15 Outubro 2020
"Surge agora uma antologia na qual desfilam 'os loucos por Cristo do Oriente e do Ocidente' [em tradução livre], cujos textos são apresentados, traduzidos e comentados por Lisa Cremaschi, uma monja da importante, mas conturbada, comunidade de Bose, que ganhou destaque das notícias nos últimos tempos. O termo 'louco' certamente soa mais nobre do que 'idiota' ou 'doido' aos nossos ouvidos, embora sua gênese etimológica não seja particularmente estimulante", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 11-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ascetas. Uma antologia de personagens que viveram no Oriente e no Ocidente muitas vezes capazes de grandes provocações espirituais, de João, o Calibita, a Máximo, o Kausokalibita, de Francisco de Assis a Jacopone de Todi. O idiota: um título pode criar um mal-entendido inicial em quem quiser mergulhar na grandiosa arquitetura do famoso romance que Dostoiévski elaborou entre 1868 e 1869, enquanto com sua esposa vagava pela Europa para escapar dos credores russos que o perseguiam por suas vultosas dívidas de jogo. Na verdade, o protagonista, o Príncipe Michkin é tudo menos um tolo, pelo contrário, ele é uma criatura espiritualmente superior, cuja sinceridade interior e amor generoso ignoram a "normalidade" escusa e sombria de seu amigo Rogójin, aliás, desejam redimi-la. O "Idiota", de fato, pertence ao léxico russo do misticismo e é comparável ao evangélico "puro de coração". Na verdade, mereceria a surpreendente afirmação dos sábios de Montaigne: "A mais sutil loucura é feita pela mais sutil sabedoria", bem como, é claro, o Elogio da Loucura, título da obra-prima de Erasmo de Rotterdam.
Curadoria de Lisa Cremaschi
Follia d’amore. I folli in Cristo d’Oriente e d’Occidente
Qiqajon, Bose (Biella), p. 266, € 26
Surge agora uma antologia na qual desfilam "os loucos por Cristo do Oriente e do Ocidente", cujos textos são apresentados, traduzidos e comentados por Lisa Cremaschi, uma monja da importante, mas conturbada, comunidade de Bose, que ganhou destaque das notícias nos últimos tempos. O termo "louco" certamente soa mais nobre do que "idiota" ou "doido" aos nossos ouvidos, embora sua gênese etimológica não seja particularmente estimulante: em latim follis é o fole ou saco de pele que esvazia, dispersando o ar. A verdadeira definição, por outro lado, deve ser buscada nas palavras contundentes que o apóstolo Paulo dirige aos cristãos de Corinto que exibem a cauda de pavão da intelectualidade grega: "Porque a palavra da cruz é loucura (moría) para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus ... Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura (moría) para os gregos” (cf. 1Co 1,17-31).
O encontro com os loucos por Cristo começa no deserto egípcio, pontuado aqui e ali - a partir do século IV - não apenas por oásis, mas também por mulheres e homens cristãos que escolhem aquelas severas solidões queimadas pelo sol para viver uma experiência espiritual radical. A viagem no tempo, nas pistas da estepe, faz-nos encontrar uma série de personagens muitas vezes provocadoras. Há, por exemplo, Marcos, um monge com um passado de luxúria que, depois de ter compartilhado a existência dos marginalizados em Alexandria, no Egito, se retira para o deserto, iniciando um árduo percurso de expiação. Há João, chamado de Calibita, ou seja, "o morador de cabanas", devido à sua escolha de se vestir de mendigo e residir em uma cabana próxima ao palácio paterno. Ao Calibita devemos necessariamente associar Máximo, o Kausokalibita, ou seja, o "queimador de cabanas": cada vez que sua popularidade crescia e a multidão de visitantes aumentava, ele não hesitava em atear fogo à miserável cabana onde vivia e mudar-se para outro lugar, seminu, rico apenas em um extraordinário conhecimento das Sagradas Escrituras e de sua devoção à Mãe de Deus. Depois, nos é apresentado o personagem mais famoso da antiguidade, tanto que se chama Simeão, o Louco por excelência, que, após 39 anos no deserto, decide retornar à cidade com este programa: “Vou fazer troça do mundo”, e a partir daquele momento deixamos aos leitores seguir suas desconcertantes bizarrices destinadas, no entanto, a sacudir as consciências entorpecidas. Os séculos passam, surgem outros personagens e entre estes há um que nos traz de volta à Itália, Nicolas de Trani, um grego que chegou à Puglia não para realizar prodígios, mas apenas para contagiar o ouvinte com sua alegria "louca", fruto de uma fé cristalina.
Na esteira de Nicolas, vamos para o Ocidente, onde nos espera a história sensacional do romano Alexio, que foge de seu palácio na mesma noite de seu casamento e desaparece na Síria, apenas para reaparecer anos depois em frente de sua residência como mendigo, nem mesmo sendo reconhecido por seus pais. Vamos nos deslocar para a Alemanha com Heimrad, peregrino e asceta radical a ponto de ser acusado de satanismo. Não parece necessário, então, evocar uma famosa tríade de loucos por e em Cristo como Francisco de Assis, Jacopone de Todi ("enlouquecer pelo belo Messias") e o espanhol João de Deus, fundador da Fatebenefratelli, "loucos de amor pelos pobres”.
Lisa Cremaschi não hesita em apresentar outras figuras, talvez menos populares, mas igualmente impressionantes. Eis então Pietro Crisci de Foligno, contemporâneo de Dante, que brilha de beleza mesmo na maceração da mais rígida penitência pelos seus pecados. Sua parábola em ação é sugestiva, segundo o estilo dos profetas bíblicos: recolher seixos polidos pelo riacho, lavá-las com as próprias lágrimas e, carregando-os na cabeça, oferecê-los como presente à Virgem Maria. Uma guinada em sua vida já madura é realizada pelo sienense do século XIV, João Colombini, que aos cinquenta deixou sua carreira política e de mercador para seguir a Cristo no caminho da pobreza total e da humildade. Séculos depois, no século XVIII, será o francês Bento José Labre que se tornará um vagabundo de Deus com um rosário ao pescoço, uma tigela ao lado, um alforje contendo o Novo Testamento, a Imitação de Cristo e o breviário. Após uma longa peregrinação por diferentes países, ele se estabeleceu em Roma, dormindo sob um arco do Coliseu. Às vezes insultado e agredido, suspeitado pela autoridade eclesiástica, será antes procurado por muitos romanos, a começar pelas crianças, conquistados pela sua doçura e serenidade.
Mas um espaço especial merece Jean-Joseph Surin, um jesuíta do século XVII, pessoa de grande cultura, mas também de extrema sensibilidade humana e espiritual, a ponto de beirar a fragilidade psíquica. A sua existência foi atribulada por uma história ligada ao convento das Ursulinas de Loudun, assolado por escândalos que levaram ao envio do pe. Surin como exorcista. A delicadeza de sua humanidade chocou-se com o terrível fascínio e a capacidade de dominar e sedução sobre a comunidade da superiora, madre Joana dos Anjos, uma mulher psicopata e vingativa, mas inteligentíssima. Surin não recorre a exorcismos retumbantes, mas escuta com delicadeza aquelas freiras e as educa para a liberdade interior. Lentamente, no entanto, ele acaba sugado de toda energia e sua psique entra em colapso. Começa para ele um longo Calvário que o leva à beira do abismo do suicídio, mergulha-o no silêncio da afasia e dos pesadelos mentais e o bloqueia com uma paralisia por cinco anos.
Ainda assim, da caverna do desespero sua voz espiritual continua a ressoar, cristalizando-se em esplêndidos textos místicos, enquanto seu corpo se recupera e lhe permite voltar a ser guia, especialmente para a população pobre do campo que o escuta, encantada, falar do amor de Deus. Referindo-se a uma confissão do apóstolo Paulo, ele escreveu: “Só quero imitar a loucura de Jesus que perdeu honra e vida na cruz ... Para mim é o mesmo viver ou morrer. Para mim, basta permanecer no amor”. Como detalhe, lembramos que a dramática história do convento de Loudun foi livremente reescrita por Ken Russell no filme Os demônios (1971), inspirado no romance Os demônios de Loudun de Aldous Huxley, com Vanessa Redgrave no papel da madre Joana dos Anjos.
Mas para reencontrar a genuína filigrana deste e de todos os outros loucos por Cristo, tão diferentes entre si e ainda assim marcados por um comum estigma de luz, loucos para os intelectuais e as classes altas, mas compreendidos e amados pelas pessoas simples, inconvenientes para os respeitáveis, mas capazes de desmascarar as hipocrisias, é indispensável a introdução que Lisa Cremaschi oferece na abertura do desfile dos personagens e dos retratos que antecede a antologia dos escritos deles ou sobre eles. "Laicamente" seríamos tentados a concluir com uma frase do Henrique IV de Pirandello: "Encontrar-se diante de um louco é encontrar-se diante de alguém que sacode desde as fundações tudo que vocês construíram em vocês mesmos, ao vosso redor, a lógica de todas as vossas construções".