28 Mai 2021
Se os bispos estadunidenses proibissem a Comunhão para políticos pro-choice, o que isso significaria para os outros bispos? Como a Igreja pode proibir políticos pro-choice de receberem a Comunhão nos Estados Unidos, mas não na Europa e na América Latina?
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 27-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Vaticano surpreendeu muitos católicos e políticos recentemente quando jogou um balde de água fria sobre um plano de alguns bispos estadunidenses para proibir os políticos católicos pro-choice de receberem a Comunhão.
É bem sabido que a Igreja Católica se opõe ao aborto. O Papa Francisco, apesar de todo o seu discurso sobre a compaixão e o perdão às mulheres que buscaram o procedimento, não está prestes a mudar o ensino da Igreja sobre o aborto.
Mas, assim que os bispos dos Estados Unidos se moveram para redigir um documento esclarecendo a sua posição sobre a Comunhão, o cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu ao presidente da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) dizendo-lhe que “o efetivo desenvolvimento de uma política nessa área requer que o diálogo ocorra em duas etapas: primeiro, entre os próprios bispos e, depois, entre os bispos e os políticos católicos pro-choice dentro das suas jurisdições”.
Além disso, ele lembrou ao arcebispo José Gomez, de Los Angeles, presidente da USCCB, que a Conferência não pode usurpar a autoridade do bispo local de determinar quem pode ou não receber a Comunhão em sua diocese.
Isso foi amplamente interpretado como se o Vaticano estivesse pisando no freio dos esforços dos bispos católicos conservadores de negar a Comunhão a políticos pro-choice, como o presidente Joe Biden.
Então, o que está acontecendo aqui? Se o papa é contra o aborto, por que o Vaticano está intervindo na ação dos bispos estadunidenses?
Em primeiro lugar, o ensino católico, pelo menos desde os tempos de Santo Agostinho de Hipona e de São Tomás de Aquino, distingue entre o que é imoral e o que deveria ser contra a lei. Ambos os santos, por exemplo, se opuseram à criminalização da prostituição.
Tomás de Aquino sentia que era ruim para a sociedade ter leis que um grande número de pessoas não obedeceria. Tais leis, como a tentativa malfadada dos Estados Unidos durante a Lei Seca, levariam ao desrespeito à lei em geral, o que seria prejudicial à ordem pública.
Assim, é possível para um católico acreditar que o aborto é imoral, mas, ao mesmo tempo, fazer o julgamento prudencial de que tornar o aborto ilegal hoje seria prejudicial ao bem comum, porque a lei, como a Lei Seca, não só não seria observada, mas também levaria à não observância de outros leis.
Por se tratar de um julgamento prudencial, é algo sobre o qual os católicos, incluindo os próprios bispos, podem discordar.
E eles discordam. O Vaticano sabe que os bispos estadunidenses estão divididos sobre a questão da Comunhão, o que levanta o véu sobre o mito de um magistério unido. É difícil apresentar uma fachada solene quando os bispos estão discutindo em público.
O regime de Francisco também não vê as Conferências Episcopais como assembleias em que as controvérsias possam ser resolvidas por uma maioria de votos – não mais do que o fizeram os papados de João Paulo II e Bento XVI.
Por exemplo, as regras da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, que foram aprovadas por Roma, sempre exigiam que uma carta pastoral recebesse pelo menos dois terços dos votos de todos os bispos. Tradicionalmente, os bispos estadunidenses ficavam chateados quando mais de 10% dos bispos se opunham a um documento.
Sob lideranças como o cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, os bispos trabalhavam na busca do consenso, fazendo concessões e aceitando modificações nos rascunhos de declarações que visavam a aumentar o apoio entre os bispos.
Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger foi ainda mais exigente. Ele queria unanimidade dos bispos, o que, em grandes conferências como a USCCB, muitas vezes era impossível.
Em 1998, o Papa João Paulo II ordenou, em sua carta apostólica Apostolos suos, que, sem unanimidade, os bispos teriam que receber a aprovação do Vaticano para qualquer declaração doutrinal. Na época, isso significava a aprovação de Ratzinger.
Em terceiro lugar, o Vaticano sempre se preocupou com o modo como as ações da USCCB afetariam outros bispos ao redor do mundo. Na maioria dos países europeus, o aborto é legal e não é mais uma questão política; na América Latina, o movimento pró-escolha está crescendo em força.
Se os bispos estadunidenses proibissem a Comunhão para políticos pro-choice, o que isso significaria para os outros bispos? Como a Igreja pode proibir políticos pro-choice de receberem a Comunhão nos Estados Unidos, mas não na Europa e na América Latina?
O Vaticano não gosta quando várias Conferências Episcopais dizem coisas diferentes sobre questões morais ou doutrinais importantes.
Novamente, este é um problema antigo. Quando os bispos dos Estados Unidos estavam trabalhando na sua carta pastoral sobre guerra e paz, o Vaticano estava preocupado que os bispos dos Estados Unidos pudessem dizer que a dissuasão nuclear era imoral, enquanto os bispos franceses e alemães diziam que estava tudo bem.
Os católicos ficariam confusos se os bispos de um país dissessem uma coisa, enquanto os bispos de outro país dissessem o contrário.
Os redatores estadunidenses foram chamados a Roma para discutir esse problema. No fim, eles deixaram uma lacuna em sua carta sobre as armas nucleares como meio de dissuasão, enquanto os países avançavam rumo ao desarmamento nuclear total. O mesmo processo se repetiu com os bispos latino-americanos, quando a USCCB estava refletindo sobre a justiça econômica.
Por fim, o Vaticano é um ator internacional no cenário mundial que adota uma abordagem pragmática nas relações com os governos nacionais, especialmente Washington. Roma tira a ênfase das disputas e enfatiza áreas onde ela possa trabalhar junto com outras pessoas pelo bem comum.
Negar a Comunhão a Biden nos Estados Unidos tornaria difícil para o Vaticano trabalhar com o presidente em questões de interesse comum, como o aquecimento global, a Covid-19, o tráfico humano, a liberdade religiosa, os refugiados e o desenvolvimento econômico.
E como seria se Biden fosse comungar em Roma, enquanto a Comunhão lhe fosse negada em sua pátria?
Em suma, este é um caso em que o Vaticano prefere a ambiguidade. Isso não significa que se deva negar a Comunhão aos políticos pro-choice; também não significa que não haja problema no fato de políticos pro-choice irem comungar.
Se há um debate sobre o que os bispos devem fazer, o Vaticano prefere que ele seja realizado a portas fechadas e não vê a necessidade de concluir rapidamente essa discussão, mesmo que isso signifique que a questão não seja resolvida durante a presidência de Biden.
Os católicos progressistas, que estão encantados com esta intervenção vaticana, devem lembrar que, nos tempos de João Paulo II e Ratzinger, eles reclamavam amargamente de tais intervenções do Vaticano. Da mesma forma, os católicos conservadores, que aplaudiam quando João Paulo II e Ratzinger enfrentavam a USCCB, devem lembrar que aquilo que vai sempre volta.
Nem os conservadores nem os progressistas estão comprometidos com o processo; eles só querem levar a melhor. Para Francisco, por outro lado, o processo é muito importante, por isso ele fala com tanta frequência do seu desejo de uma Igreja sinodal. Mais diálogo, para ele, é algo bom, mesmo que isso signifique atrasos na tomada de decisões.
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Quatro razões por trás da ação do Vaticano sobre a Comunhão a políticos pró-escolha. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU