06 Outubro 2020
“Dizem que a austeridade é a única proposta para remediar a crise na Europa, mas as pessoas estão cada vez mais pobres. A tecnologia e a globalização mudaram o nosso enfoque do trabalho, a cada dia se produz mais, com menos pessoas. O desemprego disparou e o trabalho não é mais um direito”. Crise, pobreza e trabalho, com esses três vetores inicia um dos vídeos de apresentação da Iniciativa de Cidadania Europeia - ICE por uma Renda Básica Universal e Incondicional, com a qual ativistas de quinze países tentam chegar a um milhão de assinaturas, em um ano.
A reportagem é de Sarah Babiker, publicada por El Salto, 04-10-2020. A tradução é do Cepat.
Diante do cenário descrito, argumentam que uma medida como essa poderia ser uma saída. Financiada por meio de uma reforma tributária progressiva, impostos sobre produtos de luxo e a poupança pela simplificação da burocracia de uma pluralidade de subsídios condicionais, consideram que essa renda permitiria o cumprimento do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe garanta, assim como a sua família, saúde e bem-estar, e principalmente alimentação, roupa, moradia, assistência médica e os serviços sociais necessários”, diz a primeira parte do referido artigo.
Na UE, a taxa de risco de pobreza - após transferências sociais - era de 16,8%, em 2018, segundo o Eurostat. Dois anos antes do início desta crise. A verdade é que, na Europa do século XXI, este direito "a um nível de vida adequado" está longe de ser uma realidade. Por isso, ativistas de toda a Europa reivindicam uma transformação de um modelo que consideram insuficiente e propõem a Renda Básica como alternativa, que, embora não seja nova, sente-se mais próxima. Após pouco mais de uma semana de campanha, parece que não são poucos os europeus que desejam ver esta medida debatida nas instituições comunitárias. Já estão se aproximando de 30.000.
“A pandemia colocou o tema da renda básica em primeiro plano, falou-se mais sobre ela nos últimos meses do que em toda a história”, observa Ángel Bravo, coordenador da ICE da Espanha, que destaca que a medida foi reivindicada até mesmo por pessoas da direita no país, nos últimos meses. Bravo acredita que a Renda Básica adquiriu tamanha difusão porque responde bem ao momento que a Europa atravessa: “É algo muito rápido que não precisa de muita burocracia, em comparação com esses auxílios condicionados a tantos requisitos e que demandam muito tempo, muita burocracia e muitos gastos do Estado para poder acessar uma renda mínima abaixo da linha da pobreza”.
A história da Renda Básica Universal tem um nome fundamental no belga Philippe Van Parijs. Esse filósofo e economista político foi recentemente escolhido pela publicação Prospect como um dos principais pensadores da era pós-covid. "Não há dúvida de que isso é apenas um reflexo da crescente consciência global da importância da Renda Básica Internacional para a resiliência de nossas sociedades e economias", comentou Van Parijs recentemente em um tuíte.
O projeto levar a Renda Básica às instituições europeias, na verdade, precede o surgimento da covid-19. Conforme expressava o ativista Carlos Arias neste meio de comunicação, é uma obra que data de 2019, e que retoma uma ICE anterior, que em 2013 coletou 285.000 assinaturas. E embora não tenha conseguido atingir os milhões necessários, ampliou a divulgação e o conhecimento da Renda Básica, sendo replicada em uma ILP da esfera estadual, no ano seguinte, que também não atingiu seus objetivos numéricos. Os promotores desta nova iniciativa entendem que os tempos mudaram e se mostram otimistas.
“Estamos muito felizes porque tem havido muita divulgação da campanha por muitas pessoas e muitas assinaturas. Em números absolutos, a Espanha é a primeira, embora em relação à porcentagem mínima que devemos atingir por país, estamos em quarto lugar, atrás de Eslovénia, Grécia e Hungria”, afirma Bravo que aponta que, depois do Estado espanhol, onde mais de 5.000 já assinaram, Grécia e Portugal são os países que concentram mais adesões, fato que atribui a economias atingidas pela crise e cuja população necessita de auxílio com maior urgência.
“Temos aqui, além disso, o plus do enorme fracasso da Renda Mínima Vital que gerou tantas expectativas e que nem sequer atingiu os mínimos que pretendia”, destaca Bravo. É que no último mês de março alguns meios de comunicação internacionais destacavam o governo de coalizão como um dos primeiros que se atreveria a implementar a renda universal. “Coronavírus: Espanha implementa uma renda básica para amortecer o sofrimento da crise”, intitulava a BBC, um dos meios de comunicação que destacava o momento histórico e introduzia certa confusão ao falar do projeto nesses termos.
Enquanto isso, os defensores da Renda Básica Universal esclareciam em artigos e fóruns que não havia relação entre a medida tomada pelo governo e sua proposta. Uma diferenciação que ativistas como Daniel Raventós, presidente da Rede de Renda Básica, e relator na Comissão para a Reconstrução a favor da medida, não deixaram de destacar nos últimos meses.
A demanda também permeou os movimentos sociais, ocupando um lugar importante no Plano de Choque Social que centenas de coletivos apoiam, desde março. “É essencial introduzir uma renda básica de quarentena que garanta renda de forma universal e incondicional, enquanto durar o estado de emergência. Essa renda básica deve garantir a sustentabilidade de vida dos empregados, autônomos e profissionais que tiverem que parar sua atividade”, destacavam.
Em Portugal, outro dos países que mais reuniu assinaturas, embora nos últimos dias foi ultrapassado pela Eslovénia e a Áustria, o partido de esquerda Livre levou a proposta ao Parlamento português em junho passado. Em seu documento, estimaram em 870 bilhões de euros os recursos que o Banco Central Europeu estaria prestes a injetar no sistema financeiro europeu, dinheiro, argumentaram, que nas mãos dos bancos não contribuiria para sair da crise. “Queremos que a ajuda econômica seja dada diretamente às pessoas na forma de uma Renda Básica Incondicional de Emergência, implementada em escala europeia”, defendiam como forma de estimular a economia real e promover uma saída da crise.
“A Renda Básica Universal é uma ideia brilhante, principalmente em vista das falhas no sistema de proteção social. Se observa o sistema de proteção social agora, tornou-se uma espécie de sistema securitário e armado contra os pobres”, argumentava, há alguns anos, o ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis, à frente da plataforma europeia Diem25, que defende uma renda básica não baseada em impostos, mas em uma espécie de dividendo social contribuído pelo capital.
Na Grécia, no ano passado, foi debatida a entrada na Constituição da obrigação do Estado em fornecer uma renda mínima garantida aos seus cidadãos. Renda condicional direcionada às pessoas mais pobres. Segundo o Eurostat, a população em risco de pobreza ascendia a 18,1%, em 2018, e 2.372 pessoas já assinaram em favor da ICE.
Outro país que, como a Espanha, experimentou uma medida de renda mínima apresentada como uma grande proposta e às vezes confundida com uma renda básica é a Itália, onde o movimento Cinco Estrelas chegou ao Executivo com o reddito di cittadinanza como um de seus principais projetos, revelando limitações em termos do alto grau de condicionalidade. Em março, com o início da crise pandêmica, pensou-se em sua ampliação e melhora. “É hora de simplificar as medidas, incluir toda a população, atingir cada indivíduo e desvinculá-la do emprego”, afirmavam em uma carta promovida pela Basic Income Network Italia. Agora, o próprio Movimento Cinco Estrelas aposta na ICE, que tem 3.446 assinaturas italianas.
A Hungria é outro dos estados onde a demanda por renda básica permeou, obtendo 2.200 assinaturas. No último dia 20 de setembro, os recém-reeleitos colíderes do principal partido da oposição, Párbeszéd, defendiam a implementação de uma renda básica universal no país. Tímea Szabó e Gergely Karacsony apostam numa renda básica paga automaticamente a cada cidadão como “um pilar importante para a Hungria no futuro”, ao mesmo tempo que afirmam que lutarão na batalha institucional, pois estão convencidos de que “mais de 80% dos eleitores húngaros, incluindo aqueles que apoiam o partido no poder Fidesz, são a favor desta medida”.
Enquanto, segundo afirma Ángel Bravo, a crise econômica pode explicar por que os países citados estão liderando a coleta de assinaturas, é “na Alemanha onde há mais sensibilidade à renda básica e o movimento é mais forte”. Ronald Blaschke, cofundador da Rede Europeia pela Renda Básica, em conversa com El Salto, testemunha como o debate permeou a opinião pública em seu país e a amplitude dos atores envolvidos: “Cerca de metade da população alemã é a favor de uma Renda Básica Universal. Pequenos partidos também estão envolvidos, como o Pirata e o Humanista, muitos sindicalistas, algumas organizações civis e juvenis, e até organizações católicas”.
Blaschke destaca ainda que a maior organização de assistência social do país, a protestante Diakonie, está discutindo a medida e se pronunciará no próximo ano, ao passo que em grandes partidos, como o Partido Verde e Die Linke, há muitos adeptos individuais, mas nenhuma posição geral.
Como em todos os estados, na Alemanha, a crise do coronavírus intensificou o debate, defende a também integrante do Comitê Organizador da ICE, Michaela Kerstan. “Ficou muito claro que nosso sistema de proteção tem grandes lacunas, devido aos baixos salários. Estudantes, artistas, pequenos negócios, hotelaria e turismo e todos os trabalhadores em regime de meio período sofreram graves cortes em suas receitas, enquanto a ajuda monetária da União Europeia e dos estados vai principalmente para os grandes negócios”.
Kerstan, que pertence ao Die Link, pensa que uma renda básica universal na Europa seria muito benéfica, já que uma vez que a independência econômica fosse alcançada, “ninguém seria forçado pela pobreza a migrar para países mais ricos para trabalhar lá por baixos salários. Os salários aumentariam e afetariam positivamente as economias dos estados, pois as pessoas teriam dinheiro para consumir”. Isso também evitaria a fuga de cérebros, aponta.
Conforme anunciado por Blaschke, um experimento piloto sobre Renda Básica começará em alguns meses na Alemanha: 120 pessoas receberão por três anos 1.200 euros por mês incondicionalmente. O programa piloto alemão se junta a uma série de experiências, das quais talvez a que decorreu na Finlândia, em 2017, seja a mais conhecida. Os efeitos desse projeto refletiram dados importantes: que a obtenção de uma renda básica não influenciou na busca de emprego e, fundamentalmente, trouxe maior bem-estar. Os resultados da experiência, realizada por um governo conservador, foram interpretados como um sucesso ou fracasso dependendo da posição do analista sobre a renda básica.
A luta por esta medida não parece fácil. Até agora os experimentos não a trouxeram, foi rejeitada na única vez que foi votada em referendo, em 2016, na Suíça, e não ultrapassou a primeira ICE de 2013. Nem nesta ocasião a proposta europeia avançou no início. “A primeira proposta que apresentamos foi em janeiro deste ano e a Comissão Europeia não aceitou porque pedíamos uma Renda Básica para toda a União Europeia”, relata Bravo. Por esta instituição, argumentaram que os tratados europeus não permitiam impor tais tipos de medidas aos estados-membros. “Tivemos que corrigir o texto da proposta e ir por Rendas Básicas incondicionais no plural à União Europeia, dizer que recomendará aos estados-membros implementar rendas básicas: caberá a cada país isto”.
Para Bravo, chegar a um milhão será uma conquista, um grande primeiro passo que deverá ser dado antes de 25 de setembro de 2021. Mas está consciente de que não será fácil avançar nessa medida na Europa da austeridade. Para isso, pensa, será necessário colocar sobre a mesa, como apontavam em sua primeira tentativa, que é necessário certo mecanismo de solidariedade europeia que implique transferências dos países mais ricos para os mais pobres, mas, sobretudo, é imprescindível que além das assinaturas haja um amplo movimento social que pressione. “Isso faria com que as autoridades comunitárias entendessem que há muitas pessoas na Europa que querem isso e que não estão dispostas a continuar tolerando políticas de austeridade que só trazem pobreza. Não só em países como a Espanha, mas também em países ricos como a Alemanha, há muita gente que está passando muito mal”.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o ciclo de palestras A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social, a ser realizado de 14 de outubro a 09 de novembro de 2020, na modalidade EAD. As atividades serão transmitidas ao vivo através da plataforma Microsoft Teams e do YouTube. Mais informações sobre a programação e inscrições podem ser consultadas aqui.
A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social
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Renda Básica Universal: 30.000 assinaturas mais próximas de Bruxelas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU