“Entre o ato criativo de Deus dos bens naturais do nada e os bens tecnológicos desenvolvidos produtivamente a partir desses bens primários, está a mediação do trabalho acumulado e não reconhecido de pessoas, povos e gerações. Entre o Deus criador e os bens de consumo, existem trabalhadores criativos invisíveis. Essa é a perversão do atual sistema de relações produtivas: invisibilizar o trabalho humano para não o reconhecer economicamente. Deus não criou um celular, Deus criou a matéria-prima a partir da qual a espécie humana, por um processo criativo de produção e desenvolvimento acumulado, criou o celular. A Apple não o cria do nada. A Apple não é Deus. O mundo atual de bens e serviços é criado por Deus e pelos trabalhadores”, escreve Emilce Cuda, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Emilce Cuda é doutora em Teologia Moral Social, membro do Programa Internacional “The Future of Work” (OIT-ICMC-Vaticano), professora da Universidade Nacional Arthur Jauretche, Argentina, Membro-assessor do CELAM e autora do livro “Para leer a Francisco. Teologia, Etica y Politica”.
A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.
No marco do programa para o “O futuro do trabalho, o trabalho depois da Laudato Si'”, para discernir no que consiste a transição ecológica-justa e como atuar para torná-la efetiva, proponho seguir o método latino-americano da Teologia da Libertação: ver-julgar-agir. 1) ver a situação atual mundial dos trabalhadores a partir das denúncias da Laudato Si' e dos dados proporcionados pela Comissão Mundial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e depois a situação concreta da América Latina; 2) julgar – ou discernir – sobre o par categorial descarte/dignidade, a partir da cultura do encontro, proposta pelos bispos latino-americanos e pelo Papa Francisco; 3) agir estabelecendo uma relação efetiva entre governo, universidade e sindicatos/movimentos sociais para o reconhecimento da pessoa dos trabalhadores mediante: atividades laborais justamente remuneradas; participação ativa nos processos de tomada de decisões políticas e econômicas nos governos e nas empresas sobre o modo de produção distribuição e reinvestimento da renda; condições de trabalho decente; e garantias sociais universais que ponham em igualdade de condições a todos os trabalhadores. O tempo é curto. É um desafio universal porque, se de agora a 2030 não iniciarmos o processo de transição ecológica justa, a vida do planeta corre perigo.
De acordo com o relatório da Comissão Global para o Futuro do Trabalho da OIT, publicado em 22 de janeiro de 2019 como início das comemorações do seu centenário: 190 milhões de pessoas estavam desempregadas até aquele momento; 2 bilhões sobreviviam por meio da economia informal; 300 milhões viviam na pobreza; e quase 3 milhões morriam anualmente de doenças ocupacionais. Com base nesses números, a comissão estabeleceu que 344 milhões de empregos deveriam ser criados até 2030 para acabar com o desemprego. Essa situação se agravou a partir de março de 2020, devido à pandemia de covid-19; os números aumentaram consideravelmente, e os governos dos países periféricos não podem garantir emprego ou uma renda básica universal porque estão falidos. O desemprego aumenta a cada mês. À margem do neoliberalismo, o emprego informal avança até se concretizar em condições criminosas.
Na América Latina, por necessidade de sobrevivência, jovens de setores empobrecidos acabam sendo cooptados pelas redes do narcotráfico, o que representa um novo estilo de trabalho e um Estado absoluto que – paralelamente ao Estado de Direito, garante a propriedade privada e acumulação sem limites morais, ele promete vida, mas não é uma vida boa para todos, nem pode sustentá-la no tempo. No México, por exemplo, ocorreram 85 mortes causadas pela recente explosão de um oleoduto, em decorrência dos saques de recursos naturais que depois são comercializados fora do Estado, evitando retenções fiscais e impedindo a redistribuição de riquezas.
A situação de trabalho indigno, com nuances diferentes dotadas pelos diferentes tipos de organizações criminosas, se repete em todo o mundo. A globalização liquefaz as fronteiras geopolíticas e eleva outras, as sociais. A corrupção política e a hegemonia da mídia transformaram a democracia em um referendo sem partidos políticos, não apenas em países empobrecidos, mas também em contextos industriais avançados. Consequentemente, os trabalhadores, agora desempregados e descartados, perderam sua capacidade de organização política, o que impede a formação de comunidades politicamente organizadas capazes de defender seus direitos. Não apenas em países com estados fracos os trabalhadores votaram em candidatos contrários às suas necessidades sociais – como no caso do Brasil e da Argentina. Também na Europa e nos Estados Unidos vimos grupos de “administradores” chegarem ao governo para cortar direitos sociais, o que aprofundou a crise econômica e de saúde que desencadeou a pandemia.
Em um contexto de capitalismo neoliberal global, não faz sentido pensar estratégias isoladas de trabalho digno e decente. A ação dos trabalhadores descartados organizados também deve ser global. O que funcionou no século XX – os sindicatos, por exemplo – não funciona mais no século XXI, simplesmente porque os trabalhadores desempregados não podem se organizar nessas condições de isolamento. Na América Latina, assim como na Ásia, África, Europa ou América do Norte, pensar no futuro do trabalho implica considerar as taxas de desemprego ao mesmo tempo que as novas formas de emprego informal, ambas igualmente escandalosas para os trabalhadores em qualquer contexto. É urgente inventar novas formas de trabalho, não necessariamente assalariado, mas remunerado, que voltem a envolver o Estado e resolvam o problema do desemprego estrutural. Ao mesmo tempo, há que se considerar as propostas de: resgatar jovens desempregados do crime organizado – uma nova forma de acumulação de renda; sucesso na inserção de jovens universitários desempregados; e dar espaço a outros modos de organização social dos trabalhadores agora desempregados, como os movimentos populares.
A causa do desemprego, segundo Laudato Si', não é a pobreza nem a tecnologia, mas o paradigma tecnocrático que sustenta uma cultura de descarte. Nunca houve tanta riqueza produzida como agora, mas também não foi tão concentrada com impunidade; isso supõe uma percepção de riqueza sem questionamento moral. A riqueza hoje é percebida como boa e decente, e a pobreza como um castigo para a indecência – é assim que a nova Teologia da Prosperidade a enuncia na América Latina, que no Brasil, por exemplo, levou Bolsonaro ao governo. A causa da pobreza não está, segundo Thomas Piketty, na produtividade, nos salários ou nas taxas de desemprego, mas nos modos obscenos de acumulação de renda e que também, segundo o autor de “O Capital no Século XXI” (Ed. Intrínseca, 2014), é um fator cultural. É por isso que, como diz o Papa Francisco, “o sistema mundial atual é insustentável” (LS 61).
A Rerum Novarum, do final do século XIX, denunciava a questão do trabalho como terrível e urgente, colocando a causa da exploração dos trabalhadores na pessoa de empresários egoístas e na falta de instituições para proteger os seus direitos. No século XX, o sindicalismo, organizado local e internacionalmente, com seus partidos políticos populares, conquistou direitos trabalhistas e sociais. No século XXI, tanto a OIT quanto o Ensino Social da Igreja, com suas duas últimas encíclicas sociais, Laudato Si' e Fratelli Tutti, denunciam o desemprego estrutural e apresentam o desafio de pensar o futuro do trabalho; e se propõem a fazê-lo com base em um trabalho decente e digno.
Laudato Si' não fala sobre patrões ou trabalhadores, como faziam as encíclicas sociais anteriores. Fala de um paradigma tecnocrático que sustenta a “cultura do descarte” (LS 20, 43), e leva a uma crise ecológica onde as primeiras vítimas são os pobres, que passam de explorados a trabalhadores descartados e vivem nas áreas mais vulneráveis (LS 45, 158). Enquanto o furacão Matthew deixou mais de mil mortos em 2016 no Haiti – além de casas destruídas e cidades inabitáveis –, na Flórida, em 2018 o furacão Irma, da mesma categoria, apagou apenas alguns semáforos. O exemplo é convincente.
Laudato Si' também não fala de trabalho decente, mas da dignidade dos pobres (LS 158), porque segundo a Teologia do Povo – corrente argentina da Teologia da Libertação latino-americana e com base na teologia pastoral e profética do atual pontífice de todos os católicos – os pobres são sempre trabalhadores, mesmo que estejam desempregados ou descartados, pois para sobreviver até o dia seguinte precisam fazer alguma coisa. Trabalhar em condições indignas para sobreviver é a situação dos pobres no sistema econômico atual. Por isso, acabar com a pobreza não é acabar com o trabalho, mas modificar as relações mercantilizadas e monetarizadas que determinam o trabalhador.
Segundo a Teologia do Povo do Papa Francisco – contribuição latino-americana ao atual magistério social pontifício –, o trabalhador pobre ao deixar de estar empregado não perde sua condição de trabalhador, porque se o fizesse perderia sua dignidade humana, pois o trabalho é a forma como o ser humano desenvolve e manifesta sua essência. Isso explica no século XXI o surgimento de novas formas de organização dos trabalhadores desempregados, alternativas aos sindicatos que durante o século XX lutaram pelo trabalho decente. Hoje, os movimentos populares são o modo de organização dos trabalhadores demitidos e exigem algo mais primário do que condições dignas de trabalho – porque estão desempregados. Eles reivindicam a dignidade por meio da recuperação de: Terra, Teto e Trabalho.
Resolver a pobreza criando e reconhecendo outras formas de trabalhar exige uma conversão cultural de toda a sociedade (LS 216 ss). Requer também que se reabilite o papel de diferentes instituições intermediárias do Estado – além do governo –, tais como: sindicatos, movimentos sociais e populares, universidades, empresas nacionais, cooperativas e ONGs. O desafio de iniciar uma transição ecológica – ou uma transição justa, nos termos da OIT – implica uma mudança cultural, ou seja: passar de uma cultura de morte denunciada pelos bispos latino-americanos no Documento de Aparecida (DA 185), para uma cultura do encontro, como propõe o atual magistério social pontifício na Evangelii Gaudium (EG 220).
Para essa transformação, o atual Papa de origem latino-americana enfrenta tudo: o sistema econômico dizendo que essa economia mata, o sistema político dizendo que a corrupção é pior que o pecado, o sistema científico criticando o paradigma tecnocrático, e o sistema religioso criticando o clericalismo e intimidade. Tudo isso junto constitui a cultura do descarte: um sistema de relações disjuntivas que deve se tornar um sistema de relações conectivas. Isso mesmo, em termos teológicos se diz diabólico e simbólico, respectivamente. Trata-se do que Francisco chama de cultura do encontro, como unidade na diferença como novo modo de relações socialmente produtivas e sustentáveis, isto é, de desenvolvimento e cuidado da Casa Comum.
É dever de todo cristão crente cuidar da obra de Deus – ou seja, o ser humano e o planeta –, o que a Laudato Si' chama de Casa Comum. Ser cuidador é parte constitutiva de sua essência humana e cristão, e por isso mesmo é sua dignidade. Assim o expressa João Paulo II em Laborem Exercens, onde desenvolve a teologia do trabalho. A teologia econômica – ou a economia da salvação – é o cuidado da casa comum. Cuidar significa algo maior que administrar os bens comuns; implica sensibilidade social, isto é, política com a forma mais alta de caridade, como amizade social, de acordo com Francisco na Fratelli Tutti (cap. 5 e 6).
Segundo os princípios de fé judaico-cristãos, o ser humano é cocriador e colaborador de Deus na criação. Segundo o Gênesis, o trabalho humano consiste em cuidar da vida, por isso Deus pergunta a Caim onde está seu irmão. O trabalho não é uma mercadoria para a teologia judaico-cristã, mas uma relação de cuidado dos seres humanos entre eles, o resto dos seres vivos e o planeta. Para o cristianismo, o trabalho é uma relação de solidariedade produtiva e sustentável que só pode ocorrer com uma mudança de paradigma em direção a um modelo de relações pessoais comunicativas à imagem do modelo trinitário.
Entende-se como modelo trinitário – desde o Cristianismo – a criação como imagem e semelhança de Deus, que é Uno e Trino. Ver o mundo como imagem da trindade, é compreender o ser humano como ser relacional, ou seja, que se constitui como tal em relação aos outros. Assim como as pessoas da trindade se constituem como Pai, Filho e Espírito Santo na relação ou comunicação intratrinitária, da mesma forma os indivíduos se constituem como pessoas no diálogo social que é a comunidade política e econômica com participação universal nos processos de tomada de decisão, em defesa da dignidade humana, para garantir jurídica e institucionalmente a solidariedade, que nada mais é do que o livre acesso de todos aos bens comuns doados gratuitamente pelo criador. Pelo contrário, assistimos hoje a um modelo de ser humano individualista que acredita poder constituir-se como pessoa fora de todas as relações. Essa posição, que o impede de ser solidário e misericordioso, o dessensibiliza para o desemprego e a pobreza. Por isso, para o Papa Francisco, o caminho para uma transição ecológica e justa implica uma mudança cultural.
O trabalhador como cuidador e recriador da Casa Comum é uma alternativa para: a cultura do descarte, o extrativismo e a apropriação absoluta dos bens criados. Segundo o Papa Francisco, “O século XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste a uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão económico-financeira, de caráter transnacional, tende a prevalecer sobre a política” (LS 175), isso se repete na Fratelli Tutti (cap. I). Na ausência do Estado como garantidor da dignidade humana que se constitui pelo trabalho como meio de imitação da imago dei, algo terá de ser feito com os trabalhadores despedidos. Se considerarmos que a pessoa se constitui na sua dignidade, isto é, no seu direito inalienável de imitar o seu criador, e se considerarmos – como o exprimiu João Paulo II na Laborem Exercens – que a atividade divina é a obra de criar, então o direito irrenunciável de cada ser humano consiste em trabalhar criativamente imitando seu criador.
Deus cria o mundo e o homem o recria. Entre o ato divino de criar bens primários do nada, e os bens tecnológicos desenvolvidos a partir daqueles criados para uso e cuidado universal, existe o ato humano de recreação. Deus cria e o homem cuida e recria, ou seja, para se desenvolver de forma sustentável. Deus é criador e o homem é criativo. Essa atividade, divina e humana, é chamada de trabalho. Esta atividade, sendo atividade divina, é a atividade constitutiva da essência humana. O ser humano imita Deus trabalhando criativamente e nesta atividade realiza sua essência como imago Dei (Cf. Laborum Excersen).
Entre o ato criativo de Deus dos bens naturais do nada e os bens tecnológicos desenvolvidos produtivamente a partir desses bens primários, está a mediação do trabalho acumulado e não reconhecido de pessoas, povos e gerações. Entre o Deus criador e os bens de consumo, existem trabalhadores criativos invisíveis. Essa é a perversão do atual sistema de relações produtivas: invisibilizar o trabalho humano para não o reconhecer economicamente. Deus não criou um celular, Deus criou a matéria-prima a partir da qual a espécie humana, por um processo criativo de produção e desenvolvimento acumulado, criou o celular. A Apple não o cria do nada. A Apple não é Deus. O mundo atual de bens e serviços é criado por Deus e pelos trabalhadores.
Agora, trabalhadores são todos aqueles que participam dos processos de produção, desenvolvimento e cuidado, seja ele físico ou intelectual. O problema é que:
1. Alguns não participam desses processos, não trabalham e vivem do trabalho do outro, como bem explica Adam Smith, em “A Riqueza das Nações”;
2. O resto trabalha para produzir a riqueza, mas não é parte dela;
3. Dos que trabalham na produção, desenvolvimento, logística e cuidado de bens e serviços, apenas 38% é reconhecido como trabalhador – os empregados formalmente;
4. A maioria desses trabalhadores formais não se reconhecem como trabalhadores;
5. 62% dos trabalhadores são informais e o conjunto da sociedade não reconhece sua atividade como trabalho.
Então, aqueles cuja atividade laboral está reconhecida como trabalho, tem trabalho mais ou menos decente, remuneração mais ou menos justa, direitos sociais mínimos garantidos e acesso aos bens comuns sob a forma de salário, renda e crédito. Aqueles cuja atividade laboral no processo de produção, desenvolvimento e cuidado de bens e serviços não está reconhecida como trabalho, não tem garantias de nada.
Em meio à pandemia de covid-19, esse trabalho invisibilizado social e economicamente, se fez visível. Os corpos dos trabalhadores informais foram os únicos que ficaram nas ruas realizando o trabalho de cuidado, expostos ao contágio. Unicamente se os reconheceu pela primeira vez como trabalhadores e necessários, e foram chamados de “trabalhadores essenciais”. A maioria eram migrantes e informais. Este último está demonstrando que, salvo alguns pouquíssimos, todas as pessoas são trabalhadoras. Se for possível aceitar isso culturalmente, não é preciso “inventar” novos trabalhos para os pobres, mas há de se reconhecer, simplesmente, como trabalho formal a atividade laboral que já estão fazendo, remunerar justamente e garantir os direitos sociais a todos os trabalhadores.
Perceber os trabalhadores informais do setor de serviços como cuidadores da casa comum é uma alternativa viável, porque já estão trabalhando, ainda que de maneira invisível. Porém isso requer iniciar um processo de transição ecológica que implicaria mudar o sistema de remuneração, o sistema educativo e o sistema recreativo. Pensar um programa social onde os trabalhadores descartados convertam-se em trabalhadores cuja função seja ser cuidadores da casa comum, com uma remuneração justa e em condições dignas de vida e trabalho, é uma alternativa. Pode ser um modo rápido e eficaz de resgate de jovens trabalhadores desempregados, que se encontram em situação de vulnerabilidade social frente à oferta do emprego informal – às vezes criminal nas redes das máfias e do narcotráfico, como se viu no primeiro ponto deste artigo. O programa poderia permitir, por um lado, o reconhecimento de uma grande parte do trabalho invisível – voluntário, doméstico, etc. – tanto como a desagregação efetiva entre o trabalho e a economia. Por outro lado, pode permitir a reorientação dos empregos que atingem a casa comum.
Podem ser formadas equipas de trabalho intergeracionais e interdisciplinares, a nível nacional e regional, com uma dupla tarefa: 1) contatar e recrutar jovens atualmente afastados que se encontram em situação de elevado risco social – ou seja, aqueles que podem ser cooptados por redes da máfia e do narcotráfico; 2) treiná-los como cuidadores da casa comum; 3) gerar para eles novos empregos remunerados por meio da criação e implementação de projetos relacionados ao cuidado ecológico. Esses jovens que ainda hoje estão na rua deveriam estar nas universidades, formando nos sistemas de educação não formal, junto com outros estudantes universitários que estão no sistema de educação formal. Isso permite que eles deixem de ser trabalhadores descartados e se tornem trabalhadores-cuidadores remunerados.
A remuneração por essa nova forma de trabalhar vem do sistema. Dinheiro não falta, o que falta é uma mudança na percepção do trabalho e da riqueza que permita aceitar como “trabalho” outro tipo de atividade que não é necessariamente o trabalho assalariado em condições de exploração. Para os jovens descartados, que não têm acesso ao trabalho formal ou à universidade, reconhecê-los como trabalhadores do cuidado restaura sua dignidade, não só porque recebem uma remuneração, mas também porque lhes dá uma responsabilidade e com isso um sentido social para suas vidas que até então eles não valiam nada para o sistema. É também uma demonstração de que a falta de trabalho não responde a uma falta de capital, mas a um modo de acumulação de renda e conhecimento, e mostra que mudando a percepção do trabalho e da remuneração, renda e empregos podem ser distribuídos e gerados de outro modo.
O currículo universitário ficou desatualizado devido à nova situação mundial do trabalho. Muitas das carreiras oferecidas não são apenas contrárias a uma economia sustentável, mas também funcionam a um modelo tecnológico que só tem capacidade de emprego em países com indústria avançada. Embora não se pretenda uma mudança imediata nas estruturas – como se pensava nas décadas de 70 e 80 do século XX a partir da Teologia da Libertação – não sobra muito tempo para iniciar processos de transição justa. A ONU com sua Agenda 2030 estabeleceu o limite. Procura iniciar um processo de transição ecológica que implica ao mesmo tempo uma conversão cultural – de acordo com um dos quatro princípios bergoglianos, segundo os quais o tempo é superior ao espaço. O diálogo tripartite entre governo, universidades e sindicatos/movimentos sociais é fundamental para iniciar esse processo. Por isso, o programa Futuro do Trabalho é uma necessidade urgente de aplicação à realidade efetiva na cultura do encontro.
O programa “Futuro do Trabalho: o Trabalho depois da Laudato Si'”, é um dos lançamentos de um novo modelo de trabalho digno e remunerado que não é necessariamente o do trabalho assalariado em condições indecentes. Trata-se de mudar culturalmente a percepção do trabalho como emprego assalariado em condições de exploração pela do trabalho-formação-capacitação-permanente remunerado. Ver no trabalho a responsabilidade de zelar pela criação é mais do que pensar em um trabalho decente. Trabalhar como cuidador, e ser remunerado por isso, é uma atividade digna que gera o lançamento do movimento organizado de todos os trabalhadores em busca de alternativas às mudanças tecnológicas.