15 Março 2021
“O conflito não é ódio nem mesmo para nós, e a luta de classes é essencial para erradicar o primado arrogante do 'terrível direito de propriedade' que o Papa Francisco considera 'direito quase secundário', quase um furto, como dizia Proudhon, para quem acredita como ele que os bens da terra são comuns e a eventual esmola uma restituição. 'Não devemos tranquilizar os pobres - escreve ele no final de Fratelli tutti - com estratégias de contenção que tornem os pobres domesticados e inofensivos'. São palavras que dão indicações não muito distantes das nossas. Se hoje é possível encontrar tal consonância com o chefe supremo de uma Igreja que durante séculos tomou o partido dos poderosos, é porque o mundo se tornou tão injusto e desigual que abalou até mesmo o Vaticano; agrada-me pensar em ter um Pontífice que 'luta ao nosso lado'”, escreve Luciana Castellina, política e jornalista italiana, em artigo publicado por Revista Infinitimondi, edição março-abril de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pertenço a uma geração comunista acostumada a enfrentar as grandes questões históricas, porque foi assim que o PCI nos educou. E entre estas, em particular - pela importância que teve no próprio terreno político da nossa iniciativa prática - a questão católica: um problema central, Gramsci fez-nos compreender, e com o qual Togliatti teve que lidar muito para definir a sua "via italiana ao socialismo". E é precisamente entre o final dos anos 1950 e o início dos 1960 que, com outro Papa fantástico, João XXIII, e a mudança radical levada ao catolicismo pelo seu Concílio Vaticano II, começamos também a ler as Encíclicas; e até mesmo acompanhar uma revista chamada Concilium que nos oferecia o melhor do pensamento dos teólogos de todo o mundo. E aquele é o período, de fato, que, também devido ao impulso trazido ao partido por muitos jovens fiéis que entraram no PCI, que nas Teses para o IX Congresso foi inserido um parágrafo histórico no qual se reconhecia que “uma dolorosa consciência religiosa” poderia representar uma “contribuição para a batalha anticapitalista”. Em suma, não se tratava mais apenas de uma questão de proximidade social com as massas católicas principalmente camponesas, um aliado potencialmente muito mais escuro do que as classes médias liberais seculares, mas de uma consonância com sua religião.
Esta longa introdução para dizer que há muito tempo estava preparada para acolher com interesse as palavras de um papa. E, no entanto, nunca imaginei que palavras e conceitos tão próximos de mim, como as que vi na boca de Bergoglio nos últimos anos, viessem de um senhor que ainda usava aquelas absurdas vestes coloridas. Conceitos e palavras, eu disse, porque os primeiros certamente contam acima de tudo, mas é outra questão se palavras como essas são usadas para expressá-los, ditas para explicar o que significa se aproximar do "vizinho diferente": Bergoglio diz, é preciso "um diálogo paciente e confiante”, uma exortação que, simplificando, leva em consideração que somos seres humanos cheios de defeitos - porque é tão verdade que ficamos impacientes quando precisamos tratar com alguém que não nos entende de imediato, porque está habituado a outros valores e comportamentos; e ainda assim a gente tem que confiar, isto é, aceitar um tempo mais longo para entender o outro, sabendo que depois vai entendê-lo. Ou, ainda, "liberdade não é o direito de tê-la", uma frase simples e extraordinária para denunciar a hipocrisia em que se funda todo o Ocidente.
Falando recentemente sobre os discursos do Papa Francisco, Niki Vendola, aluno de dom Tonino Bello, o grande bispo de Molfetta, diz que Bergoglio se parece com ele porque ambos "prestam atenção às palavras"; e acrescenta: “porque são as palavras que constroem as relações do mundo”.
Poderia ser vista como uma obviedade, mas ao invés disso é tão pouco óbvia que desde que eu li aquela passagem interpelo aquele com quem estou falando, e cada um me parece ser mais pessoa, e a nossa troca assumiu o peso de uma relação que se não existisse, não estaria nem mesmo a humanidade.
Devo dizer que por causa das recentes encíclicas comecei a apreciar uma já na época do Papa Ratzinger que, contudo, quando foi nomeado, havia nos parecido tão distante, tanto que, para enfatizar sua estranheza, il manifesto usou esta manchete “o pastor alemão". Foi por acaso que descobri que ele era um ser humano irônico e sem preconceitos. Aconteceu porque tive que escrever uma das “dez lições sobre o amor”, um livro coletivo editado por Nottetempo, que depois recitamos até no teatro, primeiro em Roma e depois em Milão (entre nós também a excepcional Franca Valeri): a cada um foi confiada uma palavra relacionada a esse sentimento: ciúme, traição, paixão, etc. A mim coube, justamente, esta última, paixão.
Em busca de inspiração ao navegar na internet, me deparei com a palavra "amor" em referência a uma encíclica muito recente de Ratzinger, que tinha essa palavra como título. Descobri nela uma dissertação muito interessante sobre o eros (não vou falar sobre isso porque é muito longa) que contém a desmentida de que a Igreja o tenha condenado, pois o amor entre homem e mulher, arquétipo por excelência deste sentimento, baseia-se na ideia de que corpo e alma estão inseparavelmente envolvidos; e que, aliás, o humano só é humano se os dois aspectos estiverem co-presentes. E então Ratzinger se torna até espirituoso e ironiza sobre a ideia comum que gostaria os cristãos como ascetas, o epicurista Gassnedi que encontra Descartes e diz "olá alma" e ele responde "olá corpo".
Nunca mais aprofundei o pensamento do papa alemão, mas quando recentemente vi o filme “Os Dois Papas”, percebi que Ratzinger não era de forma alguma estranho à escolha de seu sucessor: um presente fantástico.
No início, desconfiei desse novo papa argentino. Por causa dos meus amigos de esquerda daquele país. Eles temiam que ele tivesse sido escolhido para embaralhar as cartas e enterrar a Teologia da Libertação da ala revolucionária da Igreja latino-americana, com a qual Bergoglio nunca tivera efetivamente algum envolvimento. Fui imediatamente tranquilizada por Adolfo Perez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e amigo de Bergoglio, com quem tive uma longa relação de amizade e colaboração tendo sido ele presidente e eu sua vice na Liga pelos Direitos dos Povos, uma das organizações da "tríade" fundada por Lelio Basso. Eu tinha plena fé nele e acreditei nele, depois não tive nada além de confirmações emocionantes.
A primeira foi a leitura de seus discursos aos movimentos populares, reunidos quase todos os anos: quase os mesmos com os quais havíamos nos encontrado em Porto Alegre, na época dos fóruns sociais mundiais. Os mais importantes entre estes os Sem terra, com o seu líder, João Pedro Stedile. Fiquei particularmente impressionado com o último, pronunciado na assembleia realizada em Roma, em que o papa disse algo que representa um salto qualitativo em relação ao que foi dito anteriormente por qualquer um de seus antecessores mesmo que avançados. Falando dos pobres, ele observou que o problema não era fazer uma política "para" os pobres, mas "dos" pobres. Ou seja, ele afirmava um conceito político muito avançado, e entre os mais esquecidos hoje: não basta a caridade, os pobres devem adquirir subjetividade, tornar-se protagonistas de sua própria política. Pouco depois, para evitar equívocos, ele repetiu o conceito de forma mais direta dizendo: gente, a caridade é algo muito bom, mas é preciso política! (Frase que sempre repito desde então, porque nos últimos tempos também houve um grande ímpeto de solidariedade e paralelamente um distanciamento, senão rejeição, da política).
E é precisamente nesta última encíclica, "Fratelli Tutti", que Francisco aborda diretamente a política; e, de certa forma, para mim não crente, e inclusive comunista, faz com que o sinta como um irmão. Porque adverte acertadamente que “a melhor forma para dominar é criando desconfiança”. É uma forma extraordinária de dizer o que em nosso jargão “de globalizados, mas não próximos” traduzimos com TINA, o famoso “there is no alternative”, o lema mortal, porque paralisante, usado pelos poderosos para desencorajar qualquer revolta.
De fato, foi o Papa Francisco quem chamou a atenção, em nosso tempo tão sombrio de obscurecimento de seu papel, a política entendida como formadora dos sujeitos que mais precisam dela. Cuidando para condenar veementemente sua deriva populista, contra a qual imediatamente adverte, antes de tudo - escreve - não só porque torna o povo passivo, mas “porque explora a cultura do povo, induzindo-a a colocar-se ao serviço de sua própria permanência no poder". Se na "Laudato Si'" é muito forte a denúncia contra a desestabilização da terra que, sem meias palavras, o papa atribui ao domínio do mercado, ao lucro, em "Fratelli tutti” insiste cada vez mais sobre a subjetivação dos explorados: “Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam - escreve - seria infantil. Desfrutamos de um espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Devemos ser parte ativa da revitalização e do sustento da sociedade ferida. É possível começar de baixo e, caso a caso, lutar por aquilo que é concreto e local”.
E, no entanto, muito mais avisado do que muitos dos nossos companheiros seduzidos pelo comunitarismo a ponto de denunciar não só qualquer soberania maior do que o Município, não só a Europa, mas mesmo o Estado nacional, acrescenta de imediato: contudo “cuidado com o local, poderia nos fazer cair na mesquinhez".
“Entre localização e globalização deve sempre haver uma tensão, são dois polos inexoráveis”. Porque "é preciso nos deixar questionar pelo que está fora" e, além disso, hoje "nenhum Estado nacional teria condições de se sustentar sozinho". E coerentemente com este apelo ao mundo, contra o ressurgimento dos fechamentos comunitários, ele justamente fala contra a exaltação das diferenças culturais, um direito de cada um reivindicar a sua, mas não para se fechar destro dela, porque, ao contrário , é preciso buscar a inserção, a contaminação: as culturas não são como as plantas que em nome da biodiversidade devem ser preservadas como são, devem se confrontar positivamente, porque aquela do outro - como dizia o grande intelectual palestino Edward Said diga - “é um recurso crítico de si mesmo”, e sem este exercício perderiam sua função antropológica. A sua conclusão é fundamental: o universalismo não é um mal em si, devemos, aliás, lutar para construí-lo, porque hoje ele não existe, o que se passa como tal é apenas aquele definido pelo "Ocidente", que forja arbitrariamente conceitos e valores, graças ao monopólio da comunicação.
Não posso dizer hoje o que a pregação do Papa Francisco produzirá na história terrena, a única que conheço. Acredito que o seu Evangelho seja um apelo muito forte para recuperar a coragem de voltar a ousar imaginar a alternativa, para reabrir o horizonte do possível. Existe o risco de que a luta de classes, o conflito, que em nossa cultura justamente consideramos o motor da história, sejam afogados em um amor desarmado e desarmante? Eu não acredito nisso. O conflito não é ódio nem mesmo para nós, e a luta de classes é essencial para erradicar o primado arrogante do "terrível direito de propriedade" que o Papa Francisco considera "direito quase secundário", quase um furto, como dizia Proudhon, para quem acredita como ele que os bens da terra são comuns e a eventual esmola uma restituição. “Não devemos tranquilizar os pobres - escreve ele no final de “Fratelli tutti” - com estratégias de contenção que tornem os pobres domesticados e inofensivos”. São palavras que dão indicações não muito distantes das nossas. Se hoje é possível encontrar tal consonância com o chefe supremo de uma Igreja que durante séculos tomou o partido dos poderosos, é porque o mundo se tornou tão injusto e desigual que abalou até mesmo o Vaticano; agrada-me pensar em ter um Pontífice que "luta ao nosso lado".
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Francisco nos estimula a reabrir e ampliar o horizonte do possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU