20 Outubro 2020
Se não fosse a gente e a nossa pressão, haveria apenas quem consagrasse Robinho, quem o tratasse como herói por participar de um estupro coletivo. Como fazia a galera pré-internet de 1987. Estamos melhor hoje. E não vamos parar, escreve Lola Aronovich, blogueira feminista e pedagoga argentina naturalizada brasileira. Doutora e mestra em Literatura em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, em artigo publicado em seu blog Escreva Lola Escreva, 16-10-2020.
Até agora, eu não estava acompanhando direito a história do jogador de futebol Robinho, que foi condenado em novembro de 2017 por participar, junto com outros quatro amigos, de um estupro coletivo contra uma mulher de 23 anos de origem albanesa, numa boate em Milão, em 2013.
Ele e o amigo Ricardo Falco foram condenados em primeira instância a nove anos pela justiça italiana e a um pagamento de indenização de 60 mil euros. O processo está em andamento (apenas depois de passar pelas três instâncias alguém é visto como culpado, e é aí que acontece o início do cumprimento da pena), mas só os trechos da sentença divulgados hoje pelo jornalista Lucas Ferraz já dizem muito sobre o caráter, ou a falta de caráter, de Robinho, que não viu nada de errado em "transar", ou "tentar transar", com uma mulher completamente bêbada, sem condições sequer de ficar em pé. Uma pessoa bêbada não tem como consentir.
Os trechos adquiridos através de grampos que constam na sentença (em segredo de justiça) foram fundamentais para a condenação, pois serviram como prova de que Robinho e os demais sabiam como a vítima estava. Por exemplo, num dos trechos o jogador declara: "Olha, os caras estão na merda... Ainda bem que existe Deus, porque eu nem toquei aquela garota. Vi [nome de amigo], e os outros foderam ela, eles vão ter problemas, não eu... Lembro que os caras que pegaram ela foram [nomes de dois amigos]. [...] Eram cinco em cima dela".
Em outro momento, ao ser avisado por um músico sobre a investigação policial, Robinho responde: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu". O amigo músico então pergunta: "Mas você também transou com a mulher?" Robinho: Não, eu tentei. Amigo: Eu te vi quando colocava o pênis dentro da boca dela. Robinho: Isso não significa transar.
Um dos advogados de Robinho afirma que insistirá que a relação foi consensual e que não há prova de que os envolvidos no crime induziram a mulher a beber ou tomar droga para em seguida se aproveitar sexualmente dela. "Fazer sexo com uma pessoa bêbada ou drogada não fere a lei. Não estou dizendo que ele é uma pessoa perfeita. Ele mesmo reconheceu ter tido uma conduta pouco séria, mas crime não cometeu".
Dois meses depois do Santos fazer uma campanha condenando a violência contra a mulher, em agosto deste ano, o clube contratou Robinho, que já havia atuado lá. Um dos dirigentes do Santos alegou: "Robinho não está condenado com trânsito em julgado. Quem somos nós para atirar pedra no Robinho? Atire a primeira pedra quem nunca pecou e será que ele pecou? Vamos esperar o desfecho do processo".
Ao perder a Orthopride, um dos patrocinadores, o Santos disse que garante a presunção da inocência ao jogador. E se queixou dos "cancelamentos", da "cultura dos tribunais da internet". Outra advogada de Robinho já havia reclamado da "lacração".
Como diz Ricardo Fulgoni, que já contou sua terrível história aqui de como conseguiu justiça para o feminicida de sua irmã, "É possível conciliar a pressão sobre o Santos no caso Robinho com a defesa da presunção de inocência. Os efeitos penais, só após o trânsito em julgado. No entanto, as provas legitimamente publicizadas - não o processo, mas as provas - geram desde logo seus efeitos morais e sociais. Por isso o processo tem de ser, em regra, público. Para que não se retarde os efeitos dos fatos. Os efeitos não penais (sociais, morais, etc), portanto, não advém do processo, mas dos fatos contados pelas provas nele produzidas. Presume-se o réu inocente até o trânsito. Mas os fatos não dependem do trânsito para, ressalvados os efeitos penais, serem considerados verdade".
Casagrande falou hoje: "Eu tô assustado com a sociedade brasileira. O Brasil solta traficante. O vice-líder é preso com dinheiro na cueca. A Carol Solberg, por se manifestar politicamente, a CBV faz censura. E o Santos contrata um jogador condenado por estupro". Já Robinho jurou estar "tranquilão" depois do vazamento da sentença. Para ele, a Globo só quer ganhar ibope ao dar "muita ênfase para coisa negativa".
Um perfil que vende camisas desenterrou esta história de 1987 que eu nunca tinha ouvido falar, mas que é extremamente pertinente ao caso atual. Leia, revolte-se, e não pare de questionar: "Mudamos?" Eu volto no final.
Em 1987, uma multidão de gremistas e colorados lotou o
saguão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre,
pra recepcionar com entusiasmo uma pequena comitiva
de quatro reservas do Grêmio que estavam voltando da
Suíça. O motivo mostra como o Brasil tem orgulho do
seu machismo.
O Grêmio era pela terceira vez consecutiva campeão gaúcho. Próximo passo: cruzar o Atlântico em excursão para a Philips Cup, na cidade de Berna, Suíça. De cara, o Grêmio venceu o Benfica, de Portugal, impressionando pelo segundo ano seguido a garota Sandra, de 13 anos.
Como no ano anterior, Sandra decidiu visitar a delegação do Grêmio que estava hospedada no Hotel Metropole. Acabou batendo de forma aleatória no quarto 204. Foi atendida. Lutando contra a barreira do idioma, tentou comunicar que gostaria de ganhar uma camiseta como souvenir. Do outro lado da porta estavam os reservas do Grêmio Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, que convidaram os visitantes a entrar, tentaram manter uma comunicação por grunhidos e gestos sem sucesso. A situação chamou a atenção de Henrique Etges e Alexi Stival, conhecido como Cuca. Ao verem a movimentação no quarto, entraram. Fecha-se a porta.
Sandra foi estuprada dentro do quarto no que os jogadores consideraram uma orgia. Jogaram-se sobre ela, imobilizaram. Dois homens a violaram, enquanto outros dois a acariciavam e seguravam.
Após 30 minutos de terror, Sandra foi à polícia e a equipe, aos treinos. Henrique e Eduardo foram presos na noite de quinta-feira. No dia seguinte, toda a delegação do Grêmio foi convocada pra reconhecimento dos demais envolvidos através de um espelho falso.
E assim estavam presos na Suíça, sob a acusação de estupro, os reservas gremistas Henrique, Eduardo, Cuca e Fernando, cada um em uma cela distinta e incomunicáveis – exceto por advogados – até o fim do inquérito, conforme a legislação do país.
Comitivas, advogados, Itamaraty, Embaixada, até João Havelange, à época chefão da FIFA foram tentativas de intervir sem sucesso pra livrar os rapazes entre 21 e 24 anos. O chefe da delegação insistia em dizer que foi um mal entendido pela barreira da língua que causou a situação.
A legislação da Suíça proibia relação sexual com menores de 16 anos. Crime sério. A denúncia de estupro, então, dispensa qualquer tipo de comentário em relação à gravidade.
O fato ganha destaque no noticiário internacional, respeitando a identidade da vítima. No Brasil, com especial destaque nos jornais gaúchos, foi dada abertura a palpites, comentários e achismos diversos, porém quase unânimes na defesa dos jogadores.
Presos, os jogadores estavam incomunicáveis até o término do processo, o que poderia durar até 30 dias. Não tinha como obter informações ou qualquer tipo de privilégio na Suíça, pois o sigilo judiciário lá é quase hermético.
Um embaixador da Suíça teve acesso às acusações e de fato, disse que eram gravíssimas. Entretanto, a menina, que até então tinha 13 anos, passa a ter “14 anos incompletos” que logo, por comodismo de discurso, viraram 14 anos. Para os jogadores, a idade era outra: 18. Parecia 18.
Foi dito que Sandra entrou no quarto dos rapazes e começou a tirar a roupa, se oferecendo. Quem afirmou foi o China, titular do time que já conhecia a menina da excursão do ano anterior. Ela estava tentando tirar a blusa que usava na hora para trocar por uma camisa do Grêmio.
A família também era entrevistada, afirmando que os jogadores seriam incapazes de fazer isso. Muito se falou sobre a índole impecável dos quatro. Aliás, se isso aconteceu mesmo, a culpa é da menina, que não deveria se meter no meio de quatro marmanjos assim.
Quase ninguém acreditava que eles tivessem estuprado a garota. Afinal, era uma “mocetona”, conforme expressão da época. A teoria difundida que ela havia se oferecido para orgia, pois no dia seguinte estava com uma camisa do Grêmio vendo um jogo.
Diziam também ela já tinha transado antes e com o namorado, que estava com ciúme do que aconteceu no quarto 204 e foi enganado com a história do estupro. Na imprensa brasileira, informavam que jovens europeias têm vida sexual ativa muito cedo, inclusive tomam pílula desde novas.
Para provar que era uma “mocetona” o fotógrafo Paulo Dias do Zero Hora fez de tudo pra tirar uma foto da menina, apesar do sigilo da sua identidade.
Conseguiu pegar ela na saída da escola com a mãe. Quase apanhou de uns suíços no ato pela falta de respeito de fotografar uma menor. Tentou vender a foto pra imprensa europeia, mas não conseguiu. Em compensação, a foto foi destaque no jornal O Globo e Jornal do Brasil. O repórter que o acompanhava conta, aos risos, que também chantageou um repórter pra obter o nome completo da Sandra.
Depois de 28 dias presos, os jogadores foram liberados. Pagaram fiança e uma indenização à garota. Depois foram condenados, mas nunca cumpriram a pena. Os rapazes podem circular por aí livremente, como estão até hoje. Basta não pisarem na Suíça.
Após saírem da prisão, os rapazes admitiram sua culpa. Eles estavam muito envergonhados. Saíram da Suíça com medo da recepção, de como seriam julgados após 28 dias incomunicáveis. O horário do voo pra Porto Alegre foi escolhido a dedo para evitar a imprensa.
De fato, mal sabiam o que esperava os “Doces Devassos”, apelido que a imprensa esportiva gaúcha deu para os rapazes: um grupo de 500 pessoas entre imprensa e torcedores colorados e gremistas ocupava o Salgado Filho. No topo, as bandeiras do Inter e do Grêmio unidas.
O clima no desembarque era de festa. Envergonhados e pedindo desculpa, os jogadores do Grêmio demoraram para entender o que os gritos ensurdecedores de “PUTA, PUTA, PUTA!” e seu real significado. Eles eram heróis. Vítimas solitárias. Machos.
Depois, a retomada. Fizeram ensaio de foto, entrevista de heróis sobreviventes. Vítimas. Só voltaram a ser notícia quando saiu a condenação na Suíça. Seguiram jogando no Grêmio, já que a diretoria recebeu milhares de cartas pedindo pra que os garotos não fossem punidos. Só precisaram pagar as custas dos advogados, processo e indenização mensalmente para o Grêmio.
Hoje, Cuca é treinador de um dos maiores times do país, o Santos, e teve passagem em diversos clubes no Brasil e no exterior. Sandra teve depressão e tentou suicídio aos 15 anos.
Eu, Lola, uma eterna otimista, acho que sim, mudamos nesses 33 anos. E pra melhor, ou pra menos pior, apesar de Bolsonaro.
Certo, ainda temos exposição e condenação pública de meninas, como vimos no caso recente da garota de 10 anos que foi estuprada pelo tio e conseguiu abortar. Ainda se culpam as vítimas, e muito. Um assassino como o goleiro Bruno ainda é idolatrado por alguns. Cuca, um dos quatro do Grêmio, hoje é treinador do Santos (imagino as conversas fraternais que ele tenha com Robinho). Já o elogiou como "exemplo de jogador".
Mas duvido que hoje, de cada 20 entrevistados na rua por uma emissora de TV, apenas um consideraria Robinho culpado, como ocorreu com os quatro jogadores do Grêmio na época. Por conta do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente, que este ano completou três décadas), seria crime a imprensa publicar foto de uma vítima de estupro de 13 anos.
Hoje, em vez de um repórter fazer qualquer coisa para revelar a identidade de uma menina, um jornalista vai atrás da sentença em segredo de justiça. Também seria impensável a mídia chamar o jogador do Santos de "doce devasso". Ele ainda pode ser recebido com glórias e honras no aeroporto (aeroportos onde multidões se reuniam pra chamar quem idolatra torturador de "mito"), mas certamente haverá patrocinadores que cortam as verbas.
Hoje fazemos muito barulho. Fazemos ativismo. Não aceitamos machismo, racismo, LGBTfobia. É o que alguns que são contra essas mudanças culturais chamam pejorativamente de lacração, cultura do cancelamento, tribunais da internet. Se não fosse a gente e a nossa pressão, haveria apenas quem consagrasse Robinho, quem o tratasse como herói por participar de um estupro coletivo. Como fazia a galera pré-internet de 1987. Estamos melhor hoje. E não vamos parar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A pressão contra Robinho e a comparação com um estupro de 33 anos atrás. Artigo de Lola Aronovich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU