18 Mai 2021
O Brasil é campeão mundial em mortes de pessoas LGBTI+ do mundo. E o Nordeste é a região mais violenta do país. O que dizer do Semiárido?
17 de maio é uma data simbólica para chamar a atenção de todo o mundo para as diversas formas de violência contra a população LGBTQI+. No Brasil, então, esta data é mais do que urgente e necessária.
"É inegável o rastro de sangue LGBTQI+ derramado em território nacional, a ponto de o país aparecer na liderança de tais crimes no Mundo, sem que haja por parte do Estado brasileiro uma sinalização quanto às medidas mais urgentes para evitar essa tragédia neste grupo específico, apesar de existirem ações voltadas à população em geral", aponta um trecho do Relatório Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil em 2020, assinado pelo Acontece Arte e Política LGBTI+ e o Grupo Gay da Bahia (GGB).
Segundo o relatório, no Nordeste, a taxa de mortalidade destes sujeitos é a maior de todas as regiões do Brasil: 2,12 mortes para um milhão de pessoas. O Centro-Oeste e o Norte têm dados bem aproximados: 1,28 e 1,26, respectivamente. Sudeste é de 0,82 e Sul, 0,73.
E como esta realidade se apresenta no Semiárido? Qual a força que o preconceito e a discriminação exercem sobre as vidas de quem se percebe homossexual, trans, bissexual... no espaço rural? Como é ser sertanejo e ser gay?
Conversamos sobre este tema com Alexandre Pires, membro da coordenação executiva da ASA Brasil e da ASA Pernambuco e presidente da Associação Programa Um Milhão de Cisternas Rurais, a Oscip que faz o gerenciamento físico e financeiro dos programas executados pela ASA.
Nascido no Sertão de Pernambuco, Alexandre fala desta realidade como quem a conhece de perto, na carne. Fala como quem conhece muito bem o gosto ruim do preconceito culturalmente mantido numa sociedade conservadora.
Na adolescência, Alexandre se descobriu gay e só conseguiu aceitar, plenamente, esta condição quando começou a morar no Recife, capital pernambucana, apesar de contar com uma família acolhedora.
Na entrevista que concedeu à Asacom, Alexandre generosamente se permite falar de sua própria vida para refletir sobre o contexto que milhares de pessoas vivem no Semiárido de forma completamente invisibilizada. E, como tal, sem o suporte de políticas públicas de garantia da cidadania destes sujeitos de direitos.
Com voz reflexiva e muito cuidado para encontrar as palavras que melhor expressem suas ideias e sentimentos, Alexandre passeia o olhar desde a sua adolescência até a chegada nos espaços de coordenação no Centro Sabiá e na ASA. E com voz mais ligeira, de quem já está acostumado com o discurso, ele fala sobre o lugar da defesa dos direitos das populações LGBTQI+ dentro do paradigma da convivência com o Semiárido e da agroecologia. Além de comentar sobre outras questões relacionados ao universo e especificidades da população LGBT do Semiárido.
Como foi para você, sertanejo, o processo de assumir a homoafetividade?
Ser gay é, no contexto da vida interiorana, da vida sertaneja, não é uma coisa muito simples. Na verdade, ela é recheada de preconceitos, de desconfianças, de esteriótipos, inclusive, sobre o sentido do que é ser sertanejo. Então foi criada uma ideia e um esteriótipo de que o sertanejo é um homem hétero e forte, robusto, com muita... com uma postura muito masculina. E ser uma criança, um adolescente criado nesta cultura, neste meio, e ela se descobre como LGBT, como gay, é sempre muito desafiador, muito difícil.
A pressão social sobre a vida de um adolescente, em quaisquer sociedade, ainda mais numa sociedade mais conservadora, mais machista, esse se assumir homossexual, se assumir gay é muito desafiante. Tem uma mistura de sentimentos de medo, de sentimentos de angústia, de tristeza, de sentimentos de não aceitação, da nossa própria não aceitação. Exatamente, pela pressão da sociedade, e a pressão que a gente exerce sobre a gente mesmo, então este sentimento, esse se assumir, passa a ser uma condição bastante difícil.
Mas, efetivamente, eu só me reconheço como um sujeito LGBT, e me aceito nesta condição, depois da minha saída do Sertão, de eu vir morar no Recife e de aqui eu ter descoberto que de que haveria uma possibilidade de viver esta sexualidade. De que o amor, vamos dizer assim, ele era possível. Você ter um parceiro do mesmo sexo movido pelos sentimentos do afeto, do amor, pelo carinho, pela atenção.
Pra mim, me assumir nesta condição de sujeito LGBT foi muito desafiante, foram muitas etapas passadas, desde a adolescência até a vida adulta, cheia de muitos desafios, mas também cheia de muitas demonstrações de alegria, de acolhimento, de cuidados. E eu sempre tive um acolhimento muito forte na minha família, pelos meus irmãos, pelos meus pais, que foram pessoas que eu encontrei encontrei segurança, inclusive, para seguir na vida a partir do diálogo e do encontro com eles.
Eu fico pensando também que o fato de ser um homem branco e ter tido uma família acolhedora, de alguma forma, foi importante pra que eu consiga superar em grande medida as várias expressões de preconceito e siga trabalhando, fazendo a luta que eu faço.
Que leitura que você faz do Semiárido como ambiente de vida para quem tem uma orientação sexual diferente da heterossexualidade?
Eu acho que vivemos numa sociedade muito preconceituosa, muito cheia de esteriótipos, de conceitos pré-definidos sobre as estruturas sociais e quem são os sujeitos de cada um desses lugares.
Então, eu acho que, no Semiárido, pegando principalmente grande parte da região Nordeste, falando um pouco mais do interior, eu acho que a gente vive ainda uma sociedade muito conservadora, muito fechada para a abertura das possibilidades de ser uma sociedade diversa, vamos dizer assim.
E eu avalio que, no âmbito da agricultura familiar, da agricultura camponesa, nós ainda temos um grau de conservadorismo muito grande, que precisa ser rompido, sob vários aspectos, sobre a perspectiva feminista, geracional, e também sob a perspectiva LGBT.
Eu avalio que, embora você tenha muitos casos de famílias, de amigos, de comunidades que acolhem as pessoas LGBT no seio de sua estrutura dando apoio, dando suporte, ainda é uma sociedade bastante conservadora, com um grau de violência que não é o que a gente vê nas páginas policiais nos veículos de imprensa, porque o Brasil é um dos países que mais mata a população LGBT, principalmente, a população negra, LGBT, da periferia.
Mas acho que no Semiárido a gente vive uma condição de violência moral, de violência simbólica, que é os filhos precisando sair de casa para viver sua sexualidade porque não encontram acolhimento na família. Mesmo em alguns casos, as famílias que acolhem têm uma determinada resistência de tratar sobre o assunto, de lidar de forma aberta com esta situação.
Então, acho que para quem vive no Semiárido, para quem vive na zona rural, como sujeito LGBT é ainda uma situação bastante desafiante porque esta expressão da homofobia surge, aparece, e muitas vezes as pessoas não têm nem a consciência de que estão sendo preconceituosas, estão sendo homofóbicas. E isto passa por uma perspectiva que é de educação.
No entanto, avalio que estamos caminhando para um contexto de mudança nas estruturas sociais, com mais abertura da sociedade principalmente pela disposição dos e das jovens LGBTs que enfrentam o desafio de se mostrar como são e quem são e cobram da sociedade uma postura de respeito a sua condição. Essa mudança na forma de pensar e agir na sociedade é muito positiva, mas ainda muito lenta.
Estamos falando numa perspectiva cultural. E ela é uma mudança a médio e longo prazo. De toda forma, é preciso ter uma política do ponto de vista da educação, da formação das famílias, as próprias estruturas sociais como as igrejas. Os governos precisam reconhecer a existência da diversidade dos sujeitos, de orientações sexuais diversas, de forma específica, reconhecer a existência da população LGBTQI+ na sociedade e entender que é preciso tratar disso de forma explícita, como um processo educacional e de mudança estrutural na sociedade que a gente tem.
Como é ser gay e ocupar um espaço de destaque para o Semiárido?
Eu achei, em algum momento, que seria mais difícil ocupar estes espaços de poder no âmbito das organizações do Semiárido. Estar na coordenação da ASA, na presidência da AP1MC, seria algo mais difícil de ser enfrentado. No entanto, no caso do Centro Sabiá, que é uma organização não governamental que luta por direitos, embora o foco seja, historicamente, a luta pela segurança alimentar, o combate à fome, por um modelo de agricultura de base agroecológica, e, talvez, por esta perspectiva mesmo, o Centro Sabiá sempre se pautou na defesa dos direitos das minorias, das populações excluídas dos processos de desenvolvimento e das estruturas sociais.
Eu coordeno o Centro Sabiá há 10 anos, senti internamente algumas falas que conotavam brincadeiras e posturas homofóbicas, mas de pessoas, e não da política institucional. E isso permitiu que eu pudesse reagir e, com isso, firmar este lugar no sentido do respeito a mim, como sujeito LGBT, e também no meu lugar de coordenador/gestor da organização.
No âmbito da ASA, estou na ASA Pernambuco desde 2011 e na coordenação desde 2015 e, na coordenação da ASA Brasil, na presidência da AP1MC, desde agosto de 2018. Nunca senti, na verdade, nenhum tipo de expressão que me agredisse como sujeito LGBT ou que agredisse a outros e a outras.
A gente sempre encontra um pouco das brincadeiras e das falas que também são muito comuns numa relação com as mulheres, sempre num campo privado e do qual eu sempre mantive uma postura muito firme de combater este tipo de brincadeiras ou de expressões que, de alguma maneira, gerasse algum tipo de sentimento de preconceito.
E, talvez a minha postura, o meu esteriótipo não traga para as pessoas um tipo de homofobia, de preconceito. E impus também, na minha forma de tratar com as pessoas, a minha condição. Talvez, seja isso, o fato de eu ser mais discreto com relação a minha vida privada e a minha sexualidade, eu também não tenha sentido isso nestes espaços. Ser quem somos, da forma que somos discretos ou escrachados, não importa, o que importa é sermos nós mesmos e sermos respeitados pelo que somos.
Embora, do ponto de vista das estruturas de uma forma geral, ser gay nestes espaços da política, de estar na Assembleia Legislativa, de estar na Câmara dos Deputados, numa audiência pública com parlamentares, às vezes, impõe à gente uma necessidade de um determinado rigor de narrativa e de postura heteronormatizada. Esses espaços de poder são heteronormatizados, não são espaços abertos para a diversidade sexual. Então, às vezes, me sinto em algumas estruturas e alguns espaços um pouco oprimido e obrigado a essa condição de postura comedida.
Dentro do paradigma da Convivência com o Semiárido, qual o lugar para a defesa do direito da livre orientação sexual?
Quando a gente tá falando da convivência com o Semiárido e da agroecologia, nós estamos falando de uma abordagem que pode parecer, na sua expressão, uma abordagem muito voltada para a perspectiva ambiental, produtiva e tudo mais. Mas, antes de tudo, precisamos compreender que, quando se discute a convivência no Semiárido, a gente está discutindo numa perspectiva ambiental, estamos discutindo numa perspectiva política, econômica, cultural, ética.
Então, quando estou discutindo a convivência com o Semiárido sob estas perspectivas, eu preciso incluir na leitura da convivência com o Semiárido, um conjunto de sujeitos políticos, o respeito ao direito desses sujeitos pelas suas condições e pelas suas identidades.
Então, não dá, pela minha leitura, para se pensar a convivência com o Semiárido do debate descolado sobre o feminismo, sobre a autonomia econômica das mulheres camponesas, sobre o acesso da juventude às estruturas da terra, do acesso à água, dos direitos econômicos e ambientais.
Nesta mesma perspectiva, eu penso que a partir do paradigma pela convivência com o Semiárido, a luta pelo reconhecimento e respeito à diversidade de sujeitos e, de forma específica, dos sujeitos LGBTQI+, precisa ser incorporada como uma perspectiva necessária.
Como a gente diz que 'Sem feminismo, não há agroecologia", também sem o respeito às populações LGBTQI+ não há agroecologia, não há convivência com o Semiárido. Porque tudo vai ser pela metade.
Ou seja, não posso pensar no processo de convivência com o Semiárido no qual as famílias tenham acesso à água, tenham acesso à terra, às sementes crioulas, a mercados solidários, a uma melhoria de vida material, acesso à educação, à formação, mas dentro destas famílias, dentro destas casas, exista a opressão, a repressão, a LGTBfobia.
É preciso que se discuta, na perspectiva da convivência, também o respeito a essa diversidade de sujeitos que fazem o Semiárido. Porque o Semiárido é formado também por mulheres, por jovens, por LGBTs, por negros, por indígenas, por quilombolas.
Ou seja, nós somos um Semiárido, um território de diversidade de sujeito. E dentro desta diversidade de sujeito tem a população LGBT que, muitas vezes, é esquecida, pouco visibilizada, seja pelas organizações, pela nossa rede ASA, de forma geral.
É preciso fazer o debate sobre esse espaço de direito desses sujeitos. O lugar do direito de viver a sua condição de LGBT precisa ser reconhecido dentro do paradigma da convivência com o Semiárido, dentro do paradigma da agroecologia.
Existem políticas públicas voltadas para a garantia da cidadania das pessoas homoafetivas na região semiárida? Você conhece alguma iniciativa mais local, inclusive, de estados e municípios?
Eu não tenho conhecimento sobre políticas a nível de municípios ou de governos de estado que garantam essa perspectiva da cidadania das populações LGBTQs no Semiárido. Acho que é, inclusive, uma ausência causada também pela ausência de informações sobre a população LGBT rural e a população LGBT do Semiárido de um modo geral. No fundo, esses sujeitos são invisibilizados. Do ponto de vista das políticas, é como se eles não existissem, então, consequentemente, não temos políticas públicas voltadas para este segmento.
Inclusive, o Centro Sabiá e o Cetra, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no campus de Caicó, estamos construindo uma pesquisa sobre dados da população LGBT rural no Semiárido.
Eu acho que este é um grande desafio da comunidade LGBT de se associar a pesquisadores, a instituições de pesquisa, que assegurem processos de pesquisa e que os resultados possam ser, de alguma forma, apresentados à gestão pública.
Garantir estes dados e informações para o poder público, primeiro, possibilita tirar da invisibilidade estes sujeitos que estão que no rural, no Semiárido. E, ao mesmo tempo, permite que a comunidade LGBT, num processo de organização política, reivindique políticas que assegurem recursos, iniciativas que valorizem essa população tirando do isolamento social e da invisibilidade perante a sociedade.
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“Não posso pensar na convivência com o Semiárido se, dentro das casas, existe LGTBfobia”. Entrevista com Alexandre Pires da coordenação da ASA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU