25 Mai 2021
Com doações que se tornam compras e outras estratégias, o Brasil dos grandes varejistas mostra otimismo em meio ao agravamento da pobreza.
A reportagem é de Mariana Costa, publicada por O Joio e O Trigo, 24-05-2021.
Leite, frutas, legumes e carne deram lugar a medo, ansiedade e insegurança na mesa da família Gomes, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. Mãe de quatro crianças, Juciane Gomes passou a conviver com o fantasma da fome e excluiu da lista itens que antes eram essenciais na despensa. A alimentação tornou-se um gasto difícil de arcar, com os filhos de 15, 13, 9 e 6 anos sem ir para a escola. “Muitas vezes deixei que acordassem na hora do almoço e pulassem o café. Orava para que eles não falassem ‘mamãe, tô com fome’. Vi meu esposo deixando de comer pra dar pra eles”, recorda.
Com a redução e a interrupção do auxílio emergencial, as coisas que já não eram fáceis foram se agravando ainda mais. “Os grandes gostam de tomar leite, mas deixam pros pequenos. O leite deixou de ser essencial, fruta e legumes são luxos. Carne só mesmo em dia de festa. A gente tem se mantido como dá”, conta ela. Juciane tem 38 anos e, em março, foi contaminada pelo covid-19 e precisou se isolar em casa. As crianças ficaram sob os cuidados do padrasto, que acabou demitido por causa das faltas. Ambos estão desempregados.
A história da família Gomes é um retrato dramático de um país onde seis a cada dez pessoas enfrentam algum nível de incerteza sobre se haverá comida suficiente na mesa, segundo o mais recente levantamento sobre o tema. A pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil” estima que 15% dos brasileiros, incluindo crianças, enfrentarão insegurança alimentar grave, ou seja, fome diária e constante, ao longo de 2021.
Mas existe um Brasil em que as coisas vão muito bem e as perspectivas são bastante otimistas. Este é o país do setor supermercadista, que viu disparar vendas e margem de lucro em 2020. Em uma ponta, a população pobre e os que perderam renda correm para os atacarejos, que concentram mercado e operam com custos baixos, conseguindo, assim, oferecer o menor preço. Na outra ponta, as vendas por meios digitais também dispararam atendendo aos setores da classe média e alta, que passaram a se alimentar em casa com mais frequência e foram menos afetados pela pandemia.
Enquanto o Brasil afunda em uma crise humanitária sem precedentes, os dois grupos que concentram a maior fatia do varejo de alimentos no país, Pão de Açúcar e Carrefour, não escondem a euforia com resultados recordes. “O nosso modelo de negócio surfa bem em deflação, em inflação, em concorrência, sem concorrente, e nós estamos demonstrando isso. Esse ano de 2020 nós aproveitamos, sim, uma volatilidade bastante forte dentro das commodities, principalmente. (…) Nós conseguimos surfar nessa oportunidade, o que gerou um resultado acima das nossas expectativas”, resumiu Roberto Müssnich, diretor do Atacadão, ao comentar os resultados de 2020.
O Atacadão pertence ao grupo Carrefour e fechou o ano passado com R$ 47 bilhões em vendas, 23% a mais do que no ano anterior, enquanto seu concorrente direto Assaí, que pertence ao Pão de Açúcar, somou R$ 39,4 bilhões, resultado 30% maior que em 2019. A migração de consumidores para os atacarejos em busca de preços mais baixos foi tão forte que compensou a queda nas vendas para restaurantes, mercadinhos e lanchonetes. Todos os números são os oficialmente divulgados pelas empresas.
“O que nós temos observado até o momento é que, no fim, o cash acelerou um pouco mais essa migração de clientes, de consumidores de outros formatos para o canal, (…) o que era esperado, o momento de crise, de incerteza, causa uma busca natural por canais de preço baixo. Ao longo de 2021, vamos ter impactos pelo fim do auxílio, mas é o canal que será menos impactado”, previu Belmiro Gomes, diretor do Assaí, em apresentação dos resultados da empresa.
O Carrefour Varejo contabilizou R$ 20,5 bilhões em vendas, resultado 12,5% maior que em 2020. Somando todas as operações do grupo – Atacadão, Carrefour Varejo e Banco Carrefour – o lucro líquido atingiu R$ 2,75 bilhões, um valor 43% maior do que o obtido em 2019. O Pão de Açúcar fechou 2020 com receita de R$ 31 bilhões em suas atividades no Brasil, cifra 8% maior do que a obtido no ano anterior. O faturamento do e-commerce do grupo cresceu três vezes mais que em 2019 e atingiu R$ 1,1 bilhão.
Fome, desemprego e crise são termos que não aparecem no vocabulário desses executivos. Nem mesmo a incerteza quanto à manutenção do auxílio emergencial este ano parece abalar o desempenho dos grandes varejistas. “Com auxílio emergencial menor, sem dúvida nenhuma você tem também valores menores destinados à alimentação, mas o crescimento continua”, previu Márcio Milan, vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em entrevista coletiva em abril. A entidade prevê uma alta de 4,5% no faturamento dos supermercados este ano, frente ao aumento de 9,6% registrado em 2020.
O negócio dos grandes varejistas de alimentos é estruturado de forma a maximizar ganhos e reduzir perdas, e essas redes ganham mesmo quando resolvem fazer doações. Uma campanha lançada pelas associações paulista e brasileira de supermercados (Apas e Abras) é um bom exemplo. A iniciativa estimula empresas e pessoas físicas a fazerem doações que serão revertidas em cartões individuais no valor de R$ 100 para serem usados nos próprios supermercados.
“Com R$ 100 você tem uma família alimentada por 30 dias, uma família de até cinco pessoas”, afirmou o governador de São Paulo, João Doria, o mesmo que, em 2017, quando o fantasma da fome já assombrava, propôs alimentar famílias pobres com uma ração humana feita de restos de alimentos.
Os primeiros 300 cartões foram doados pela própria Apas, um valor abaixo do mínimo estabelecido para as empresas, que devem fazer doações a partir de R$ 5 mil. A campanha exalta a liberdade de o consumidor escolher o que comprar e usar o benefício “quantas vezes quiser”. A Apas também anunciou, em parceria com a prefeitura de São Paulo, a instalação de 102 pontos de coleta para arrecadar alimentos não perecíveis comprados pelos clientes dos próprios supermercados. Fazer caridade com o chapéu alheio parece ser um bom negócio para o setor, garantindo faturamento e pontos positivos na imagem de seus associados.
A substituição de compras públicas de alimentos diretamente dos produtores por doações de grandes redes também revela uma face perversa dos negócios dos supermercadistas. Apenas no ano passado, o setor registrou 1,79% de perdas sobre o faturamento bruto em 2020. Parece pouco, mas não é. Esse índice representa um valor estimado em R$ 7,6 bilhões.
Em perdas, estão incluídos itens quebrados, furtados e vencidos. Os produtos vencidos e violados geram custo operacional para descarte correto. A Abras divulga que, entre “os principais fatores que impulsionaram as perdas dos perecíveis no setor supermercadista, estão: validade vencida (37,4%) e produto impróprio para venda (29,1%). Em relação aos produtos não perecíveis, a validade vencida também liderou as respostas dos participantes, 42,5%, seguida de produtos avariados, 29,1%.”
Doar alimentos, assim, pode ser um bom negócio também para reduzir custos, sem precisar gastar com operações de descarte.
Em São Paulo e em outros estados, a legislação tributária permite que doações de itens alimentícios classificados como “perda” possam ser feitas sem cobrança de ICMS. Entre eles estão alimentos vencidos, com embalagem danificada e impróprios para comercialização, como o “feijão de bandinha” nas primeiras cestas distribuídas às mães de crianças da rede municipal do Rio de Janeiro, ainda na gestão do prefeito Marcelo Crivella. “Era um saco todo assim. A alimentação vinha velha, com bicho. As mães me falavam: ‘Olha a cesta, veio desse jeito’. E eles diziam que era mentira nossa”, relembra Juciane Gomes.
A falta de assistência do poder público fez com que 2 mil mulheres se unissem no grupo Passeata das Mães para reivindicar assistência com a alimentação no período de aulas em casa. Não foi uma luta fácil até que se estabelecesse o valor mensal de R$ 54 por criança, em agosto do ano passado, também em cartões a serem gastos nos supermercados.
“Foi muita luta. E as mães tiveram que comprar nos mercados que aceitavam, muitas tendo que pagar passagem de ônibus. E comprar menos do que compravam, imagina, com o preço exorbitante do pacote de arroz chegando a R$ 19, R$ 25”, lembra Jociane, que passou a ter crises de ansiedade e depressão. “É fácil pro governo dar assistência, mas o que a gente quer é oportunidade. Oportunidade de ter um emprego, de fazer um curso, uma faculdade. Sujeitar essas mulheres a pegar um benefício do governo é mais fácil e custa bem menos do que ajudá-las a andar com as próprias pernas”, conclui.
O abismo que separa o Brasil da família Gomes e o Brasil desses executivos se aprofunda na medida em que há omissão do poder público em ligar as pontas entre quem produz comida e quem tem fome, garantindo alimentação saudável e proteção à agricultura familiar. A segurança alimentar foi entregue às regras do mercado, para quem a fome e a desigualdade são ingredientes fundamentais para o sucesso dos negócios.
Um dado difundido pela Abras na edição de abril de sua revista também ajuda a entender como o impacto maior dos alimentos no orçamento familiar é benéfico para o setor e prejudicial para a população. A cesta de alimentos cresceu 5,6% em volume e 14,8% em valor na comparação entre 2020 e 2019. Gasta-se mais, compra-se menos. E come-se mal.
Almôndegas, quibes, nuggets, tortas, hambúrguer, batata congelada e pastel estiveram entre os alimentos industrializados perecíveis que mais foram comprados no ano passado nessa categoria, segundo a Abras. Diversos estudos vêm apontando o aumento no consumo de ultraprocessados e dificuldades no acesso a alimentos frescos e mais saudáveis neste período da pandemia. Isso agrava a incidência de doenças crônicas e obesidade, fatores de risco para o Covid-19.
Houve diminuição de mais de 85% no consumo de alimentos saudáveis entre famílias que se encontravam em situação de insegurança alimentar entre agosto e dezembro de 2020. O grupo das carnes registrou a maior redução (44%), seguido das frutas (40,8%), queijos (40,4%) e hortaliças e legumes (36,8%), apontou a pesquisa sobre os efeitos da pandemia na alimentação no Brasil.
A solidariedade alimentar é fundamental diante da urgência de quem tem fome, além de estimular um genuíno sentimento de colaboração. Mas ela também ajuda a ocultar as razões estruturais do problema e a omissão do Estado em garantir o que é um direito. A adoção de uma cartilha de austeridade e o agravamento da crise econômica, com aumento do desemprego, precarização e perda do poder de compra, se somaram ao desmonte sistemático de políticas públicas de seguridade social que seriam capazes de amortecer ou ao menos reduzir os impactos causados pela pandemia na mesa do brasileiro.
Os efeitos dessa mudança na agenda pública, iniciada no governo de Michel Temer e intensificada por Jair Bolsonaro, começaram a ser sentidos rapidamente na ponta, ou melhor, no prato, apenas três anos depois de o Brasil sair do Mapa da Fome, em 2014. “Em 2017 a gente retomou o Natal sem Fome depois de dez anos sem precisar fazer. Percebemos que essa situação tinha piorado”, afirma Daniel Souza, coordenador da ONG fundada por seu pai, o sociólogo Betinho. “Isso foi a pior tragédia porque, quando chega a pandemia, pega essa estrutura que ajudava a população mais desfavorável totalmente esfacelada. E vemos 125 milhões de pessoas com algum tipo de insegurança alimentar. Isso nunca foi visto antes, nem mesmo no início da Ação da Cidadania.”
A crise econômica influencia, mas está longe de ser o único fator que explica o aumento da insegurança alimentar no Brasil. A fome é fruto de uma decisão política que conta com o agenciamento e a cumplicidade dos grandes grupos varejistas, da indústria alimentícia e do agronegócio. “Por mais que a Ação arrecade 100 mil toneladas de alimentos, isso é uma gota no mar perto do que é necessário. A única coisa que pode erradicar a fome ou pelo menos frear esse abismo é a política pública. É o governo que tem recurso, estrutura, capacidade e, principalmente, a obrigação de combater a fome”, afirma Daniel Souza.
A pandemia comprometeu a capacidade de produzir e distribuir alimentos, sem que o poder público interviesse para reduzir esse impacto. A opção de conceder benefícios emergenciais com o uso de cartões deixou de fora pequenos produtores, que tiveram dificuldades em escoar a produção com as medidas restritivas e a interrupção das compras de alimentos para merenda escolar. Excluiu também feirantes, mercados de bairro e redes menores, que não conseguem cobrir os preços dos atacarejos e hipermercados. Isso restringe a decisão de compra das famílias, ao definir onde e que tipo de produto é possível adquirir.
No Brasil que não passa na TV, redes de agricultura familiar dão um exemplo que vai na contramão dessa lógica. Quando a pandemia começou, a AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, uma entidade sem fins lucrativos voltada a dar assessoria técnica para produtores agroecológicos, se viu diante da necessidade de atuar também na assistência alimentar. Por meio de editais de fundos emergenciais, conseguiu captar recursos privados para comprar alimentos de pequenos produtores e distribuí-los para quem precisa, em um modelo em que todos ganham.
“A gente queria abarcar maior diversidade de fornecedores para apoiar o máximo possível de agricultores e trazer diversidade para quem está recebendo. E usar esse recurso para a compra de alimento vindo necessariamente da agricultura familiar agroecológica e orgânica”, explica Mariana Portilho, assessora técnica do programa de agricultura urbana da associação.
E assim cerca de 50 toneladas de arroz, feijão, farinha, canjiquinha, fubá, abóbora, aipim, batata doce, jiló, inhame, alface, espinafre, couve, cebolinha, salsinha, caqui, banana, ponkan, limão abacate e abacaxi chegaram à mesa de quem precisa nos estados em que a AS-PTA atua. “Esses agricultores perderam espaço de venda na pandemia e tiveram muita dificuldade de escoamento da produção. Essa iniciativa ligou as duas pontas, apoia tanto quem produz como quem precisa”, afirma Portilho.
Na cidade do Rio de Janeiro, os desafios logísticos de armazenamento e transporte de alimentos, a maioria altamente perecíveis, e de enfrentar territórios dominados por traficantes e milicianos só foram superados graças à articulação de redes já existentes que conectam quem produz e quem precisa. “Apesar de todos esses desafios, quando a gente tem o recurso para facilitar que essas dificuldades sejam minimizadas, a coisa acontece”, pondera Portilho. “Não é impossível. É só ter investimento e principalmente interesse.”
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Quando a fome vira negócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU