10 Outubro 2020
"Ao longo da história tanto a noção de conversão social como o conceito de cínico vão sofrer transformações. A partir do início do século XIX o cinismo vai se aproximar muito de um sentido de desdém frente às convenções e normas estabelecidas e aos poucos vai resvalando para a esfera da imoralidade", escreve Frei Paulo Sérgio Cantanheide Ferreira, pároco da Paróquia São Judas Tadeu em Goiânia, professor na UEG Câmpus Cora Coralina em Goiás, especialista em Direitos Humanos, Mestre em Educação, Linguagem e Tecnologias (UEG) e doutor em Educação.
Normalmente quando dizemos que um sujeito é cínico estamos nos referindo a alguém não muito bem apreciado do ponto de vista da moral e da ética. Isso porque o cínico nos dias de hoje é alguém dado à desfaçatez, ao deboche, ao sarcasmo, à ironia baixa e a uma série de adjetivações não muito bem vindas. Porém, o cinismo é uma corrente filosófica que remonta as origens da filosofia grega. Foi Antístenes, discípulo de Sócrates, que deu origem a essa linha de pensamento que em sua fase inicial defendia uma postura de vida avessa às conversões sociais como o dinheiro, a fama, o luxo e o poder, pois, segundo ele, essas coisas são empecilhos para uma liberdade plena, capaz de garantir a felicidade em sua maior completude.
A origem da expressão cínico também está relacionada à palavra cão, visto que o templo onde os filósofos correligionários dessa linha de pensamento se reuniam recebeu o nome de um alimento, na época, oferecido aos cachorros. Outra tradição afirma que a aproximação entre os termos deve-se ao fato de o estilo de vida voltado para o despojamento e a renúncia se assemelhava, segundo alguns desses pensadores, ao estilo de vida dos cães que desfrutavam de uma existência tranquila e afetuosa estando totalmente indiferentes às conversões sociais relacionadas à fama, ao poder e ao dinheiro.
Em sua origem o cinismo se aproxima de certa forma de algumas práticas religiosas que veem a abnegação como valor necessário para a boa qualidade de vida e para uma existência coerente. Fica evidente que para se compreender o cinismo dentro de uma leitura dialética da sociedade é necessário que se tenha em mente duas noções: primeiro o caráter inevitável e contraditório das convenções sociais, depois a possibilidade natural de haver indivíduos, no seio das sociedades, que adotem princípios existenciais que não se conformam a tais convenções. Nesse sentido a postura do cínico pode levar a sociedade a fazer uma autocrítica. Até aqui estamos dentro de uma relação social normal e salutar para a sociedade.
Ao longo da história tanto a noção de conversão social como o conceito de cínico vão sofrer transformações. A partir do início do século XIX o cinismo vai se aproximar muito de um sentido de desdém frente às convenções e normas estabelecidas e aos poucos vai resvalando para a esfera da imoralidade. Nesse mesmo período algumas convenções sociais vão se consolidando e adquirindo força de Lei a ponto de tornarem-se instituições de caráter social, político e jurídico dentro da estrutura do Estado democrático de Direitos.
Dado a mudança de sentido emitida às duas expressões, a contemporaneidade estabelece um abismo entre o cínico e o institucional, de modo que a inserção do primeiro no âmbito das instituições causa sérios danos à sociedade como um todo. Eis aqui o drama do Brasil no momento em que vivemos! Presenciamos o cinismo, no sentido recente do termo, adentrar instituições que são vitais para o Estado e a democracia, como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Instituições historicamente indispensáveis para o equilíbrio existencial das pessoas, não raras vezes encontram-se ameaçadas por estarem permeadas desse neo-cinismo, como é o caso de algumas instituições religiosas.
Diante desse cenário as instituições existem como estrutura de poder legalmente instituídas que garantem privilégios e regalias para seus membros, porém, ineficientes enquanto garantia de um convívio democrático entre os cidadãos. Um exemplo que evidencia tudo isso, é o fato de uma juíza, representante de uma das instituições sociais de maior importância dentro do Estado, lançar mão do racismo como critério para aplicação de pena a um réu.
Outro exemplo de como o neo-cinismo adentra às instituições sociais de grande relevância para o Estado Democrático de Direito, é quando o chefe do Executivo reúne todo o seu ministério em pleno momento de uma pandemia que esta atingindo de forma assustadora grande parte da população brasileira e a sua grande preocupação é lançar mão da estrutura da Polícia Federal para proteger a sua família dos crimes de corrupção que a mesma é apontada como suspeita, quando todos esperavam um plano nacional de combate ao avanço da pandemia no país.
E porque não falar do avanço cinismo, em seu sentido mais espúrio, nas instituições religiosas. Quando alguns líderes religiosos, que se dizem discípulos de um homem que pregou a renúncia, o despojamento e a abnegação, são capazes de colocar tabelas de preço e seus templos para que os fiéis tenham acesso aos milagres realizados por Deus. Para não falar da apologia escancarada à liberação do uso de armas de fogo, fingindo desconhecer que o Deus inspirador de suas Igrejas fez de sua vida uma atitude não violenta.
E assim são inúmeros os casos em que o neo-cinismo adentra as instituições sociais, distorcendo oque seria a convivência democrática entre os cidadãos. É preocupante quando observamos esse neo-cinismo transcender as instituições e adquirir contornos de ideologia política atingindo grande parte da população, sendo capaz de cegar as pessoas, impedindo-as de ver o momento em que as instituições deixam de ser espaços de garantia da convivência democrática, tornando-se meios de efetivação da violação de direitos.
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Entre a institucionalização e o cinismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU