05 Março 2021
“Não há erros teológicos formais nas declarações dos bispos dos EUA sobre a vacina da Johnson & Johnson. Mas muito mais ênfase é dada na retórica para se evitar o perigo desta vacina, por ter conexões remotas com o mal do aborto, do que para o perigo ativo de uma pandemia descontrolada. Eles parecem priorizar evitar qualquer potencial falta de clareza sobre o aborto em vez de encorajar a cooperação com os esforços para reduzir os danos da pandemia”, escreve Sam Sawyer, jesuíta estadunidense, em artigo publicado por America, 03-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Por que alguns bispos da Igreja Católica estão dizendo para os católicos evitarem a nova vacina da Johnson & Johnson? Por que alguns dos líderes da Igreja nos EUA lançam questionamentos sobre essa vacina mesmo que o Vaticano já tenha dito que pode ser moralmente aceitável recebê-la? Mais importante, por que essas declarações não começam, como deveriam, sendo inteiramente compatíveis com o ensino moral católico e as diretrizes do Vaticano, com um resumo que afirma: “Todas essas vacinas são seguras, efetivas e moralmente aceitáveis sob as presentes circunstâncias, mesmo se não perfeitas. A solidariedade, especialmente com aqueles que tem maior risco diante da covid-19, nos chama a cooperar para vacinar a maior quantidade de pessoas o mais breve possível”?
Porém, é claro, há ressalvas: a atual declaração teve mais nuances do que dizem as manchetes; as declarações foram levantadas por indivíduos de dioceses e chefes de comitês da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, e outros bispos e dioceses não tem adotado essa abordagem; e as declarações, propriamente entendidas, somente aconselham evitar a vacina da Johnson & Johnsons relativa a outras opções.
No entanto, as manchetes dessas declarações deixam claro o risco e o custo de tais manifestações: “As vacinas da covid-19 geram advertências de alguns bispos católicos”; “Arquidiocese Católica proíbe a vacina da covid pela tênue ligação com o aborto”; “A Conferência dos Bispos Católicos dos EUA diz para evitar a vacina Johnson & Johnson, se possível”. Compare a impressão que essas manchetes dão com a orientação do Vaticano sobre esta questão: “Quando as vacinas da covid-19 eticamente irrepreensíveis não estão disponíveis... é moralmente aceitável receber vacinas da covid-19 que usaram linhagens celulares de fetos abortados em suas pesquisas e processo de produção”.
Declarações recentes de alguns bispos dos EUA, devidamente compreendidas, apenas aconselham evitar a vacina Johnson & Johnson em relação a outras opções.
Se você tem acompanhado essas questões de perto e está cuidadosamente focado nas advertências, então já sabe como explicar a nuance que está faltando na maioria das manchetes (claro, se você – como a maioria dos católicos – não estiver totalmente bem versado nos detalhes técnicos dessas questões, é mais provável que você apenas se confunda).
Há uma diferença moral entre as vacinas Pfizer e Moderna, que utilizou apenas linhagens celulares derivadas de abortos há décadas para testes durante seu processo de desenvolvimento, e a nova vacina Johnson & Johnson, que usa essas linhagens celulares como parte de sua produção. Essa diferença significa que a nova vacina está mais conectada ao mal do aborto, mesmo que remotamente, do que outras vacinas atualmente aprovadas – embora, como a orientação do Vaticano deixa claro, seja moralmente aceitável quando vacinas “eticamente irrepreensíveis” não estiverem disponíveis.
Não há discordância fundamental entre a orientação do Vaticano e as recentes declarações dentro da Igreja dos EUA sobre o ensino moral subjacente e, certamente, nenhum erro teológico formal em qualquer uma delas. Em vez disso, a confusão em torno desta orientação recente da vacina surge de diferentes prioridades dadas às várias partes do cálculo moral delineado na orientação do Vaticano, combinado com o que parece ser uma falha, pastoralmente irresponsável, em planejar as formas previsíveis de como uma recomendação católica para “evitar a vacina Johnson & Johnson” seria repercutida e divulgada na imprensa secular.
É importante desvendar essas diferenças de prioridades e o fracasso pastoral nas comunicações, uma vez que continuarão a ser desafios para a Igreja em relação às vacinas e à pandemia, e em oferecer orientação moral pública aos católicos em qualquer questão contenciosa. Existem três pontos principais a serem reconhecidos.
Como afirmado anteriormente, é verdade que a vacina Johnson & Johnson é moralmente menos distante do mal do aborto do que as vacinas Moderna e Pfizer. Portanto, também é verdade que, em uma situação em que se defronta a igualdade de escolha entre essas opções, seria melhor escolher uma vacina mais afastada do mal do aborto. Esta é uma análise católica padrão sobre os graus de cooperação moral e reflete o fato de que, se tudo o mais for igual, se beneficiar, mesmo que remotamente, de um ato maligno pode tender a encorajar, em vez de desencorajar futuros atos malignos. A hipótese aqui é algo como: se não resistirmos à dependência de linhagens celulares derivadas do aborto para produzir vacinas, tanto quanto pudermos, isso poderia ajudar a legitimar futuros abortos dos quais tais benefícios possam ser derivados.
Mas essa é uma hipótese bastante remota, não um risco ativo – as linhagens celulares em questão foram derivadas de abortos nas décadas de 1970 e 1980, e esses abortos não tinham o objetivo de criar as linhagens celulares. Tampouco tomar uma vacina hoje estimula diretamente a derivação de novas linhagens celulares ou novos abortos. Esses riscos hipotéticos devem ser comparados ao risco atual e real de desacelerar as vacinações e atrasar a imunidade do rebanho durante uma pandemia que está causando mortes reais agora.
Como a vacina Johnson & Johnson é mais fácil de armazenar do que outras opções e pode ser administrada em uma única dose, ela será especialmente útil na vacinação de populações carentes.
Além disso, uma vez que a vacina Johnson & Johnson ainda é moralmente aceitável na ausência de alternativas, só haveria culpa moral por escolher a vacina se outras opções estivessem disponíveis (pela mesma lógica, se houvesse uma vacina igualmente disponível que não tivesse sequer sido testada com linhagens celulares comprometidas, seria moralmente preferível até mesmo às vacinas Pfizer e Moderna). Mas a maioria das pessoas nem consegue chegar facilmente às vacinas, muito menos escolher entre diferentes vacinas. Portanto, tentar evitar a opção de vacina menos pior, mas ainda moralmente aceitável, como essas declarações sugerem, provavelmente tornará mais difícil para as pessoas serem vacinadas.
Isso porque a vacina da Johnson & Johnson é mais fácil de armazenar que as opções da Pfizer e Moderna e pode ser administrada em dose única, o que é especialmente útil na vacinação de populações distantes, incluindo aquelas em áreas rurais ou as que tem um desafio significante para retornar à segunda dose. Então os custos práticos da ansiedade moral sobre a vacina da Johnson & Johnson são superados pelas pessoas que já estão marginalizadas.
Todas essas vacinas são seguras, eficientes e moralmente aceitável sob as atuais circunstâncias, mesmo que não perfeitas.
A diretriz do Vaticano sobre essas questões, depois de quatro pontos focados sobre a análise moral das conexões remotas das vacinas para o aborto, acrescenta no quinto ponto que “a moralidade da vacinação depende não apenas do dever de proteger a saúde de alguém, mas também no dever de perseguir o bem comum”. Alguém que recusar a vacinação por razões de consciência “deve fazer o máximo, por outros meios profiláticos e comportamento apropriado, tornar-se veículo de transmissão de agentes infecciosos”.
Mas a frase “bem comum”, ou encorajamento geral para todos serem vacinados, está ausente na declaração da Arquidiocese de Nova Orleans, na qual está focada somente sobre o entendimento de como a vacina da Johnson & Johnson é pior que as outras opções em relação a sua conexão com o aborto. Assim como em nenhuma parte da declaração afirma-se explicitamente que a vacina da Johnson & Johnson é moralmente aceitável na ausência de outras alternativas.
A declaração dos líderes da USCCB é significativamente melhor nessa questão, pois cita explicitamente as diretrizes do Vaticano, afirmando que as vacinas da covid-19 são moralmente aceitáveis, e então conclui com a uma afirmação “ser vacinado por ser um ato de caridade que serve ao bem comum”. Mas, embora incentive a cautela moral significativa sobre a vacina da Johnson & Johnson, não reconhece como evitar uma vacina moralmente aceitável poderia perpetuar o risco de infecção para outras pessoas.
Para ser claro, não há erros teológicos formais nessas declarações – mas muito mais ênfase é dada na retórica para se evitar o perigo desta vacina, por ter conexões remotas com o mal do aborto, do que para o perigo ativo de uma pandemia descontrolada. Eles parecem priorizar evitar qualquer potencial falta de clareza sobre o aborto em vez de encorajar a cooperação com os esforços para reduzir os danos da pandemia.
É totalmente previsível que declarações de bispos católicos sobre preocupações morais em relação a uma vacina da covid-19 recém-aprovada sejam relatadas e percebidas como um julgamento católico geral sobre a moralidade da própria vacina. Talvez haja alguma falha nos leitores que apenas leem as manchetes (às vezes enganosas) ou que pulam as condicionais anteriores, como “se vacinas menos moralmente questionáveis estiverem igualmente disponíveis” – mas também aqueles que emitem as declarações podem ser culpados por não fazerem tudo ao seu alcance para evitar esses mal-entendidos com antecedência.
Embora esses mal-entendidos não possam ser totalmente evitados, eles podem ser significativamente mitigados. Uma oportunidade óbvia – e perdida – é simplesmente começar afirmando o que os católicos são encorajados a fazer: buscar oportunidades de se vacinar o mais rápido possível, a fim de ajudar a controlar a pandemia e proteger os vulneráveis.
Como argumentei anteriormente a respeito da crise dos abusos e das intervenções da Igreja na política, esses erros retóricos são falhas pastorais significativas. Eles deixam os fiéis confusos, ansiosos e desedificados e esbanjam as reservas cada vez mais escassas de credibilidade que a liderança da Igreja ainda mantém.
É possível para a Igreja e para os líderes católicos fazerem melhor. O ponto de partida é simplesmente afirmar as verdades mais importantes que queremos que as pessoas sigam, em vez de dar ênfase indevida a distinções morais técnicas. Enquanto este artigo estava sendo preparado para publicação, o bispo Robert McElroy, de San Diego, emitiu uma declaração que fazia exatamente isso:
“Mas sobre a questão moral e pastoral concreta de receber as vacinas da Pfizer, da Moderna, da Johnson & Johnson ou da Astra-Zeneca, quero deixar claro para as comunidades católicas de San Diego que no atual momento de pandemia, com opções de vacinas limitadas disponíveis para alcançar a cura em nossa nação e em nosso mundo, é inteiramente moral e legítimo receber qualquer uma dessas quatro vacinas e reconhecer, como o Papa Francisco observou, que ao recebê-las estamos verdadeiramente mostrando amor ao nosso próximo e ao nosso Deus”.
Quão diferente seria nossa recepção às advertências sobre a vacina da Johnson & Johnson se todas as declarações começassem com essa declaração clara?
Para repetir: todas essas vacinas são seguras, eficazes e moralmente aceitáveis nas atuais circunstâncias, mesmo que não sejam perfeitas. E a solidariedade, especialmente com aqueles que correm maior risco com a covid-19, nos chama a cooperar para vacinar o máximo de pessoas o mais rápido possível.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
EUA. Como não falar sobre as vacinas: alguns bispos estão optando pela guerra cultural ao invés do bem comum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU