidro e ela pode voar em liberdade. Por algum motivo, essa me pareceu a cena mais eloquente e perturbadora de todo o documentário.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cinema: Alvorada, o castelo da solidão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU