28 Outubro 2020
O cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, acaba de publicar uma antologia de pensamentos e citações que podem ser úteis para combater a superficialidade e a banalidade, e são capazes de oferecer ideias sobre a espiritualidade e grandes valores como a justiça e a verdade.
O jornal Il Sole 24 Ore, 25-10-2020, publicou um trecho da introdução da obra. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esta introdução gostaria de ser um pequeno guia para o uso – idealmente cotidiano, dada a distribuição no arco simbólico dos dias de um ano – das páginas que se seguirão. Uma espécie de mapa, portanto, do qual indicamos os quatro pontos cardeais, confiando-os igualmente a quatro vocábulos.
Gianfranco Ravasi.
Scoprire l’anima. 366 meditazioni quotidiane.
Milão: Mondadori, 444 páginas
O primeiro, que está na raiz do próprio gênero literário do livro, é a citação: uma frase ou um breve parágrafo, extraído de um autor ou de uma tradição sapiencial antiga ou moderna, é a fonte, o ponto de partida, o estímulo para uma reflexão posterior. O termo chegou ao italiano [e ao português] obviamente do latim citare, um verbo que tem como significado primário “sacudir”, um valor conservado no conjunto de palavras derivadas: incitar, excitar, concitar, solicitar, suscitar, ressuscitar. Mas, já em latim, o verbo havia sido transferido para a sede jurídica com o significado de “chamar em juízo”, daí o nosso uso de “citar” e de “citação” no âmbito forense e burocrático.
Talvez precisamente essa assonância estava na base quando o Papa Inocêncio XII, em 1694, adaptou como sede dos tribunais do Estado pontifício o Palácio de Montecitorio. Na realidade, o nome derivava do medieval “Mons Acceptorius”, uma colina artificial sobre a qual se erguia o obelisco de Psamético II (século VI a.C.), aqui colocado por vontade do imperador Augusto.
Precisamente pela sua função nos processos públicos, o verbo também adquiriu o valor de “ler em voz alta”, daí o nosso “recitar”. Pois bem, tal entrelaçamento de significados também explica as “citações” deste livro. Elas aspiram a “sacudir” a atenção e a consciência do leitor; às vezes querem pô-lo em crise e julgar seus comportamentos, quase “citando-o em juízo”; e, por fim, especialmente no caso dos textos poéticos, convidam-no a “recitá-los”, isto é, a fazê-los ressoar lentamente, quase proferindo-os palavra por palavra.
Certamente, a citação é sempre um retalho, uma subtração de um pedaço de um corpo vivo que é o conjunto de um texto dotado de estrutura e unidade. Portanto, é importante o apelo implícito a voltar às matrizes integrais, quando permanecemos capturados pelo fragmento.
Passamos assim ao segundo ponto cardeal bastante evidente, expressado com o termo fundamental “palavra”. Se é verdade que todo livro é feito de palavras, neste caso queremos exaltar algumas palavras colocando ao seu redor um halo de luz. Ou, melhor, elas mesmas irradiam um esplendor de sabedoria, insinuam-se nas grutas escuras da alma, “sacodem” o sono da mente com os seus raios deslumbrantes. Muitas vezes, nos nossos dias, essas palavras necessárias sofreram um eclipse, deixando espaço para o rio lamacento dos insultos, da instintualidade verbal, da obscenidade, sobretudo ao longo das lotadas avenidas da infosfera.
Ora, sabe-se que o “grande código” da cultura ocidental, como o artista e poeta inglês William Blake definia a Bíblia, abre-se com uma palavra transcendente: “No princípio... Deus disse: Haja luz! E a luz foi feita” (Gênesis 1,1.3). E o Novo Testamento ecoa esse início com o célebre prólogo do hino do Evangelho de João: “No princípio era a Palavra [Lógos]... E o Verbo se fez carne” (1,1.14).
A eficácia divina criadora da palavra está presente, por analogia, também na “comunicação” alta, que – para ficar na etimologia desse termo – é oferecer-se reciprocamente um munus, um dom. É formidável a afirmação do escritor búlgaro de língua alemã que encontraremos nas nossas citações, Elias Canetti: “Se eu fosse realmente um escritor, deveria ser capaz de impedir a guerra... Chegou-se à situação que tornou a guerra realmente inevitável por meio de palavras, palavras sobre palavras usadas despropositadamente. Se o poder das palavras é tão grande, por que elas não deveriam ser capazes de impedir a guerra?”. Essa força é inversamente proporcional ao excesso. É famoso o lema latino “multa paucis”, “muitas coisas em poucas palavras”, um ditado nascido no classicismo e que passou para a linguagem eclesiástica para chegar também à modernidade.
Justamente por essa razão, a citação é essencial e intuitiva, e o nosso livro pode ser classificado, como outros publicados por nós anteriormente, sob o título de Breviário, um termo de gênese clássica, mas que se popularizou no uso católico. De fato, ele remete ao livro da oração oficial eclesial, no qual, para cada dia, condensam-se alguns textos, sobretudo extraídos dos Salmos bíblicos, para serem “recitados” cotidianamente.
Essencialidade, sobriedade, brevidade eram precisamente as características dessas orações no que diz respeito ao fluxo magmático das práticas devocionais. Os impulsos de reflexão que agora se estenderão por um ano também são quase mínimos, legíveis em poucos minutos.
E é precisamente o verbo “ler” o terceiro ponto cardeal que desejamos sugerir. Quantas lamentações foram feitas contra o povo italiano, tão alérgico à leitura de livros! Leopardi, no em seu “Zibaldone”, na data de 5 de fevereiro de 1828, já anotava: “Já se pode dizer, em verdade, especialmente na Itália, que são mais numerosos os escritores do que os leitores, já que grande parte dos escritores não lê, e lê menos do que escreve”.
Jesus mesmo, segundo o Evangelho de Lucas, praticava a leitura, como atesta um episódio ocorrido na modesta sinagoga do seu vilarejo, Nazaré, durante o culto do shabbat: “Ele se levantou para ler o rolo do profeta Isaías” (4,16-17). O verbo usado para indicar a sua leitura é significativo: anaghinóskô, ou seja, um “conhecer” discursivo e subsequente (aná, “longo, entre”), um vocábulo que se repete 32 vezes no Novo Testamento.
De fato, não devemos esquecer que aquela que o cristianismo chama de graphê, “Escritura” sagrada, na tradição judaica é miqra’, ou seja, a “Leitura” por excelência, a proclamação pública, expressada com a mesma raiz verbal que se encontra no vocábulo árabe “Alcorão” com significado idêntico.
Ora, é bem sabido que o “livro” (em latim liber indicava a membrana entre a madeira e a cortiça da árvore usada para escrever e, embora sendo geneticamente diferente, é graficamente idêntico à palavra liber, “livre”) não é só obra do Autor, que certamente tem o seu primado. É também fruto do Leitor, que recria os seus componentes, preenche os seus espaços em branco do implícito deixados pelo escritor, faz explodir a sua fecundidade germinal. O verbo grego légô, que está na origem etimológica do nosso “ler”, significa acima de tudo “recolher” e “escolher”, e depois se torna “dizer, narrar”. É fácil compreender, então, a complexidade dessa ação: a leitura é uma coleção que seleciona sementes, as faz crescer e as expressa em novas formas, encontrando luzes para iluminar o caminho da vida do leitor. É por isso que um livro sem leitores está morto; é por isso que o livro pode se tornar decisivo para o leitor.
É Proust ainda quem explica isso no seu “O tempo recuperado: “Todo leitor, quando lê, lê a si mesmo. A obra do escritor é uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor para lhe permitir discernir aquilo que, sem livro, talvez não teria visto em si mesmo”.
Chegamos, assim, ao último ponto cardeal deste guia de leitura. Se é verdade que os grandes livros servem para viver em plenitude, no caso das citações que proporemos, temos a implementação de outro vocábulo, bastante raro no uso e na prática dos nossos dias, “meditar”. Ainda no “Zibaldone”, no início de setembro de 1823, Leopardi anotava uma curiosa etimologia: “meditar” deriva do latim medeor, que significa “cuidar, medicar”, razão pela qual – concluía ele – “meditar uma coisa é uma continuação do simples fato de cuidar ou tomar conta dela”. E, efetivamente, se consultar um dicionário etimológico, sob o verbete “meditar” temos a referência a “médico”. Sugestivamente, a raiz indo-europeia med-, que está na base de medeor, significa “pensar, refletir” e também “medir”, enquanto se explica – ainda nos dicionários – que meditor, “meditar” é “um verbo iterativo derivado de medeor”.
Em outras palavras, a meditação é pensamento e reflexão e, portanto, é um remédio para a alma. Por isso, segundo o historiador grego Hecateu de Abdera (séc. IV-III a.C.), no frontão da biblioteca erguida pelo faraó Ramsés II (séc. XIII a.C.), lia-se uma inscrição que, traduzida em grego, era psychês iatréion, ou seja, “clínica da alma”.
As frases e as breves apologias que marcarão cada dia do ano aspiram a criar, também através do comentário, um oásis de reflexão. Meditar por alguns minutos todos os dias não é tempo perdido, pelo contrário, é colocar fermento no nosso pensar e agir; é uma verdadeira medicação contra a superficialidade e contra a banalidade, o lugar comum, a reação instintiva.
A meditação abre na nossa personalidade muitas brechas, que permitem introduzir nelas sensibilidade moral, espiritualidade, valores humanos e o anseio por justiça e verdade.
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Medicar a alma com a reflexão. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU