13 Mai 2021
Desde 2016, contrarreformas desmontam entidades e políticas de combate à miséria. Fim dos R$ 600 aprofundou tragédia. Solidariedade pode mitigá-la, mas saída requer enfrentar o casamento nefasto entre neoliberais e fascistas, escreve José Álvaro de Lima Cardoso, economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina, em artigo publicado por OutrasPalavras, 11-05-2021.
Uma das grandes tragédias do Brasil neste momento é o aumento impressionante da miséria e da fome. A confluência de crise econômica mundial, pandemia, inflação alta e explosão do desemprego, está levando a uma escalada da fome. O Brasil tinha saído do chamado Mapa da Fome em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família, grande crescimento do emprego formal e em função das políticas integradas, como a garantia de financiamento para os pequenos agricultores. Com as políticas adotadas pelo golpe de 2016, todas no sentido da desmanche dos direitos, o país está voltando ao famigerado mapa, rapidamente. Um país entra no Mapa da Fome da ONU quando a fome regular atinge 5% ou mais de sua população. Há estimativas dos órgãos especializados de que o número de pessoas com fome crônica no Brasil já esteja próximo dos 10%.
Já em 2016 todos os indicadores de pobreza e concentração da riqueza pioraram rapidamente, apontando para uma situação, a qual a pandemia somente apressou e agravou. Toda a política do governo Bolsonaro conduz a esse resultado. Desde as políticas mais complexas – como a entrega de refinarias –, até as mais corriqueiras, como atrasar a ajuda aos famintos em meses, por pura crueldade. Apesar da renda emergencial ter acabado em dezembro, o governo começou a pagar o benefício de 2021, de valor miserável, somente em 06 de abril, quase quatro meses depois.
Mesmo com o rápido empobrecimento da população e de variantes mais letais da pandemia, o governo, impactado pela forte queda de popularidade, recriou o benefício apenas no dia 18 de março, através de três Medidas Provisórias. O benefício é ainda de valor inferior, variando de R$ 150 (para quem mora sozinho) a R$ 375 (para famílias chefiadas por mulheres). O pagamento da nova renda emergencial será realizado em quatro parcelas e teve início em 6 de abril.
No ano passado a massa de rendimentos mensal do trabalho caiu 6%, passando de R$ 217,8 bilhões para R$ 204,9 bilhões, segundo o IBGE. São R$ 13 bilhões a menos no orçamento dos trabalhadores, todos os meses, e um menor volume de renda disponível para o consumo, o que dificulta ainda mais a retomada do crescimento econômico. Neste ano a massa salarial já teve em janeiro a segunda redução mensal consecutiva, de acordo com dados do IBGE.
Além da queda da massa salarial, a alta do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no grupo alimentos, em 12 meses, foi de 15% – quase o triplo do índice geral. Com base na cesta mais cara que, em abril, foi a de Florianópolis, o DIEESE estima que o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ 5.330,69, valor que corresponde a 4,85 vezes o piso nacional vigente, de R$ 1.100,00. O cálculo é feito levando em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças.
O ano de 2020 chegou ao fim com 8,4 milhões de ocupados a menos do que em 2019, segundo a PNAD. Se cada um dos trabalhadores tiver 2 dependentes, já são 24 milhões de pessoas passando necessidade, ou prestes a passar. A queda de consumo destas pessoas, que necessariamente aconteceu, afeta outros setores, produzindo mais desemprego e miséria.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mostra que nos últimos meses do ano passado 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar. Segundo a pesquisa, 55,2% dos domicílios brasileiros (116,8 milhões de pessoas) conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020. Desse número, 9% deles enfrentaram insegurança alimentar grave, ou seja, passaram fome mesmo, nos três meses anteriores ao período de coleta, feita em dezembro de 2020.
A fome é um resultado quase que aritmético do conjunto de ataques contra a população a partir do golpe de 2016. São centenas de medidas (talvez acima de mil), todas contra os direitos e o povo. Além de medidas gerais, como a PEC do teto (EC 95, que congelou gastos primários do governo federal por 20 anos), vieram uma série de medidas menores, que elevou a fome no país. Por exemplo, em várias regiões do país, os governos federal, estaduais e municipais diminuíram ou eliminaram o fornecimento da alimentação escolar. Os governos foram interrompendo também o programa de apoio à aquisição de alimentos da agricultura familiar. Acabaram também os programas voltados ao semiárido do país, em especial em relação ao semiárido nordestino, como a construção de cisternas e outras iniciativas de apoio àquelas populações.
Com a Emenda 95 veio a base legal e política para esvaziar as políticas sociais e programas de transferência de renda. Equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos, foram fechados. Assim que tomou posse, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) não foi extinto, mas tem orçamento ridículo, de R$ 500 milhões que, assim mesmo, não foi executado completamente no ano passado.
A Ação da Cidadania, fundada pelo conhecido Betinho, está completando 28 anos. No ano passado a ONG arrecadou 10 toneladas de alimentos. Porém, segundo o seu presidente atual, a ajuda apresentou uma queda de 90% nos últimos meses, reflexo do fato de que a pobreza se espalhou na sociedade. A queda drástica nas contribuições está relacionada ao próprio empobrecimento dos trabalhadores. As pessoas foram perdendo o emprego, mesmo quando de ocupação informal. Empresas foram fechando, as pessoas foram morrendo, e os mortos são majoritariamente da classe trabalhadora.
Já na experiência passada no governo FHC tinha ficado evidente que o problema não será resolvido por ONGs e, sim, por políticas articuladas e financiadas pelo Estado. Ninguém pode ser contra a doação de alimentos, mesmo que fosse beneficiar a apenas uma pessoa. Mas é importante saber que doação de alimentos não irá resolver o problema. Esse aprendizado tivemos na própria campanha encabeçada pelo Betinho: apesar da grande repercussão da campanha, quando FHC concluiu o seu segundo governo, havia um número recorde de pessoas passando fome no país. O que a campanha do Betinho conseguia fazer de colherinha, a política neoliberal de FHC desfazia de retroescavadeira. É importante considerar que o problema da fome não é falta de alimentos. O Ministério da Agricultura anunciou agora uma a safra de mais de 272 milhões de toneladas de grãos. São 15,4 milhões de toneladas a mais que na safra 2019/2020.
A política de segurança alimentar que levou anos para ser parcialmente construída, os golpistas de 2016 destruíram rápida e obsessivamente. O espantoso retorno da fome no Brasil revela dois aspectos essenciais: 1) o fracasso das políticas neoliberais enquanto saída para a gravíssima crise econômica atual. Faz quarenta anos que a burguesia apresenta as mesmas políticas neoliberais para enfrentar os problemas econômicos, políticas que, basicamente, destroem a economia e agravam a pobreza; 2) outra coisa que fica evidente nesse processo é a crueldade das chamadas elites, que fazem questão de condenar uma parcela significativa da população brasileira ao martírio da fome, como se fosse uma maldição fascista.
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A fome retornou – mas o vírus foi só a gota d’água - Instituto Humanitas Unisinos - IHU