01 Abril 2021
A uruguaia Annabel Lee Teles conduz o Espaço Pensamento, um espaço de indagação filosófica que aborda as questões do comum, o humano e o subjetivo, baseando-se em filósofos como Nietzsche, Foucault, Spinoza e Deleuze. No ano passado, seu livro Política afectiva foi reeditado e está prestes a iniciar novos seminários.
A entrevista é de Jorge Fierro, publicada por Brecha, 30-03-2021. A tradução é do Cepat.
Como foi a sua formação filosófica?
Meu encontro com a filosofia remonta aos anos em que iniciei a carreira na UBA [Universidade de Buenos Aires], na Argentina, e em que ao mesmo tempo estudava filosofia contemporânea na oficina de pensamento filosófico que era coordenada pelo filósofo argentino Luis Jalfen. Foi nesse âmbito, no diálogo com ele e com as pessoas que integravam a oficina, que experimentei algo na ordem da epifania, um primeiro impacto filosófico. Estudávamos principalmente [Martin] Heidegger e [Friedrich] Nietzsche, entre outros filósofos contemporâneos.
O que mais chamou a sua atenção em Heidegger?
Naquela época, nos anos 1980, vínhamos de uma grande crise da esquerda. Eu vivia na Argentina. Tinha viajado para a Europa, onde a crise era ainda maior e havia o questionamento: e agora o que fazemos? Porque o espírito emancipatório e de transformação seguia vigente, apesar da sensação de derrota que se vivia naqueles anos.
Quando comecei a ler e estudar Heidegger – com a voz e a orientação de Jalfen -, a questão assumiu outro caráter. Havia uma possibilidade emancipatória, mas vinha de um exercício de pensamento crítico e criativo. Recordo que ele dizia, parafraseando Heidegger: “Para os egípcios, a lua era Ísis, e para nós, um satélite natural”, e depois perguntava: “Qual é a verdade da lua?”.
Essa pergunta, naqueles anos, era relevante: colocava em questão os saberes, as crenças, o modo de conceber a realidade, trazia consigo a pergunta pela vida e a morte, pela existência. A verdade aparecia situada, em construção, marcada pela interrogação, pelo não saber que habilita a criação e a configuração de novos modos de pensar.
Como foi o trânsito de Heidegger para a dupla Deleuze-Spinoza?
Naquela época, ao ler Heidegger, enfatizava-se a dissolução da figura do humano como entidade reitora do mundo. Desestimulava-se a problematização da subjetividade e, por conseguinte, cancelava-se a força ético-política própria do pensamento filosófico. Isso me causava inquietação e a necessidade de empreender novas buscas. Por essa razão, comecei a participar da cátedra Problemas Filosóficos, de Tomás Abraham, que contava com uma forte orientação foucaultiana e deleuziana.
A cátedra era um espaço de grande fermentação: eram levantadas a questão do poder e do sujeito, eram problematizados os modos de subjetivação e as questões éticas e políticas. Ali tive o primeiro contato importante com o pensamento de [Baruch] Spinoza, graças a Gregorio Kaminsky, que acabava de publicar seu livro Baruch Spinoza: la política de las pasiones. Foram tempos muito frutíferos, de estudo de [Michel] Foucault e [Gilles] Deleuze.
Depois, lentamente, fui me aprofundando no pensamento de Deleuze. Recordo o impacto que me causou Nietzsche e a filosofia. Este texto me trouxe certa compreensão vinculada a um pensar em relação com a vida, com a afetividade, com os corpos. E foi por meio de Deleuze, de seus livros e de suas aulas publicadas na Internet que surgiu a necessidade de me aprofundar na obra de Spinoza. Este impulso se intensificou a partir de 2001, já que as oficinas de pensamento filosófico que eram realizadas no âmbito do Espaço de Pensamento foram estendidas aos movimentos sociais, ao conurbano bonaerense.
O humano em Spinoza é particular, liquida o antropocentrismo, concorda?
O humano, o modo humano, é uma das questões inescapáveis para o nosso presente. Spinoza fornece uma compreensão do humano em relação com sua ontologia, com sua concepção do ser, com sua física, com sua maneira de entender o pensamento e o corpo. Mas, para ser breve, diria que concebe os seres humanos no que têm de singular e de comum: sua potência-desejo.
Justamente aí está a chave, porque o próprio dos seres singulares, das coisas singulares – seja uma vaca, um mosquito, um eucalipto ou um humano -, é o esforço em perseverar em seu ser, sua potência, seu conatus. E a potência é singular, individualizante e relacional ao mesmo tempo.
A potência singular é uma parte, uma atualização, da potência infinita de Deus ou a natureza. Por isso, sua filosofia desdobra um plano de pensamento em que o singular e o comum se entrelaçam, no qual se dissolve qualquer pretensão de antropocentrismo.
Ouvi você defender uma filosofia que seja com os outros, sem o imperativo tão pesado da filosofia com voz própria, e tirando a filosofia dos especialistas.
Levando em consideração a minha trajetória, sempre desenvolvi um modo dialógico da filosofia, em constante conversação com outros. Um diálogo com os filósofos e com todos aqueles dispostos a fazer este peculiar exercício de pensamento. É fundamental compreender o caráter dialógico da filosofia, desde seus inícios na Grécia.
Pensar com outros, não tanto discutir, é um modo de fazer filosofia, pertence a uma linhagem na qual Spinoza é uma peça central. Existe uma visão de Spinoza como um pensador isolado, e é totalmente o contrário. Deleuze demonstra isto com clareza: sua obra se dá em conversas com outros filósofos e confere um valor especial ao diálogo que acontece em suas aulas.
Nos últimos anos, a linguagem de Spinoza passou a aparecer fortemente. Penso em conceitos como os de desejo, potência e afeto. Considera que são tempos propícios para o seu pensamento?
Acredito que a circulação desses termos não obedece tanto à leitura de Spinoza quanto à de Deleuze. É preciso levar em consideração a importância dos livros publicados pela editora Cactus, da Argentina, na difusão do pensamento de Deleuze no Rio da Prata. Especificamente, En medio de Spinoza, que são as aulas de Deleuze sobre Spinoza.
Considero que são tempos propícios, mas é preciso caminhar com cuidado. Spinoza exige um esforço de leitura, de ler e voltar a ler seus textos, e também uma aproximação com os filósofos que trabalham sobre sua obra, porque desse modo se compreendem e articulam diferentes aspectos de seu pensamento.
Por exemplo, a afirmação de que o desejo é a própria essência do homem é algo em que é preciso se deter, é uma contribuição muito rica para a nossa época: traz consigo uma modificação da compreensão do humano singular, mas é algo que ainda margeamos, que requer uma insistência singular e coletiva, um aprofundamento no estudo de seus textos e na captação das experiências e o pensamento em nosso presente.
Por que, de repente, Spinoza ganha tanta força?
Não sei se ganha força de repente. Seria possível dizer que, na segunda metade do século XX, paulatinamente, foi ganhando força. Há um livro de Alexandre Matheron cujo título, Individuo y comunidad en Spinoza, mostra certos indícios da relevância de seu pensamento em nossos dias.
Seria possível dizer que seu pensamento faz um deslocamento radical no modo habitual de conceber e experimentar tanto o indivíduo como a comunidade e também na mútua apropriação entre ambos. Isto pode ser visto no fato de que não é possível separar o singular do coletivo e se expressa nas formas de viver, fazer e criar em nossas relações, em nossas experiências éticas, que se alteram na própria dinâmica das afeições.
A política e a vida coletiva, por sua parte, obedecem a mesma tendência: se dão no movimento das paixões, em tramas afetivas que não omitem a singularidade de cada um, em territórios relacionais e produtivos que buscam o apoio mútuo entre seus integrantes, em instâncias deliberativas grupais, na constituição de comunidades nas quais se expressa um peculiar modo da democracia.
Em outras palavras, o spinozismo ganha vigor porque nos ajuda a pensar a política em relação com a ética e a ontologia, com a imanência produtiva que, em seu desdobramento, na existência individual e coletiva, nos ajuda a compreender que não se trata de aderir, mas de pensar, problematizar, para dar lugar à criação de novos modos de existência que tragam consigo a resistência e a construção como prática de liberdade.
A proximidade de Spinoza com os irmãos De Witt e sua defesa da liberdade de pensamento ou liberdade de expressão, aproximam o filósofo de certo liberalismo?
Bom, esta é uma pergunta complexa. Para respondê-la teríamos que nos aprofundar nos textos spinozianos. De qualquer modo, para dizer brevemente, há em Spinoza uma exigência de liberdade de pensamento e de expressão como questão principal do Estado e, por conseguinte, da política. Há leitores de Spinoza que dão ênfase a isso. É uma questão de certa tendência na leitura.
Para mim, definitivamente, a riqueza de seu pensamento político está no conceito de direito natural enquanto potência-desejo produtiva, o que privilegia uma política que destaca o exercício da potência constituinte da multidão, na construção de vida comunitária, da cidade. Aqui, encontro-me em diálogo com Toni Negri, que, sem desprezar o Tratado Teológico-Político, prioriza o Tratado Político e a Ética no que diz respeito ao pensamento político de Spinoza.
Além disso, com esta perspectiva, abre-se a possibilidade de abordar a política em sua pluralidade, de levar em conta tanto os movimentos sociais como as formas instituídas no Estado-governo, sempre e quando atenda a potência constituinte dos muitos, que é a condição sob a qual se produz a vida coletiva em seus diferentes aspectos.
‘Política afectiva’ é filho da crise argentina de 2001 e foi reeditado em plena pandemia, no ano passado. Como e até onde é possível pensar a pandemia de forma diferente?
Outra questão complexa! A pandemia está acontecendo, está ocorrendo conosco. É inescapável. Impõe-se a nós e faz com que usemos as ferramentas que temos em nosso alcance para pensá-la, para vivê-la. Como você disse, foram feitas diversas análises a esse respeito, convocou-se Foucault, foram realizadas elaborações interessantes em termos de biopolítica e biopoder, nas quais é necessário seguir trabalhando.
No entanto, é necessário reconhecer que existe um registro da pandemia que marcou nossas vidas nos mínimos gestos, que nos obrigou a modificar nossas práticas, nossas formas de trabalho. Também colocou em destaque a crueldade dos tempos no social, no econômico e o político. Para mim, a sensação predominante foi a de desconcerto, a do não saber. Tive uma sensação constante de pergunta, de inescapável posicionamento de problematização diante do que estamos vivendo.
Ao mesmo tempo, tenho muito presente o texto de Deleuze, Lógica do sentido, no qual fala da necessidade de ser digno do acontecimento, do que ocorre ‘no’ que acontece, uma vez que aí está a possibilidade de uma transformação. Nesse sentido, a pandemia nos exige intensificações éticas e nos apresenta desafios políticos. Mobiliza-nos a fazer política em situações que não são habituais, a pensar, a estar com outros, a criar outras instâncias de vida em comum.
Considera que alguns setores reacionários se apropriaram de noções positivas, como o otimismo e a esperança?
Sim. Nesta época, há uma circulação da linguagem da alegria, da linguagem afetiva e do desejo. Há certa banalização destes termos que tende a negar o que acontece, o acúmulo de escravidões em que estamos presos. O ensinamento spinoziano é que, dadas as condições do mundo, não é possível separar as diferentes escravidões, sujeições – em que estamos –, das práticas de liberdade. Tanto a ética como a política implicam, de modo diferente, uma tenaz transformação das paixões.
Em Política afectiva e Una filosofía del porvenir, tento demonstrar com o ‘mas’, com o ‘no entanto’, que se trata de efetuar mudanças no pensamento, na afetividade, nos corpos, para alcançar modos ativos e criativos de existência tanto individuais como coletivas. “Não nascemos livres”, diria Spinoza. São exercícios, práticas que não implicam o voluntarismo, de um desejo com vistas a um fim. As modalidades ativas e alegres expressam árduas transformações que não desconhecem as tristezas, os medos, os trânsitos difíceis.
Por isso, penso que fazer filosofia na senda de Spinoza e Deleuze requer certo esforço alegre. Não há fórmulas que nos salvem. Trata-se de uma filosofia que convoca a outros modos de pensar e fazer, à amizade. É atravessando as dificuldades que alcançamos momentos alegres. É no movimento, no devir da existência, que lentamente deixamos para trás as agonias e somos capazes de afirmar a criação como prática de liberdade.
Annabel Lee Teles nasceu no Uruguai, mudando-se para Buenos Aires em 1975, onde estudou Filosofia, dedicando-se ao estudo exaustivo do pensamento de Nietzsche, Heidegger e posteriormente Foucault e Deleuze. O estudo e a pesquisa das ideias filosóficas a levaram a procurar uma forma de ensino que captasse a emocionalidade do pensamento.
A partir de 1981 e junto com pessoas de diferentes disciplinas e saberes, dedicou-se à tarefa de construir o Espaço de Pensamento, um espaço de estudo, pesquisa e criação onde a filosofia é apresentada como uma atividade problemática e criativa, que avança na produção do pensamento como aposta ético-estética para a criação de comunidade.
Em 2002, publicou seu primeiro livro, Una Filosofía del Porvenir, onde nos mostra a articulação mais fundamental de seu pensamento. Nele, afirma a crença na emergência de novas possibilidades de vida, novos modos de existência que compreendam e saúdem transformações em curso.
Em 2009 publicou seu segundo livro, Política Afectiva: apuntes para pensar la vida comunitaria, no qual seu pensamento filosófico se torna ação na experiência com o Movimento dos Trabalhadores Desempregados de La Matanza, Buenos Aires, insistindo em "pensar e imaginar vidas alegres e abundantes, onde a imaginação adquira o vigor de nossa afetividade”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A potência dialógica. Entrevista com Annabel Lee Teles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU