“Kahlo, por sua estética e pelo que conhecemos de sua ética, também é uma referência dessa 'ecologia da cultura' na qual, por exemplo, se atém a encíclica Laudato si’”, escreve Lucía López Alonso, em artigo publicado por Religión Digital, 30-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Interioridade humana e visão da natureza se fundem na trajetória artística de Frida Kahlo (1907-1954). Desde que em sua infância passeava com seu pai, quando ia pintando as paisagens que viam, a artista mexicana sempre se interessou pela terra e suas múltiplas mutações. Renovando-se quase que como as células, em seus autorretratos (o gênero que mais abordou ao longo de sua carreira) se aprecia a evolução de seus entusiasmos, seus sofrimentos e de seu vínculo com a terra.
Em 1925, por causa de um acidente de trânsito em Coyoacán, a jovem Frida ficou prostrada em uma cama por um tempo, e decidiu pintar a si mesmo, porque a convalescência não a impedia. Com sequelas crônicas (não poder ter filhos, violentas dores nas costas...), Kahlo foi se recuperando, porém jamais deixou de estar doente. Trocou a sua primeira vocação (a medicina) pela pintura, porém não perdeu as raízes das quais saíram ambas vocações: as da natureza como permanente fonte de energia.
A obra de Frida Kahlo, tanto em seus panos, quadros... como nos desenhos que deixou no diário que escrevia, está bordada com elementos da criação. De paisagens (do exuberante tropical temperado a polares e desérticos) a sistemas planetários, a fauna que povoa o bosque (teve, entre muitos outros animais de estimação, um cervo que apelidou de Granizo), espermatozoides... E esse olhar surpreendente que se autoexplora como fenômeno da natureza, sem ocultar linhas de expressão ou o velo do qual o corpo se compõe.
Kahlo, por sua estética e pelo que conhecemos de sua ética, também é uma referência dessa “ecologia da cultura” na qual, por exemplo, se atém a encíclica Laudato si’. Deu seu testemunho ao colecionar a arte funerária de Jalisco e ex-votos da religiosidade popular católica ou colares pré-colombianos. Também utilizava palavras em nahuatl, a língua azteca, preservando a cultura ancestral da qual descendia (ainda que suas origens mestiças a entroncassem também com o continente europeu). Em sua incidência política, por último, uma já reputada Kahlo liderou projetos educativos (de alfabetização, por exemplo) para a integração cultural da população indígena.
Seu inverno seco foi essa doença que foi a aproximando da criadora. Com uma honestidade frontal, Frida refletiu em seus quadros a dura realidade da tortura física. Mas, ao mesmo tempo, expôs a doença com dignidade, e a contra-atacou celebrando a vida com humor e subversão.
Repassamos, em alguma de suas pinturas, a abordagem que fez da natureza.
Em uma das suas primeiras obras de transcendência, Frida Kahlo expõe a importância que outorga a suas origens. Compõe sua árvore genealógica, na qual destaca a paisagem quase tanto quanto as pessoas: as montanhas do México e, no centro, um nopal: árvore autóctone da zona que é uma espécie de insígnia do país.
O senhor Burbank cultivava plantas. A autora o imortaliza com ironia, camuflada na vegetação da qual se ocupava. Porém, esta obra pode ter uma leitura mais profunda: simbolizar que as pessoas são metade alma, metade cosmos. Que estamos integrados em uma natureza na qual tudo está interligado, o que talvez significa que depois da morte se abre mais vida.
Defensora da terra e de quem a trabalha, quando se casou com Diego Rivera e o acompanhou na viagem aos Estados Unidos, Frida Kahlo conheceu de muito perto a superficialidade do progresso técnico. Nesta obra, a pintora confrontou os símbolos da sua cultura ancestral (o sol e a lua, as pirâmides, as rochas, a vegetação de cactos...) aos problemas das sociedades industrializadas (em frente aos arranha-céus, as chaminés da fábrica da Ford contaminam a bandeira, suspensa no microclima urbano). “Todos esses caras ricos me revoltam, porque tenho visto milhares de pessoas nas piores misérias, sem o mínimo para comer e sem um lugar para dormir”, escreveu em carta a um amigo na época.
Kahlo é conhecida por ter sido uma leitora ávida, interessada em regiões e religiões. Em suma, às sabedorias. Em outros de seus retratos, é surpreendente que um terceiro olho tenha sido pintado em sua testa (o que, para os hindus, indica o esforço necessário para olhar bem a realidade). Já neste, a pintora retratou-se com uma mão na orelha (o ex-voto de um milagre), uma coroa de espinhos no pescoço e uma espécie de mortalha. Ela está pedindo para não sofrer, seguindo a tradição iconográfica cristã. E, ao mesmo tempo, envolve-se com proteção: o fundo vegetal, os tons verdes das folhas, sempre associados à esperança.
Muito perto de sua morte prematura, Kahlo começou os anos 1950 a fechar o ciclo: desta vez permanentemente acamada. Experimentando o gênero de naturezas mortas, ela trouxe a paisagem para o quarto e lamentou, sentindo que vegetaria. Mas essas naturezas mortas também são uma declaração de amor pela vida. Um sorriso travesso, que não ignora que a morte está chegando. “Variedade do único”, escreveu em seus diários. “Às vezes chamada de deus – às vezes de liberdade, às vezes de amor (...) mãe – filho – planta – terra – luz – raio – etc – sempre – mundo doador de mundos”.