"Como é possível acreditar durante e além a crise? Perguntas às quais responde o novo e emocionante livro de Francesco Cosentino, Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi (Quando a noite termina - Acreditar depois da crise, em tradução livre)", escreve Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 11-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Qual é o desafio que temos pela frente após a pandemia e, em geral, depois de cada crise? Qual é a mensagem que Deus dirige à Igreja e à fé cristã? Será que nossas igrejas vazias e o jejum eucarístico podem ser uma profecia poderosa para o futuro da igreja? Como é possível acreditar durante e além a crise? Perguntas às quais responde o novo e emocionante livro de Francesco Cosentino, Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi (Quando a noite termina - Acreditar depois da crise, em tradução livre, EDB 2021).
Cinco capítulos muito agradáveis que podem ser lidos de uma só vez, precedidos de uma introdução que motiva o sentido da publicação e seguidos por uma conclusão que tem a vantagem de resumir em poucos parágrafos os três âmbitos de reflexão propostos: em qual Deus continuar a crer; quais as oportunidades eclesiais e pastorais após a pandemia; quais os conteúdos de uma espiritualidade autenticamente cristã.
O autor, presbítero da arquidiocese de Catanzaro-Squillace e professor de teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, tem o mérito de tratar em suas publicações[1] temas extraordinariamente importantes, ilustrados com linguagem profunda e clara, capaz de falar à mente e ao coração e também acessível a leitores não acostumados com a linguagem teológica.
Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi (Foto: Divulgação/Amazon)
Com Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi mais uma vez Francesco Cosentino demonstra ser um "teólogo tipo Papa Francisco": não um teólogo de museu que acumula "dados e informações sobre a Revelação sem realmente saber o que fazer com eles" ou que se contenta com uma teologia abstrata, caindo na tentação de "pintar, perfumar, ajustar um pouco e domar as fronteiras", mas um teólogo que, como os bons pastores, "cheira à gente e à rua" e, com a reflexão teológica, "derrama azeite e vinho” sobre as feridas dos homens e mulheres de hoje.[2]
Para Cosentino, a crise de época que, devido à pandemia, está atribulando a nossa vida também chama em causa a teologia, que deve colocar-se as seguintes questões: “Que outra forma de Cristianismo e de Igreja pode ter início? Trata-se realmente de um começo ou, ao contrário, é uma efetiva reconciliação com os horizontes do Concílio Vaticano II que, sob o impulso propulsor da conversão pastoral desejada pelo Papa Francisco, poderia finalmente se concretizar?” (p. 35).
Em primeiro lugar, a pandemia trouxe de volta uma questão fundamental: "a questão de Deus" (p. 46). Tema explorado por Cosentino em Non è quel che credi – Liberarsi dalle false immagini di Dio, EDB, Bolonha 2019. Para perceber isso, basta refletir sobre o significado da oração cristã. Nos tempos difíceis e dolorosos da pandemia, todos nós - escreve Cosentino - constatamos duas formas de rezar, que de alguma forma revelam a imagem de Deus que carregamos dentro de nós.
Uma oração dirigida a Deus para nos dar forças para atravessar esta terrível crise com sentido de responsabilidade e gratidão para com aqueles que (cientistas, médicos, enfermeiros e gestores públicos) se empenharam e se empenham para superá-la o quanto antes, às vezes pagando com a própria vida.
Outra oração, "presente até demais no nosso Cristianismo e nas nossas Igrejas, que se alimenta de uma falsa crendice religiosa e supersticiosa", que apela a Deus para que, talvez com um evento extraordinário e milagroso, resolva o problema para nós e nos dê saúde e cura, “passando por cima” da natureza, da medicina, da ciência e das boas práticas político-administrativas (p. 44). A oração dos cristãos não é aquela que se dirige a um deus tapa-buracos que intervém apenas se alimentarmos uma corrente de missas e rosários a um deus rancoroso e tirano que quer castigar a arrogância humana com o flagelo do coronavírus.
A oração dos cristãos é aquela que, por um lado, se dirige a Deus, todo-poderoso no amor e na misericórdia, “abre o coração dos fiéis e permite-lhes ver a dor do mundo com os mesmos olhos do Deus compassivo revelado a nós por Jesus, em um mundo marcado pelo egoísmo e pela injustiça”(p. 46) e, por outro lado, exorta os fiéis a mudar seu estilo de vida e a desenvolver com responsabilidade novos olhares especialmente para os pobres e os sofredores (p. 24).
A crise provocada pela pandemia é uma oportunidade para nos libertar definitivamente de toda falsa imagem de Deus e olhar para Jesus que, diante da dor dos homens e das mulheres, se aproximou deles com compaixão, chorou suas lágrimas, ficou indignado pelo mal, levantou quem estava caído no chão e curou quem estava doente. Revelando-nos assim apenas uma face de Deus: o Deus de amor que cuida de nós e deseja a nossa total libertação e felicidade. Portanto, devemos dizer claramente: Deus não envia o mal, nem o permite para fins educacionais, nem o tolera. Deus não tem nada a ver com a pandemia do coronavírus.
Deus pode se revelar de muitas maneiras e também pode extrair algo de bom para nós da experiência do sofrimento e da noite. Mas Deus combate todas as formas de mal e de sofrimento até mesmo tomando-o sobre si, como nos mostra a cruz de Jesus. Ele não nos salva da dor, mas a atravessa conosco, a ilumina, a transforma por dentro, empenhando-se a nos libertar e nos fazer ressurgir sempre, mesmo ao custo de sua vida. “A única onipotência de Deus é a extraordinária fraqueza do seu amor” (p. 68).
A pandemia nos obrigou a refletir sobre não poucos aspectos de nossa vida eclesial (p. 72). Cosentino lista alguns deles. Por exemplo, a crise provocada pela emergência sanitária "contribuiu para colocar em crise uma concepção pastoral, litúrgica e mais em geral espiritual, fundada exclusivamente na celebração da Santa Missa" (p. 82), abrindo a "caixa de Pandora" de uma visão eclesiológica difundida capaz de "trazer de volta ao palco um perigoso clericalismo" (p. 81) que alimenta no padre "o desejo de voltar a ser o centro das atenções a todo custo" (p. 93).
A proliferação das celebrações eucarísticas online ou em streaming tem contribuído, de fato, para afirmar “um predomínio da sacramentalização sobre as outras formas de evangelização” (p. 84), com o risco de induzir o povo de Deus a pensar que Deus está mais presente na missa em streaming do que em sua Palavra lida, meditada, orada e compartilhada com outros irmãos e outras irmãs na fé.
“Hoje - escreve Cosentino - temos de recentralizar o modelo eclesiológico sobre a reforma do Concílio Vaticano II, admitindo que ainda não realizamos a superação do modelo tridentino de Igreja, em que não é de forma alguma óbvio que todos os membros do povo de Deus sejam sujeitos ativos, que a liturgia cristã não seja um ato sagrado com fim em si mesmo, que a pastoral precise de um sopro de evangelização e não do predomínio da sacramentalização”(p. 92-93).
As alternativas “igrejas fechadas” ou “igrejas abertas” que, durante o período de isolamento forçado provocado pela pandemia, caracterizaram muitas controvérsias, parecem ser perturbadoras mais do que estéreis e inúteis. “É muito doloroso constatar, sessenta anos depois do Concílio e da sua eclesiologia, que muitas vezes ficamos presos no pensamento de uma Igreja em termos de lugar físico do edifício do culto; é desconfortante imaginar que, no pensamento de muitos, se amanhã não houvesse mais igrejas fundadas em pedra, deixaríamos de ser a Igreja de Cristo; é ainda mais assombrosa a ensurdecedora falta de compreensão do evangelho, em que Jesus relativiza o Templo invocando até a sua destruição, indicando-se como o verdadeiro Templo e anunciando o dom do Espírito Santo, que também nos faria o Templo do Pai"(p. 100). “A verdadeira Igreja, aquela formada por membros vivos, pode viver mesmo sem igrejas” feitas de tijolos (p. 103).
A pandemia, "que de alguma forma simboliza e sintetiza nossas outras crises, nos pede que paremos e reflitamos também sobre o sentido da espiritualidade cristã" (p. 106). A espiritualidade do cristão é "uma espiritualidade do cotidiano, do comum, do fragmento humano" (p. 108). Não deve ser confundida com uma falsa paz que extingue dúvidas e ansiedades (p. 106). Não separa o Deus transcendente da história humana (p. 105) ou o espírito da matéria (p. 107). Não é um subir ao céu sem a terra e nem mesmo um refugiar-se no próprio íntimo, comprazendo-se do próprio mundo feito de ritos e orações (p. 107).
A espiritualidade cristã se expressa em formas litúrgicas capazes de compreender a vida e gerar orações sensíveis às perguntas, à dor, à tribulação e à esperança dos homens e das mulheres de hoje (p. 107). Põe em circulação - nas estruturas da sociedade como nas relações interpessoais, na cultura como na vida política - a sempre nova profecia do Evangelho (p. 134). Promove e nutre formas de escuta e de oração da Palavra fora do templo (p. 141), nos lares e nas famílias (p. 152). Encontra Deus não nos grandes ideais religiosos, mas nos fragmentos de nossa vida comum (p. 109). Leva-nos a sair do velho catolicismo, muitas vezes encerrado nas sacristias e na superstição (p. 110). Emancipa-nos dos egoísmos pessoais e coletivo e de estilos de vida carentes de visões solidárias (p. 113) e descobre "o Espírito agindo na vida cotidiana de cada um" (p. 127).
“A espiritualidade cristã nasce de Cristo, Verbo de Deus que se fez carne, presença de Deus nas entranhas da história humana” (p. 108). Lembra-nos que “o cristianismo não é uma religião bela e estabelecida de uma vez por todas, mas algo que se reinventa continuamente na vida, ou seja, a experiência de uma sede que a cada vez deve ser saciada de uma maneira nova pelos relação vivente com Deus”(p. 121).
Em conclusão, "acreditar depois da pandemia significará mudar: de um Deus de temor para o Deus de amor, de uma Igreja fechada e clerical para uma Igreja do anúncio, de um cristianismo de devoção e exterioridade a uma espiritualidade da vida cotidiana”(p. 155).
Como Abraão, podemos olhar para o céu e contar as estrelas mesmo quando estamos marcados pela velhice. Como Jacó, podemos aprender que a crença nunca é um descanso tranquilo, mas sim luta e agonia. Como Moisés, podemos abrir um caminho em meio ao mar tempestuoso de nossa vida, mesmo que nos sintamos inadequados. Como Elias, podemos experimentar que a travessia do deserto geográfico simboliza a travessia do nosso deserto interior - que também pode ser feito de aridez e medo - para redescobrir o rosto de Deus que nos foi revelado por Jesus. Como Jó, temos o direito de protestar ante a dor inocente e contestar a velha ideia religiosa que vincula o sofrimento aos pecados cometidos diante de Deus. Como Isabel, podemos gerar vida mesmo quando experimentamos nossa esterilidade. Como Nicodemos, podemos nascer de novo da luz mesmo na noite mais escura (p. 105 e p. 145).
Consciente de que "o anúncio cristão se concentra justamente na experiência de uma noite dolorosa que se abre ao esplendor do alvorecer" (p. 13), Cosentino lembra a você, leitor, que "não há noite que seja infinita, nenhuma fraqueza que possa impedir de galgar o céu, nenhum fracasso que possa apagar a beleza que você é, nenhuma hora escura que possa resistir à terna e avassaladora força da aurora. Porque mesmo a crise, a fragilidade, o pecado, o sofrimento e a morte são a hora da passagem de Deus. Desde que Cristo foi crucificado e Deus entrou nos abismos da nossa morte, cada hora escura da história é tempo de Deus”(p. 14).
[1] Un Dio possibile. Cristianesimo, immaginazione e morte di Dio, Cittadella Editrice, Assisi 2009; Immaginare Dio. Provocazioni postmoderne al cristianesimo, Cittadella Editrice, Assisi 2010; Il Dio in cammino. La rivelazione di Dio tra dono e chiamata, Editore Tau, janeiro 2011; L’amore non avrà mai fine – Lettera ai fidanzati e alle giovani coppie, Editore Tau, Todi 2011; Sui sentieri di Dio – Mappe della nuova evangelizzazione, Edizioni San Paolo, Cinisello Balsamo 2012; Dalla fine del mondo – Il sogno di papa Francesco sulla Chiesa, Editore Tau, Todi 2016; Incredulità, Cittadella Editrice, Assisi 2010; (con Domenico Cravero) Lievito nella pasta – Evangelizzare la città postmoderna, Edizioni Messaggero, Padova 2018; Non è quel che credi – Liberarsi dalle false immagini di Dio, EDB, Bologna 2019.
[2] Da carta de 3 de março de 2015 enviada pelo Papa Francisco ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica da Argentina no 100º aniversário de a Faculdade de Teologia.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
Francesco Cosentino estará virtualmente no Instituto Humanitas Unisinos no dia 12/07, às 14h, para apresentar a conferência: O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo para a fé cristã?
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição