"Uma coisa é certa, se a vossa democracia for preservada, o que decidirdes terá consequências importantes, positivas ou negativas, para o futuro do resto do mundo que se revê nestas polarizações", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em carta publicada por Alai, 16-03-2021.
Querida amiga, querido amigo:
Agradeço-vos todo tempo que gastastes em conversar comigo durante as últimas semanas sobre o processo eleitoral em curso no vosso país. Como vos disse, eu fiquei perplexo perante toda a controvérsia internacional entre várias famílias de esquerda a respeito do vosso processo eleitoral ainda em curso. Para recapitular: parece ser uma astúcia da razão que o processo político do Equador, um país situado no centro do mundo como o nome indica, se tenha transformado nas últimas semanas no campo de uma feroz disputa entre intelectuais e ativistas de esquerda, oriundos não só do Equador como de outros países da América Latina e da Europa, dos EUA, da África do Sul e da Índia.
O motivo da disputa é o processo das eleições presidenciais em curso. Na primeira volta [turno] ganhou, sem maioria absoluta, Andrés Arauz, que representa um certo regresso ao correísmo (designação dada à governação de Rafael Correa entre 2007 e 2017); em segundo lugar (depois de algumas recontagens) ficou Guillermo Lasso, representante da direita oligárquica. Em terceiro lugar, ficou Yaku Perez, indígena, candidato do movimento Pachakutik. O conflito centrou-se inicialmente nas possíveis fraudes eleitorais que teriam tirado o segundo lugar a Perez. Este conflito jurídico-eleitoral era, de fato, uma metamorfose do conflito que se travara antes para impedir que Andrés Arauz fosse candidato devido às suas ligações a Rafael Correa. Aliás é bom lembrar que estratégias típicas do lawfare tinham impedido Correa de se candidatar como vice-presidente de Arauz. Resolvido (aparentemente) este conflito, a disputa orientou-se para a decisão sobre que candidato apoiar na segunda volta.
A controvérsia ultrapassou repentinamente as fronteiras do país e assumiu um extremismo de insultos e contrainsultos, pedidos de censura e contracensura, que me surpreendeu e deixou perplexo. Foi por isso que vos contatei ao longo destas semanas. Afinal, uma vez mais e como sempre no Equador, os povos indígenas eram protagonistas das mudanças políticas, mas as vozes do debate, tanto no Equador como fora, não eram indígenas na sua esmagadora maioria. Do movimento indígena apenas se sabia que estava dividido, uma vez que inicialmente Yaku Perez não tinha sido o candidato escolhido pelos povos e nacionalidades indígenas, mas sim pelo movimento Pachakutik.
O Pachakutik nasceu como braço político da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador), mas o seu percurso político posterior, sobretudo o seu alinhamento em anos recentes com o governo de direita neoliberal de Lenín Moreno, criou algumas tensões com o movimento indígena. O silêncio era particularmente intrigante no caso dos jovens líderes indígenas que aliás, no passado, tiveram algumas divergências com as lideranças indígenas e também com o governo, situação que eu acompanhei de perto, como sabeis. Quando em 15 de Agosto de 2014 presidi à Sala Especial para o Yasuni do Tribunal Ético dos Direitos da Natureza, presidido pela minha amiga Vandana Shiva, os melhores aliados do tribunal, além dos povos indígenas, fostes vós.
Foi por todas estas razões que decidi consultar-vos. Hoje escrevo-vos para vos dizer que cheguei à conclusão que não tenho condições para vos aconselhar sobre as melhores decisões concretas a tomar perante conflito em curso. Sei que vos desiludo; com toda a legitimidade podeis dizer que vos fiz perder o vosso precioso tempo. Por isso, quero explicar-vos as razões da minha decisão. As minhas razões têm a forma de perplexidades.
Uma das aprendizagens das esquerdas nas últimas décadas, tanto na América Latina como em outras regiões do mundo é que são as forças de esquerda quem defende convictamente a democracia liberal, mesmo reconhecendo todos os limites desta e sempre apostando em, a partir dela, radicalizar a democracia, isto é, em transformar relações de poder em relações de autoridade partilhada. A experiência diz-nos que a direita não serve a democracia, serve-se dela quando lhe convém e descarta-a quando não lhe convém. Recordo-me bem que, quando em 30 de setembro de 2010 as forças policiais tentaram um golpe de Estado contra Rafael Correa, o meu amigo Alberto Acosta passou pelo meu hotel e fomos a correr para a sede da CONAIE, onde passamos todo o dia. Nessa altura já havia queixas justas do movimento indígena contra Correa mas o objetivo, naquele momento, não era defender Correa, mas a democracia que ele representava.
Se isto é verdade, uma vez apurado que não houve fraude eleitoral nestas eleições de 2021, a disputa política deveria centrar-se nos programas políticos de cada candidato. Por que razão continua a discussão a incidir na integridade dos candidatos e não nos seus programas? É preciso ter presente que, em vários países do continente, a direita neoliberal, não tendo qualquer programa político para além das receitas neoliberais, tem vindo a jogar o argumento da moralidade contra os candidatos de esquerda, acusando-os de corrupção. Para além disso, convém recordar dois fatos perturbadores. Primeiro, tem estado em marcha no Equador uma autêntica lawfare (guerra jurídica) contra Rafael Correa por supostos crimes cometidos, o que parece não ter outro objetivo senão neutralizá-lo politicamente. Esta guerra procurou atingir o candidato que se reivindicava da herança de Correa, André Arauz. Semelhante neutralização política ocorreu antes contra Manuel Zelaya (Honduras) Cristina Kirchner (Argentina), Fernando Lugo (Paraguai), Lula da Silva (Brasil), Evo Morales (Bolívia). Em todos estes casos foi evidente a interferência dos EUA. Deixa-me perplexo que muitos dos que têm assinado declarações contra o candidato Arauz também tivessem assinado declarações contra Evo Morales, e negado a existência de golpe de Estado na Bolívia, o que aconteceu também com o próprio Yaku Perez.
O segundo fato perturbador é que no momento em que vos escrevo não está excluída uma última tentativa de anular as eleições ou afastar o candidato mais votado. Foi esta suspeita que levou o Secretário-Geral da ONU a fazer recentemente uma declaração no sentido de tudo ser feito para se manter a segunda volta das eleições na data prevista. Há umas semanas, o Procurador-Geral da Colômbia veio expressamente a Quito entregar “as provas” de que Arauz tinha recebido dinheiro para financiar a sua campanha do grupo de guerrilha colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN). Os desmentidos imediatos de Arauz e do próprio ELN e a notória inverossimilhança de tal fato não impediram que “as averiguações” se iniciassem. Sabemos que Colômbia é hoje um país-satélite dos EUA e que o secretário da OEA, Luis Almagro, um personagem sinistro, que engenhou o golpe de Estado na Bolívia, se reuniu em Washington com o presidente do Equador, Lenín Moreno, quem tem tornado claro que o seu candidato favorito é Lasso e, em segundo lugar, Perez. A lei equatoriana é clara: os candidatos têm imunidade e as leis eleitorais não podem alterar-se durante o período eleitoral. Porém, como vimos no Brasil, não sabemos até onde pode ir a fúria persecutória do lawfare.
O debate equatoriano é protagonizado por intelectuais e ativistas de esquerda entre os quais se destacam as correntes feministas e ecológicas. Nele têm intervindo colegas e amigos e amigas que muito admiro e com quem trabalhei ao longo dos anos. Se Arauz é de esquerda, pelo menos quando comparado com Lasso, seria de prever que as energias fossem canalizadas para derrotar o candidato da direita e que o movimento indígena se envolvesse a fundo nisso. Não é isso o que está a suceder e no momento em que vos escrevo a assembleia de uma das organizações da CONAIE decidiu recomendar o voto nulo na segunda volta das eleições. Não se podem minimizar as razões que levam a tal posição. Em princípio, pareceria estranho defender-se a neutralidade entre um candidato considerado por muitos como sendo de esquerda e um candidato de direita, banqueiro e da Opus Dei. Deveis tentar conhecer as razões destas decisões e também estar atentos ao que pode ocorrer nas próximas semanas para impedir a normal conclusão do processo eleitoral. Estará a preparar-se o próximo episódio de lawfare? Estarão em causa no Equador as dores de parto do nascimento de uma nova esquerda, uma esquerda verdadeiramente própria do século XXI? Tanto quanto julgo saber os partos são sempre dolorosos. Daí as duas próximas perplexidades.
Durante muito tempo a esquerda foi concebida como o conjunto de teorias e práticas políticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade. Por muitas razões que não posso detalhar nesta carta este entendimento foi objeto de muita discussão.
Os traços principais desta discussão foram os seguintes. Um maior conhecimento entre os movimentos populares no mundo permitiu ver que as clivagens políticas em muitos países não se expressam na dicotomia esquerda/direita. Mesmo naqueles países em que a dicotomia está em vigor gerou-se enorme debate sobre o que cada um dos termos significa. Por exemplo, as lutas sociais e políticas contra a injustiça ampliaram muito as dimensões da injustiça e, portanto, da dominação. À injustiça econômico-social juntaram-se a injustiça etnorracial, injustiça sexual, injustiça histórica, injustiça linguística, injustiça epistêmica e ainda outras injustiças assentes na deficiência, na casta, na religião, etc.
Esta ampliação suscitou novas questões, por exemplo, a da hierarquia entre as injustiças e, consequentemente, das lutas contra elas. Deu-se uma nova atenção aos diferentes contextos específicos em que as lutas ocorrem e tornou-se necessário distinguir entre lutas importantes e lutas urgentes. Foi possível, por exemplo, defender que as três formas de dominação principais produzidas pela modernidade eurocêntrica são o capitalismo, o colonialismo (que apenas mudou de forma com as independências políticas das colônias) e o patriarcado.
Mas no continente latino-americano os debates assumiram ainda outras dimensões particularmente importantes. Distingo três principais. A primeira foi o questionamento da dicotomia esquerda/direita em face dos modelos de desenvolvimento econômico e social adotados por governos de esquerda na primeira década do século. A polarização passou a ser entre os adeptos e os opositores do neoextrativismo (redistribuição social assente na exploração sem precedentes dos recursos naturais, com a consequente expulsão dos povos originários e camponeses, a crise ecológica e negligência da discriminação etnocultural, etnorracial e sexual/heterossexual). Inventou-se mesmo um novo termo, “progressismo” para caracterizar os governos que, embora dizendo-se de esquerda, não o eram na opinião dos opositores do neoextrativismo.
A segunda dimensão foi a polarização entre estatismo e movimentismo. A tradição das forças políticas de esquerda no subcontinente (como em boa parte do mundo) defendeu quase sempre a necessidade de controlar o Estado para, a partir dele, realizar a desejada transformação social. As frustrações com a experiência histórica (de que o estalinismo é o exemplo extremo) agravaram-se no início do século XXI com os projetos de desenvolvimentismo neoextrativista no continente latino-americano. Estes projetos foram protagonizados pelo Estado, quase sempre em articulação com o capitalismo neoliberal global, o que para os opositores do neoextrativismo foi visto como a continuidade com a exploração colonial. Daí que tenham ganhado peso concepções como a de “transformar o mundo sem tomar o poder” (uma expressão mal entendida de John Holloway), que passaram a centrar as propostas de esquerda na luta por uma nova hegemonia (a dos direitos da natureza) e na valorização dos projetos comunitários assentes nas ideias de autodeterminação e de plurinacionalidade. Se a concepção estatista exagerava o poder transformador do Estado cuja matriz é afinal capitalista colonialista, patriarcal e monocultural, a concepção movimentista correu o risco de conduzir à despolitização dos movimentos sociais, um risco tanto maior quanto mais evidente era o apoio recebido de organizações não governamentais, financiadas pelo Norte Global, em sua maioria apostadas em impedir que os movimentos sociais se transformassem em movimentos políticos.
A terceira dimensão característica do subcontinente, ainda que não exclusiva dele, é a transformação muito repentina dos parâmetros da polarização política. Perante o revanchismo agressivo, por vezes golpista, dos governos de direita que se sucederam aos governos progressistas, a polarização principal passou a ser entre democracia e ditadura. E perante a conjuntura particularmente dramática e dolorosa decorrente do modo incompetente e até criminoso como os governos de direita têm lidado com a crise sanitária, a polarização principal passou a ser entre política de vida e política de morte. Esta última mutação está particularmente presente no Brasil e no Equador.
Os debates no seio das forças de esquerda estão em aberto. Por um lado, deram visibilidade e potência política a lutas sociais muito diversas. Por outro lado, criaram novas divergências que se têm revelado difícil compatibilizar. Enquanto esta dificuldade não for superada, as lutas de esquerda, em vez de se articularem, fragmentam-se ainda mais, em vez de se fortalecerem, enfraquecem-se ainda mais. Duas dificuldades estão a ser particularmente paralisantes: as divergências sobre o papel do Estado e das lutas institucionais; as divergências sobre a hierarquia entre os motores das lutas (classes sociais ou identidades etnorraciais ou sexuais?) e entre objetivos sociais das lutas (redistribuição social ou reconhecimento da diversidade?). Subjacente a estas dificuldades está a megadificuldade criada pela divergência entre desenvolvimentismo/extrativismo e buen vivir/direitos da natureza.
De todos estes debates talvez a única conclusão segura, por agora, é que as forças de esquerda sabem melhor o que não querem do que o que querem. Durante muito tempo sofreram da pandemia política que precedeu a do coronavírus e que se instalou no mundo depois da década de 1980, de que não há alternativa ao capitalismo e de que por isso chegamos ao fim da história. Curiosamente, os sinais de que as forças de esquerda podem estar a sentir-se imunizadas contra o vírus do neoliberalismo surgiram inicialmente com particular força no Equador. Vejamos.
O debate equatoriano é muito dependente da erosão do imaginário de esquerda causado pelo centralismo e pelo tecnocratismo de Rafael Correa. Mais do que qualquer outro líder político de esquerda da primeira década de 2000, Correa concebeu a esquerda com um projeto soberanista, imposto de cima para baixo, centralista, monocultural, anti-imperialista, apostado na redistribuição social mas conservador quanto aos direitos reprodutivos das mulheres e hostil ao diálogo construtivo com sociedade civil organizada. Este período coincidiu com a época em que houve uma nova criatividade das forças de esquerda. Esta circunstância deveu-se a vários fatores entre os quais distingo: o fim do bloco soviético, a emergência de novos sujeitos políticos, principalmente as mulheres, os povos indígenas, os camponeses, os movimentos ecologistas, o Fórum Social Mundial.
Esta transformação voltou a animar a ideia das alternativas. Esta ideia saiu fortemente reforçada das Constituições políticas do Equador (2008) e da Bolívia (2009), Constituições que apontavam para a refundação plurinacional do Estado e para alternativas ao desenvolvimento capitalista assentes nas filosofias e práticas dos povos indígenas. Sem saberem muito bem qual seria o fim último das suas lutas, as novas esquerdas pareciam, no entanto, ter como certo que estas teriam de assentar em amplos processos de participação democrática, no reconhecimento da diversidade etnocultural e dos direitos da natureza, na refundação plurinacional do Estado, na luta anticolonialista e antipatriarcal. A luta anticapitalista que reclamava, no mínimo, uma melhor redistribuição social era agora articulada com a luta contra o colonialismo (contra o racismo, a discriminação etnorracial, a concentração de terra, a expulsão dos povos originários e camponeses, a xenofobia, monocultura do saber científico) e contra o patriarcado (contra a dominação heterossexual, a violência doméstica e o feminicídio).
Perante a discrepância entre a governação de Correa e as transformações das forças de esquerda e do movimento indígena as frustrações acumularam-se. E, como estamos a ver, continuam bem vivas. Daí a próxima perplexidade.
Se Correa tivesse sido apenas e para todos os equatorianos o que descrevi acima, seria imaginável que o candidato que se reclama da sua herança tivesse sido o mais votado? Obviamente que não. É que a governação de Correa teve muitas outras dimensões que, embora possam ser desvalorizadas por certos setores da população, foram muito importantes para outros. Correa garantiu a estabilidade política durante dez anos, o que não é pouca coisa num país onde nos dez anos anteriores tinha havido sete presidentes. Foi o idealizador internacionalmente aclamado da auditoria da dívida externa do Equador, o que permitiu uma redução significativa da dívida. Privilegiou a redistribuição social e os benefícios sociais chegaram a muitos que nunca tinham tido mínimas condições de viver condignamente. A pobreza desceu de 36.7% em 2006 para 22.5% em 2016 e as desigualdades medidas pelo coeficiente de Gini baixaram e houve um incremento das classes médias. Estabeleceu a gratuidade da educação pública a todos os níveis e melhorou os salários do pessoal docente. Construiu muitas infraestruturas básicas de que o país carecia. Afirmou-se como um líder nacionalista, defensor da soberania equatoriana contra o imperialismo norte-americano (recordo-me do impacto do encerramento da base de Manta em 2009), ainda que, com o decorrer dos anos, tivesse que cair sob outra influência estrangeira, a da China.
E a verdade é que, apesar de toda a contestação social, Correa conseguiu eleger o seu sucessor, o seu vice-presidente, Lenín Moreno, que pouco depois se renderia à mais medíocre subserviência ao FMI e aos interesses geoestratégicos dos EUA na região, tornando-se cúmplice da perseguição política contra Rafael Correa. Isto significa que o menos que se pode dizer é que o país que Correa deixou ao terminar os seus mandatos era uma sociedade mais justa, pelo menos nalguns aspectos, do que o país governado por sucessivas vagas de direita controladas pelas elites oligárquicas. Por que agora, que a direita oligárquica tem de novo o seu candidato na segunda volta das eleições, algumas forças de esquerda e o próprio movimento indígena defendem o voto nulo na segunda volta? Para analisar esta conjuntura proponho-vos a seguinte hipótese de trabalho: o Equador é hoje o país do subcontinente onde a divergência entre redistribuição econômico-social e reconhecimento etnossocial é mais vincada e onde se dispõe de menos pontes para a superar. Daí as minhas duas próximas perplexidades.
Um dos principais problemas que as esquerdas hoje em trabalho de parto vão enfrentar é a questão da transição. Começamos a saber que queremos uma sociedade anticapitalista, anticolonialista, antipatriarcal, ecologista, feminista, plurinacional, radicalmente democrática, autodeterminada. Sabemos que se trata de uma mudança de paradigma civilizatório. Como lutamos por ele? Em primeiro lugar, temos de saber que a luta é eminentemente política. As bandeiras aparentemente apolíticas das ONGs não visam outra coisa senão desarmar o movimento popular. É por isso que são fortemente financiadas pelos países do Norte Global.
Compreendo que muitos de vós, frustrados com a política formal, prefiram canalizar o vosso ativismo para fora do sistema político partidário. Mas na medida em que o acharem importante, é bom saber o que está em jogo. Mesmo sendo a luta concebida como política não é fácil organizá-la. Sabemos que não podemos confiar nas instituições, mas também não podemos viver sem elas. Teremos de lutar com um pé nas instituições e outro pé fora delas. Teremos de lutar dentro do Estado, contra o Estado e fora do Estado com diferentes formas de organização das lutas, algumas ainda nem sequer experimentadas. E com que aliados? Não é crível que os possamos encontrar entre as forças de direita. A direita, quando regressa ao poder, fá-lo com mais revanchismo que nunca.
Veja-se o caso de Bolsonaro, no Brasil, de Macri na Argentina ou da golpista Añez, na Bolívia. É prudente arriscar o mesmo com Lasso no Equador? Claro que tudo será mais fácil se Arauz se manifestar claramente sintonizado com a transição e não com o regresso ao passado. Como jovens que sois tendes nas vossas mãos o futuro do país. Há três áreas em que deveis ter particular atenção: a transição para sair do extrativismo, a educação intercultural, e o cogoverno com a CONAIE para dar seguimento concreto à plurinacionalidade consagrada na Constituição de 2008. As duas primeiras áreas constam do programa de Arauz, mas tanto elas como a terceira dependem da vossa pressão política organizada, a qual deve continuar (e não terminar) com as eleições. O mais importante é aprender com os erros do passado.
No recente debate equatoriano uma das ausências mais ruidosas tem sido o fator da intervenção estrangeira. Alguns dos participantes no debate estão tão dominados pelo ódio e pelo ressentimento em relação a Correa que veem o seu fantasma em todo o lado e consideram que a sua interferência é sempre avassaladora. Será que estão com isso a não ver ou a esconder outro fantasma bem mais presente? Sabemos que o império tem mudado muito de táticas (por exemplo, das ditaduras militares para o lawfare) mas não mudou de estratégia. Sabemos que a Guerra Fria entre os EUA e a China está a assumir proporções muito preocupantes. Os EUA são um império em declínio e, tal como outros no passado, torna-se ainda mais agressivo na busca de zonas de segurança extraterritoriais. Para os EUA, sem grande influência na África e sem confiarem muito na Europa e muito menos na Ásia, a América Latina é a única região do mundo que consideram pertencer-lhes incondicionalmente. O preço que os países pagam por desobedecer é enorme, mesmo que sejam muito problemáticos do ponto de vista das novas esquerdas, como, por exemplo, Cuba, Venezuela ou Nicarágua. Arauz oferece muito menos garantias de alinhamento antichinês do que Lasso ou Perez. Estará aí, a benevolência com que os EUA e a OEA olham para os candidatos anticorreístas? À luz da experiência recente (para não falar da menos recente) podem os equatorianos arriscar um novo alinhamento incondicional com os EUA? Estou certo que conheceis bem o que está a acontecer no Brasil e ia acontecendo na Bolívia.
Querida amiga, querido amigo:
Não terminam aqui as minhas perplexidades, mas estas bastam para me tentar justificar porque não intervenho no debate que estais a ter no Equador. O meu desejo é que sejais vós, os equatorianos e sobretudo os mais jovens, a decidir as questões que estão em aberto, para as quais, aliás, não há soluções inequívocas à vista. O importante é que o façais com uma reflexão profunda sobre os conflitos que atravessam o vosso país e sem interferência externa, seja ela a de intelectuais-ativistas internacionalistas bem intencionados, como eu, mas que, tal como eu, estão sempre sujeitos a errar, e também sem a interferência de países estrangeiros, sejam eles os EUA, os países europeus, os países latino-americanos ou a China. Uma coisa é certa, se a vossa democracia for preservada, o que decidirdes terá consequências importantes, positivas ou negativas, para o futuro do resto do mundo que se revê nestas polarizações. Não se está impunemente no centro do mundo.