17 Mai 2021
Há quase um ano, quando a Organização Mundial da Saúde – OMS e os governos estavam sob um intenso escrutínio a respeito da gestão da pandemia, encarregaram um grupo independente com a tarefa de explicar o que falhou e, sobretudo, como evitar que volte a ocorrer. Nesta quarta-feira [dia 12], o painel de especialistas que examinou a resposta internacional à COVID-19 apresentou suas conclusões, após oito meses de trabalho.
Em seu relatório final, o Painel Independente de Preparação e Resposta à Pandemia esmiúça quais são os erros que levaram a uma catástrofe “evitável”. O mundo não estava preparado, a OMS não teve os poderes necessários, e fevereiro de 2020 foi um “mês perdido”, em que a maioria dos países optaram por “esperar para ver”, em vez de tomar medidas firmes.
O grupo, liderado pela ex-presidenta da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, e a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark, acredita que a pandemia é “o momento Chernobyl no século XXI”. Não quer que este seja mais um entre tantos relatórios sobre crises sanitárias que empoeiram uma estante. Pede reformas que transformem o sistema, que consideram claramente inadequado para enfrentar patógenos como o que causa a COVID-19.
Michel Kazatchkine (Courbevoie, França, 1946) é um dos 11 especialistas que compõem o grupo. Há 30 anos, como médico, pesquisador e político, trata do HIV/Aids e grande parte de seu trabalho dentro do painel se concentrou no acesso às vacinas contra o coronavírus. Entre outras coisas, Kazatchkine foi diretor do Fundo Mundial contra a Aids, a Malária e a Tuberculose.
A entrevista é de Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 12-05-2021. A tradução é do Cepat.
Vocês acabam de apresentar suas conclusões, após oito meses de trabalho. Como foram? Quais dificuldades encontraram?
Somos um grupo de 11 membros, com duas copresidentas, provenientes do mundo todo: norte-americanos, latino-americanos, asiáticos, africanos e europeus. Abarcamos muitos elementos nestes oito meses, mas contamos com a ajuda de um pequeno “exército” de especialistas e acadêmicos de todas as partes contratados durante seis meses para, especificamente, reunir, analisar os dados para nós e responder as perguntas que nós, como painel, fazíamos.
Nós nos reunimos seis vezes, em sessões plenárias de dois dias consecutivos. Entre as sessões plenárias, reuníamo-nos em subgrupos. Eu, por exemplo, fiz parte do subgrupo sobre o acesso às vacinas, os tratamentos e o diagnóstico. Desde a primeira reunião, dissemos que queríamos que o nosso relatório fosse muito concreto nas recomendações e muito audacioso para que não parecer um relatório da ONU, dizendo que precisamos de “mais dinheiro, mais liderança política e mais trabalho no futuro”.
Não encontramos muitas dificuldades, exceto que o panorama muda rapidamente, inclusive todos os dias, também agora. Outra exceção é que quando começamos, há oito meses, não imaginávamos que a desigualdade no acesso às vacinas seria tão flagrante como é hoje. Naquele momento, COVAX [o mecanismo global de distribuição equitativa] dizia que entregaria as vacinas em inícios de 2021.
Deixam claro que houve falhas na hora de proteger o mundo da pandemia e que o sistema não é adequado. Quais foram os erros mais decisivos?
É muito difícil dizer qual foi o mais decisivo, porque houve falhas em cada passo. Desde a informação, nos primeiros dias de 2020, até a declaração da emergência de saúde pública de importância internacional da OMS, que não foi acompanhada por nenhuma ação. Na Espanha, na Europa, todo o mês de fevereiro e talvez a primeira quinzena de março foram totalmente perdidos.
O diretor-geral da OMS declara a emergência de saúde pública, que é o maior grau de alerta que pode fazer ecoar, e ninguém reage. É uma grande falha. Em nosso relatório, argumentamos que se perdeu tempo no mês de janeiro, em parte, por causa da burocracia, porque o diretor-geral poderia ter declarado a emergência de saúde pública uma semana antes, caso tivesse seguido o princípio da precaução.
Mas a maior parte da perda de tempo foi posterior. E todos esses países que começaram a criticar que “a OMS chegou tarde, a OMS foi pró-China, a OMS não fez o seu trabalho” são países que fazem parte do órgão de governo da OMS, que são a Assembleia Mundial da Saúde e o que é chamado de Conselho Executivo, que se reuniu pela primeira vez em outubro de 2020. Foi um grande erro.
Também são incisivos a respeito da falta de preparação, apesar dos alertas prévios.
É claro, o outro fracasso é que os países não estavam preparados. O interessante é que isto vale tanto para os países ricos como para os pobres, para os que haviam obtido uma alta pontuação na avaliação da preparação e para os que obtiveram uma baixa pontuação.
E depois, existem as desigualdades dentro da população: entre ricos e pobres, os que têm acesso às ferramentas digitais e os que não, os que estão empregados e os que estão na economia paralela, os que têm uma rede de seguridade social e os que não. Isso marcou verdadeiramente o impacto socioeconômico da epidemia.
Foi muito trágica em relação às mortes e o sofrimento, e ainda continua, mas foi um grande desastre socioeconômico. Sendo assim, quando pensamos no futuro, isto significa que se preparar para uma epidemia não consiste só em ter reservas de máscaras, mas também em trabalhar na rede de proteção social.
Então, qual seria a principal lição de mais de um ano de pandemia?
A lição é a liderança. Os países com uma liderança que ouve a ciência, que fala com os cidadãos, que se compromete com as comunidades e que diz que está disposto a gastar dinheiro porque quer proteger sua sociedade são os que estão agindo mais ou menos bem.
Os políticos que negam a ciência (Donald Trump, Jair Bolsonaro...), os que não dialogam com os cidadãos e vêm com as decisões de cima para baixo são os que estão agindo mal. É evidente que todas estas questões de liderança são uma lição para os líderes no futuro.
A OMS foi questionada por sua gestão da pandemia. Essas críticas têm fundamento?
Sim e não. Não digo que a OMS tenha feito tudo certo. A OMS chegou tarde, em nosso relatório dizemos que ela deveria ter declarado a emergência de saúde pública ao menos uma semana antes. O doutor Tedros exagerou com a China, sem dúvida. A OMS não foi clara em algumas de suas recomendações, inclusive em relação às máscaras.
Aqui, na Europa, em março, estávamos debatendo sobre as máscaras. Sendo assim, há coisas que a OMS não fez bem. Além disso, a OMS desempenha um papel importante nos países, assessorando os governos sobre o que devem fazer. E em alguns países, suas funções não foram bem cumpridas.
Por outro lado, a OMS ainda não traçou uma estratégia para o mundo. Para onde queremos ir? Ou seja, estamos aplicando medidas de saúde pública, estamos vacinando a população..., mas o que queremos que aconteça ao final? A eliminação? Algum tipo de mitigação? Por isso, uma de nossas recomendações é que a OMS apresente uma rota que indique para onde queremos ir, que pode ser diferente de uma região para outra.
No entanto, por outro lado, a OMS elaborou mais de 1.000 recomendações e orientações, e esse é seu papel. Em outubro de 2020, apresentou um plano importante de pesquisa e desenvolvimento sobre o tipo de vacina que o mundo precisa. E, é claro, a imagem da OMS é uma imagem de liderança e independência, que pode ser criticada nos meios de comunicação ocidentais, mas as pessoas que vivem em países mais distantes da agitação do Ocidente acreditam e confiam na OMS.
Queremos reformas na OMS, queremos que seja livre da política e que tenha mais autoridade. Queremos que seja apenas uma agência científica. E se conseguirmos isso, todo mundo confiará.
Como a OMS poderia ser fortalecida?
Recomendamos algumas coisas. Uma é que se torne independente em seu financiamento. Neste momento, a maior parte do financiamento está direcionada. Por exemplo, a Espanha ou a França podem dizer: “Dou 40 milhões de euros para que vocês trabalhem em uma vacina contra a poliomielite no Paquistão”. Mas há muito pouco dinheiro sem destinação para fins específicos.
Portanto, a OMS pode estar sob a influência de seus doadores, inclusive dos privados, como a Fundação Gates. O que dizemos é que não deveria haver nenhum tipo de financiamento direcionado. Todo o dinheiro deve ir para um orçamento, sem qualquer restrição.
Os Estados membros deveriam se responsabilizar por dois terços desse orçamento como contribuições obrigatórias. E, depois, o terço restante ficaria aberto para uma conferência de reposição da qual os governos doadores, e também o setor privado, poderiam participar e contribuir, mas, novamente, desde que não seja direcionado.
Também recomendamos que o diretor-geral tenha apenas um mandato e não possa ser reeleito. Seu mandato poderia ser ampliado para sete anos, em vez de cinco, mas não deve ser reeleito porque, caso contrário, um ano antes das eleições, algumas de suas decisões podem ser fortemente influenciadas pela necessidade de construir sua base para a reeleição.
E em terceiro lugar, recomendamos a criação de um comitê permanente do Conselho Executivo, um pequeno comitê de membros que estejam constantemente prontos para as emergências, de modo que, caso algo aconteça, não esperem seis meses antes de se reunir. Ou seja, que no mesmo dia em que seja declarada uma emergência, possam dar apoio a qualquer decisão que a OMS tomar. São grandes reformas para a OMS e haverá muitos debates a esse respeito.
No relatório, vocês apontam países concretos por sua atuação. Há alguns meses, no relatório preliminar, disseram que as autoridades chinesas “poderiam ter aplicado medidas de saúde pública mais contundentes em janeiro”. Como avaliam a resposta da China?
Em nosso relatório, também afirmamos que não estamos aqui para culpar e envergonhar ninguém. Estamos aqui para aprender, e depois tirar lições, fazer recomendações. Claramente, a China, no plano positivo, identificou a doença muito rapidamente, em poucos dias. Descobriu que se tratava de uma nova doença, sequenciou o genoma no dia 2 de janeiro e o tornou público no dia 11 de janeiro, ou seja, muito rápido.
Depois, titubeou em relação à transmissão entre pessoas, e demorou até o dia 20 de janeiro, quando declarou que havia uma transmissão entre humanos. Isso poderia ter sido mais rápido, mas não é fácil. Por exemplo, a primeira suspeita de transmissão de pessoa para pessoa ocorreu porque um casal foi hospitalizado, marido e mulher. Mas não tinham o mesmo nome e não estavam hospitalizados na mesma ala do hospital. Sendo assim, ficou muito difícil rastreá-los. Estas são coisas que acontecem.
A China também publicou números que foram subestimados em termos de mortes e número de pacientes infectados, e impôs um confinamento muito duro na província de Hubei. Mas, ao final, agiu rapidamente e com muita decisão. E se você olha para as fotos agora, todo mundo está dançando, bebendo e tendo uma vida feliz em Wuhan, o que não acontece na Europa.
Qual é a sua opinião a respeito da resposta dos países europeus?
O que aconteceu na Europa é que não fizemos nada até o dia 15 de março. Quando primeiro aconteceu a tragédia na Itália, olhávamos como se isso não pudesse acontecer em nosso país. Desse modo, no momento em que nossos países decidiram agir, já havia muitos pacientes. Tivemos que lutar para ter máscaras e colocamos em marcha políticas de testes, rastreamento e isolamento às quais nossos países não estavam bem acostumados e o isolamento foi muito mal administrado.
Mas também era muito tarde para que fosse eficaz, desse modo, apenas mitigamos, confinamos e diminuímos as infecções. Depois, descuidamos e as infecções voltaram a crescer, e depois outra onda, e outra. E ainda não sabemos o que acontecerá no futuro. As vacinas provavelmente desempenharão sua função, mas que porcentagem alcançaremos? Não sei.
E também não sei se surgirão novas variantes que possam escapar das vacinas. Há muita incerteza. Por isso, seria útil que a Europa estivesse mais unida do que está, porque os países foram fechando fronteiras e decretando confinamentos sem ao menos comunicar o vizinho, o que é ridículo, porque entre Barcelona e Perpignan não existe fronteira, por exemplo. Tudo isso é lamentável, uma espécie de cacofonia.
Enfatizam muito a desigualdade atual no acesso às vacinas e a necessidade de redistribui-las imediatamente. Como avaliam a suspensão das patentes apoiada pelos Estados Unidos, na semana passada, para aumentar a produção?
A primeira coisa que é preciso fazer é redistribuir o excedente de vacinas. Os países ricos têm 4,4 bilhões de vacinas e sua população é de 1,16 bilhão de pessoas. É preciso redistribui-las, porque temos bem poucas oportunidades de aumentar a produção hoje em dia. A produção está quase no limite. Por isso, pedimos que sejam distribuídas 1 bilhão de doses até setembro, e também 2 bilhões até 2022.
Em relação à suspensão, o movimento dos Estados Unidos é um movimento político. Não mudará nada a curto prazo. Mas é um movimento muito importante a médio prazo. O que precisamos fazer agora é aumentar a capacidade de produção. Precisamos abrir novas instalações na Europa, na América Latina, na África. Talvez precisamos de uma na Europa do Leste. E precisamos de mais na Ásia.
Se pensamos nas vacinas mRNA, as mais flexíveis para se adaptar às variantes, precisaremos de 12 a 18 meses para estabelecer estas instalações. Sendo assim, nesses 12 a 18 meses, precisamos negociar as licenças voluntárias e a transferência de tecnologia, que acreditamos que seria o mais fácil, porque a transferência de tecnologia é muito importante para as vacinas.
No entanto, também dizemos que, caso que haja resistência, a OMC deveria impor uma suspensão em matéria de propriedade intelectual. Mas isso não é o suficiente, porque até mesmo com uma suspensão, sem transferência de tecnologia para uma vacina mRNA que reúne 100 pequenos componentes e elementos diferentes, você não consegue ir muito longe. É como se você lesse em um livro de receitas sobre como preparar uma paelha valenciana. Não é a mesma coisa de ir até Valência, cozinhar com alguém e aprender exatamente como fazer.
Recomendam a criação de um Conselho Mundial sobre Ameaças à Saúde. Qual seria o seu papel e em que consistiria o seu trabalho?
Precisamos de alguma autoridade, porque precisamos elevar as ameaças sanitárias ao nível de outras ameaças, como as nucleares ou a da mudança climática. No âmbito nuclear, pode haver inspeções de países, e queremos conseguir o mesmo com a ameaça sanitária.
Pensamos muito se essa autoridade deveria estar na OMS, pois a pandemia não foi só um acontecimento sanitário, mas também um acontecimento socioeconômico. Necessitamos de algo em um nível político maior que o da saúde. Caso também se deseje negociar o futuro das vacinas, e falar com os cidadãos, também precisamos da presença da sociedade civil e do setor privado.
Decidimos criar este conselho, sugerimos que tenha 21 pessoas, em sua maioria governos, mas também representantes do setor não governamental. Seria apoiado pela Assembleia Geral da ONU, e isso lhe daria legitimidade política, porque seria aceito pelos 194 países da ONU.
O conselho teria basicamente duas funções principais. Em primeiro lugar, supervisionaria o progresso da preparação e a resposta no mundo, e informaria a Assembleia Geral da ONU e a Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra. Em segundo lugar, propomos um novo mecanismo de financiamento para a preparação, para o qual os países contribuiriam com valores de 5 a 10 bilhões por ano. O conselho se encarregaria de direcionar esse dinheiro às entidades multilaterais regionais ou mundiais existentes.
Vocês pedem uma série de reformas, mas no passado houve pedidos semelhantes e não foram ouvidos. Agora será diferente?
Nossas recomendações são um pacote completo, não se pode escolher uma ou duas, é preciso comprar o pacote (risos). São muito concretas. Espero que o custo destas reformas seja ridículo em comparação ao custo da pandemia. Os políticos agora estão preocupados com saúde, sendo assim, há uma oportunidade que não tivemos antes.
O ebola era uma epidemia da África, o SARS era uma epidemia da Ásia, até mesmo o HIV se tornou rapidamente uma epidemia do sul. O de agora é uma epidemia que foi uma catástrofe no norte e no sul. Se isso não é um gatilho suficiente, pergunto-me o que poderia ser.
Se não for agora, quando será? É agora que os políticos devem agir. Nossa esperança é que tenhamos líderes notáveis que digam: “Companheiros, desta vez temos que agir”. E que todos se sentem à mesa. Não um multilateralismo do mundo ocidental. Um multilateralismo inclusivo, com a China, a Rússia, a Índia, a América Latina, a África. Um multilateralismo sincero, não um em que as pessoas se sentam à mesa, mas o poder está somente nas mãos de alguns.
Qual é o risco, caso o sistema não mude?
Em primeiro lugar, o risco é que não possamos enfrentar a pandemia atual, que está longe de acabar. Também há o risco de que a próxima pandemia possa ser amanhã, e não sabemos o que pode acontecer. Talvez um mosquito por causa da mudança climática? Talvez algo na água? Não sei. Mas a próxima pandemia poderá ser uma catástrofe, como está sendo esta.
Em fins de março, cerca de vinte chefes de Estado e de Governo apoiaram a proposta de criar um Tratado contra as Pandemias. Qual é a sua opinião?
Recomendamos que os países negociem o que se chama de uma convenção-quadro na OMS, porque a OMS tem o poder de negociar tratados. Tivemos dúvidas se deveria ser negociada na Assembleia Geral da ONU, mas isto é uma questão de saúde, principalmente, e o formato de uma convenção-quadro é muito útil e muito flexível, porque você pode negociar algumas coisas, em alguns meses, e outras coisas difíceis, em alguns anos.
O primeiro tratado desse tipo, a Convenção-Quadro da OMS para o Controle do Tabaco, demorou mais de dez anos para ser negociado e aprovado, mas é muito sólido. A realidade é que as pessoas sabem mais sobre o tabaco e fumam menos, em nível global. Sendo assim, é um sucesso e é o que gostaríamos que aconteça com as negociações, incluindo, por exemplo, uma nova plataforma de vacinas, que mudaria a perspectiva e funcionaria verdadeiramente para produzir bens públicos globais.
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“Precisamos elevar as ameaças sanitárias ao nível das nucleares”. Entrevista com Michel Kazatchkine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU