22 Outubro 2020
"Não bastassem as 'rachadinhas' do clã familiar e seu costume de pagar tudo com dinheiro vivo, agora ninguém menos do que o vice-líder da 'nova política' no Senado é flagrado com uma quantia expressiva de dinheiro – prática da 'velha política' – cuja origem e destino permanecem suspeitos", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
Antes do século XXI, na hora do aperto ou na busca de maior precisão, era costume consultar os dicionários Aurélio ou Houaiss, os mais respeitados da língua portuguesa. Aos poucos foi se impondo cada vez mais a enciclopédia livre ou Wikipédia, do Google. Mas a Internet, por sua vez, também recorre àquelas duas fontes primeiras e primordiais. Isso posto, vamos ao que interessa. De acordo com ambos os dicionários supracitados, o termo corporativismo pode ser usado de duas maneiras. A primeira, de caráter mais restrito, o define como a “doutrina que considera os agrupamentos profissionais como uma estrutura fundamental da organização política, econômica e social e preconiza a concentração das classes produtoras em forma de corporações tuteladas pelo Estado”. A outra, de natureza mais extensiva, o define como a “defesa exclusiva dos próprios interesses profissionais por parte de uma categoria funcional; espírito de corpo ou de grupo”.
Por que esta pequena incursão pelo “pai dos burros”? Ocorre que está em curso no Congresso Nacional uma forma de corporativismo das mais nefastas, seja para a sociedade brasileira em particular, seja para a democracia em geral. No Senado federal, suas excelências podem tentar salvar o mandato do Senador Francisco de Assis Rodrigues, do partido Democratas (DEM-RR), vice-líder do governo no Senado e ex-governador do estado de Roraima. Chico Rodrigues, foi surpreendido em sua casa por uma operação da Polícia Federal que apura suspeita de desvio dos recursos públicos destinadas ao combate da Covid-19. Os policiais apreenderam cerca de R$ 100 mil a mansão, dos quais R$ 33 mil na cueca do parlamentar, ou melhor, “nas nádegas”, como afirmou o delegado da PF. O Ministro do STF Luís Roberto Barroso, por prevenção, afastou o senador por 90 dias, decisão que está sujeita à confirmação ou cancelamento pelos membros do Senado. Mas este, através de um acordo de afastamento por 4 meses, dá sobrevida ao Senador. E é aí que o corporativismo entra em cena.
Já na Câmara Federal, suas excelências podem tentar salvar o mandato da Deputada Federal Flordelis dos Santos de Souza, do Partido Social Democrático (PSD), eleita pelo estado do Rio de Janeiro desde 2019. A deputada, uma pastora que se tornou popular por adotar dezenas de crianças de comunidades carentes, é acusada de ser a mandante do assassinato do próprio marido, o também pastor Anderson do Carmo, executado a tiros na garagem de sua casa, no município de Niterói-RJ, no dia 16 de junho de 2019. No inquérito policial, enquanto os filhos adotivos foram acusados de serem os autores do crime, Flordelis foi imputada como mentora e mandante. As provas demonstraram também que ela já havia tentado várias vezes matar o cônjuge com veneno, levando-o com frequência a ser internado no hospital. Os responsáveis diretos pelo assassinato já foram presos, mas a deputada continua em liberdade, beneficiada pela lei da imunidade parlamentar. Mais recentemente, e após uma série de tentativas para localizá-la, a pastora viu-se obrigada a usar tornozeleira eletrônica. Também neste caso, a suspensão do mandato da deputada, que permitiria seguir o processo normal de investigação, julgamento e prisão, está sujeita à decisão de seus comparsas na Câmara Federal. E, uma vez mais, é aí que o corporativismo pode, sim, entrar em cena.
O corporativismo, por outro lado, tem raízes profundas na história do Brasil. Costuma andar de braços dados com o patrimonialismo, isto é, a apropriação privada das res publica. Tanto um como o outro, desde os primórdios da Colônia, Império e República, encontram terreno fértil em terras de Santa Cruz. Fizeram escola em não poucas dinastias, fossem elas federais, estaduais ou municipais. No caso da Deputada Flordelis, o corporativismo revelaria a ponta do iceberg da prática política no Rio de Janeiro. Nesse estado, com efeito, são fluídas, flexíveis, híbridas e intercambiáveis as fronteiras entre a atuação política, a presença da milícia e o envolvimento no crime organizado. Já no caso do Senador Chico Rodrigues, rasga-se de cima a baixo a narrativa do presidente Bolsonaro segundo a qual “no meu governo não tem corrupção”. Não bastassem as “rachadinhas” do clã familiar e seu costume de pagar tudo com dinheiro vivo, agora ninguém menos do que o vice-líder da “nova política” no Senado é flagrado com uma quantia expressiva de dinheiro – prática da “velha política” – cuja origem e destino permanecem suspeitos.
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O vírus do corporativismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU