25 Abril 2019
“Apesar de sua rejeição da sua religião de infância, no entanto, a obra de Frida Kahlo é o produto de um imaginário profundamente católico. Os elementos católicos da arte e da visão de mundo de Kahlo são evidentes de muitos modos, mas o principal deles é a sua reverência pelo corpo, especialmente pelo corpo quebrado (como o dela) e pela sua santidade apesar da sua imperfeição.”
A opinião é de Angela Alaimo O’Donnell, professora de Literatura Inglesa na Fordham University e diretora associada do Curran Center for American Catholic Studies, em artigo publicado por America, 19-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se uma imagem vale mais do que mil palavras, quantas valem um objeto?
Nos últimos anos, projetos como “A História do Mundo em 100 Objetos”, do British Museum, testemunharam o fato de que cada artefato tem uma história para contar. A exposição de Frida Kahlo atualmente no Brooklyn Museum, “As aparências podem enganar”, apresenta mais de 300 deles, e a conversa entre as galerias mudas é alta. Como a própria Frida, cada um desses objetos – desde pinturas a fotografias, artigos de roupas a joias, esmaltes a batons, espartilhos corretivos até próteses de membros – chama a atenção do espectador, dizendo-nos algumas novidades sobre Kahlo que, provavelmente, nós não sabíamos antes: que ela reaproveitava seus frascos de remédio para carregar tequila; que ela mantinha intacta a sua famosa monosobrancelha e o seu ralo bigode para desafiar os padrões de beleza forçados às mulheres por uma cultura patriarcal; que, embora insistisse em sua independência como mulher e artista, ela era obcecada pelo marido Diego Rivera; que, assim como ela se vestia prontamente com a roupa tradicional das mulheres mexicanas, ela também podia vestir um terno de três peças e uma gravata e, mesmo assim, ficar bonita.
Há uma intimidade decidida em relação a esses objetos. Eles tocam em aspectos cruciais da vida privada de Kahlo, incluindo sua deformidade física (que ela fez grandes esforços para disfarçar), sua dor crônica (resultado de um acidente de ônibus aos 18 anos que quebrou sua coluna e despedaçou sua perna direita – uma perna que já havia sido afligida pelo pólio na infância) e sua franca sexualidade (sua devoção ao marido, sua raiva pela constante natureza mulherenga dele e seus próprios casos de amor tórridos com pessoas de ambos os gêneros). Caminhar entre esses objetos é fazer um tour pela psique de Kahlo e, inevitavelmente, sentir-se como um bisbilhoteiro e um voyeur.
No entanto, ao mesmo tempo, tomamos consciência de que essas são confidências que a própria Kahlo não se importaria de compartilhar. Suas pinturas, cuja grande maioria é composta por autorretratos, são repletas de autorrevelações, desnudando a fachada de propriedade para revelar a Frida “real” por baixo dos adereços, das pulseiras e dos pompons, e da maquiagem habilmente aplicada que a decora, mas não a define. Como resultado, o espectador experimenta uma espécie de visão binocular de Kahlo – duas imagens distintas, a do seu "eu" privado e a do "eu" cuidadosamente curado que ela apresentou ao mundo, que gradualmente se fundem e se amalgamam em um só.
Para os fãs de Frida Kahlo, há uma aura sagrada em torno desse conjunto de objetos, muitos dos quais foram emprestados pela casa de Kahlo, a famosa Casa Azul em Coyacán, Cidade do México, local de peregrinação por ser o local onde Frida nasceu, onde morreu e onde agora os seus restos mortais se encontram. Trata-se de relíquias pertencentes a “Santa Frida”, canonizada por milhões de devotos adoradores, um culto mundial que conferiu a ela um status não oficial como padroeira das mulheres artistas. E ela é uma santa improvável.
Kahlo, nascida de um pai alemão arreligioso e de uma mãe mexicana devotamente católica, foi criada como católica, mas depois rejeitou sua religião. A fotografia de sua primeira Comunhão tirada por seu pai, Guillermo Kahlo (um fotógrafo profissional cujo notável trabalho é apresentado na exposição), fala muito: Frida parece uma devota em seu vestido branco e véu, mas, na parte de trás da foto, mais tarde, ela rabiscou uma palavra que não precisa de tradução: “Idiota!”.
Apesar de sua rejeição da sua religião de infância, no entanto, a obra de Kahlo é o produto de um imaginário profundamente católico. Os elementos católicos da arte e da visão de mundo de Kahlo são evidentes de muitos modos, mas o principal deles é a sua reverência pelo corpo, especialmente pelo corpo quebrado (como o dela) e pela sua santidade apesar da sua imperfeição.
Em suas pinturas e desenhos, Kahlo pinta a si mesma com franqueza, autoconhecimento e ternura, qualidades que são plenamente evidentes em “Las Apariencias Engañan”, a peça que serve de inspiração para a exposição no Brooklyn (veja abaixo).
“Las Apariencias Engañan”, de Frida Kahlo
Nesse desenho revelador, seu vestido, uma saia volumosa desenhada para esconder seu corpo em ruínas e seus aparelhos corretivos, é transparente, permitindo que o espectador a veja em toda a sua vulnerabilidade. Sua perna ferida traz uma corrente de sangue que escorre de sua pélvis, enquanto sua perna saudável está tatuada com borboletas azuis; sua coluna rachada é representada com um cinto de ferro que a sustenta, e ela usa um dos espartilhos de gesso projetados para manter suas costas retas.
Há aqui um elemento monstruoso, como se Kahlo fosse uma invenção semelhante à famosa criação de Victor Frankenstein, um amálgama desagradável de carne e tecnologia. No entanto, esse é um "eu" com uma alma sensível, assim como uma mulher cuja sexualidade não pode ser comprometida pelo equipamento decididamente a-erótico que a torna e a mantém intacta. Esse é o "eu" inviolado que Kahlo pinta e é também o ecce homo – ou o ecce femina –, a Mulher das Dores que deve suportar a crucificação do ser humano.
A inspiração para a sua arte provinha de várias fontes, uma das quais era a prática católica da arte dos ex-votos, oferendas votivas aos santos ou a Deus. Essas pequenas pinturas descrevem casos de desastre humano – acidentes, doenças súbitas, mortes por doença, roubos, assaltos e assassinatos – supervisionados pela providência divina. Frida e seu marido possuíam mais de 400 desses ex-votos, que revestem as paredes da Casa Azul. Sendo grande parte deles a obra de artistas populares mexicanos, cada um constitui uma espécie de oração. As figuras são frequentemente retratadas apelando à intervenção divina para salvá-las da morte e do sofrimento. Santos, anjos, Cristo e Deus Pai aparecem no céu, criando a imagem de um mundo em que o divino está em comunicação e ativamente presente nos assuntos humanos.
As pinturas são muito gráficas e muitas vezes horripilantes em sua representação da agonia e da calamidade, apresentando corpos feridos, perfurados, esmagados, quebrados, junto com grandes quantidades de sangue. Claramente, Kahlo identificava-se com os aflitos, dadas as suas próprias circunstâncias físicas, e neles pode-se ver traços de sua própria arte.
Notou-se que um dos ex-votos que ela possuía, que retrata uma mulher sendo esfaqueada em sua cama, é uma fonte de inspiração para a representação gráfica de Kahlo de uma mulher assassinada, “Unos cuantos piquetitos”, bem como a sua representação do seu próprio corpo hemorrágico, resultado de um aborto espontâneo, em “Hospital Henry Ford” (veja ambos abaixo). As pinturas de Kahlo diferem dos ex-votos em que a presença divina está ausente, atestando talvez o seu ateísmo, mas também seu desejo de acreditar em um mundo em que o sofrimento pode ser redentor.
“Unos cuantos piquetitos”, de Frida Kahlo, 1935
“Hospital Henry Ford”, de Frida Kahlo, 1932
O sofrimento é uma presença constante nos mundos de Kahlo, tanto o físico que ela sofreu, quanto o artístico que ela criou, e é também o que os une. Muitos objetos na exposição falam desse sofrimento, mas também atestam as maneiras pelas quais a arte de Kahlo redimiu sua dor. Um dos artefatos mais pungentes da exposição é a perna protética que Frida usava depois que sua perna teve que ser amputada – uma peça prática de maquinário médico da coxa até a canela, e, da canela até os pés, uma bota de cunha vermelha lindamente decorada. Os espartilhos corretivos de Kahlo também estão em exibição, tanto os feitos de couro quanto os moldados em gesso (em um gesto carinhoso, Kahlo pintou o último, tratando-os como telas e transformando símbolos da fealdade de sua vida em objetos de beleza).
Depois do acidente que a aleijou, Frida passou meses em confinamento olhando-se com dificuldade em um espelho posicionado sobre sua cama, pintando autorretratos e mais autorretratos. Durante esse período, ela escreveu: “Eu não estou doente, eu estou quebrada. Mas estou feliz por estar viva enquanto puder pintar”.
A comovente confissão de Kahlo é um lembrete para outros artistas para os quais a doença serviu como um catalisador para a descoberta e a prática de sua vocação, e que trabalharam em seu ofício diante das limitações impostas – entre elas, Andy Warhol, Flannery O’Connor e Walker Percy. Esses artistas, todos católicos, aliás, também se voltaram para a arte como um meio para criar beleza diante da aflição, para contar a verdade sobre o sofrimento que apenas os sofredores sabem, e para redimir esse sofrimento seguindo seu chamado com fervor religioso. Eles procuraram e encontraram a santidade em sua arte.
Esses objetos eloquentes na exposição servem para lembrar o espectador que, apesar de sua rejeição da sua fé, a criança no vestido da Primeira Comunhão representa um aspecto duradouro da identidade de Frida Kahlo. Sua formação católica é evidente em seus icônicos autorretratos (alguns dos quais se assemelham a ícones de verdade), incluindo aqueles em que ela usa o tradicional Resplandor mexicano, uma peça feita de véus engomados que envolve seu rosto como uma auréola (veja abaixo); em suas muitas alusões visuais aos eventos centrais da história cristã e da tradição católica, incluindo os instrumentos da paixão de Cristo e os sofrimentos dos santos; e em sua insistência na beleza e na santidade do corpo.
“Autorretrato como Tehuana”, de Frida Kahlo, 1943
De fato, se a exposição do Brooklyn tivesse que ser renomeada como “Uma História de Frida em 300 Objetos” (como poderia ser facilmente), os espectadores descobririam que muitos desses artefatos falam de um aspecto de Kahlo em relação ao qual ela era inconsciente, o legado duradouro do seu imaginário católico.
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A arte católica de Frida Kahlo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU