19 Agosto 2008
“A mulher contemporânea recria convenções a todo o momento, busca o espaço e a independência que Frida também buscou para desassociar a sua figura à fragilidade ou à inferioridade frente ao sexo masculino”, diz a mestre em Artes Vanessa Macedo. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Vanessa fala sobre sua dissertação intitulada Frida Kahlo - entre chagas e borboletas e reflete acerca da influência de Frida para a mulher contemporânea, assim como a difusão da imagem da artista mexicana. Macedo analisa Kahlo como uma mulher que exerceu um importante papel como defensora da busca pelo natural e pela sinceridade e contra qualquer tipo de arte que retornasse a modelos de outrora. “A obra de Frida valoriza a autenticidade, firma-se em cima de uma fala própria, autobiográfica, confessional, mas não se perde em si mesma”, conclui.
Vanessa Freitas de Paiva Macedo é graduada em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e obteve o título de mestre em Artes, pela Universidade Estadual de Campinas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você relaciona a figura de Frida Kahlo com a mulher contemporânea?
Vanessa Macedo - Frida [1] diferenciava-se como mulher e como artista na época em que viveu. Retratou questões muito íntimas em sua obra - o seu nascimento, a sua amamentação e os seus abortos; quis estabelecer-se financeiramente a partir de seu trabalho; foi ativista política; expôs a sua sexualidade. Era ousada, original e não se preocupava em seguir as regras convencionadas pela sociedade.
A mulher contemporânea recria convenções a todo o momento, busca o espaço e a independência que Frida também buscou para desassociar a sua figura à fragilidade ou à inferioridade frente ao sexo masculino. Isso não significa abandonar aspectos que dizem respeito exclusivamente às mulheres, mas, muito pelo contrário, significa ressaltá-los, dando-lhes a importância que lhes é inerente.
IHU On-Line - A vida de Frida é repleta de transgressões, desconstruções e reconstruções. Que relações são possíveis fazer entre o sofrimento da pintora e as mulheres que passam por situações próximas a que ela viveu?
Vanessa Macedo - Frida teve uma vida marcada pela dor, transcendeu por meio de uma obra que expunha aspectos reservados de sua intimidade. Falando de si mesma, abertamente, falou para o mundo de questões que são parte do ser humano e, de forma muito particular, questões que são parte do universo feminino.
IHU On-Line - Frida foi transformada, pela Indústria do Consumo, como um objeto a ser consumido?
Vanessa Macedo - Com o tempo, a imagem de Frida ganhou apelo comercial e ela se tornou um mito. Muitas figuras importantes da história tornam-se conhecidas quando passam a ser objeto de consumo e com ela não foi diferente. Mas acredito que, no seu caso, a curiosidade que desperta como mulher e artista ainda possuem um valor relevante na sociedade.
IHU On-Line - Em sua opinião, o que há de diferente e interessante nas reflexões propostas pela obra e pela figura de Frida Kahlo?
Vanessa Macedo - A ousadia e despretensão fizeram a obra de Frida extremamente original, livre de preceitos. O fato de não se preocupar em seguir uma escola ou tendência estética a transformou numa artista confessional dotada de forte sensibilidade. Frida não fez concessões para satisfazer o olhar do outro e isso é o que considero mais interessante na sua arte. Como figura, não temos como desassociar sua imagem à sua obra, pois sua vida refletiu incisivamente em suas criações.
IHU On-Line - Em que essa autenticidade transgressora de Kahlo pode inspirar as mulheres e os grupos oprimidos na busca de liberdade e autonomia?
Vanessa Macedo - A autenticidade de Frida era um ato necessário, um ato de urgência. Não conseguia nem buscava outro caminho porque apenas desejava se expressar e, muitas vezes, expurgar suas questões ou apenas corresponder-se consigo mesma. Mostrou-nos que a possibilidade de não se esconder em metáforas é capaz de nos tornar mais próximos do outro, por tocar em questões mais facilmente acessíveis e conhecidas de todos, sem esconderijos. A exposição da fragilidade pode ser uma forma de extrema coragem e isso é, sem dúvida, inspirador.
IHU On-Line - Como você reflete, a partir da obra de Frida, sobre questões como saúde, casamento, religião e "ser mulher" na sociedade latino-americana?
Vanessa Macedo - Acho complicado associar tantas questões numa única resposta. Mas de forma bem genérica pode-se dizer que o contexto histórico de colonizações, invasões e imposições de outras culturas desencadeou uma identidade conflituosa da sociedade latino-americana. Carlos Fuentes, [2] referindo-se particularmente ao México, afirma que lá se criou “uma cultura mestiça, índia, européia, barroca, sincrética, insatisfeita”. É claro que não podemos deixar de considerar as particularidades de cada uma dessas sociedades, porém acredito que a imposição de modelos preestabelecidos pode ser uma característica de todas elas. Nesse sentido, Frida exerceu um papel importante, pois foi uma defensora da busca do genuíno e contra qualquer arte que se voltasse à cópia de modelos. A artista incentivava seus alunos a exprimir suas convicções políticas e sociais em suas obras, desenvolvendo um estilo próprio e afastando-se das influências estrangeiras.
IHU On-Line - A estética proposta por Frida é libertadora?
Vanessa Macedo - Sim, não se apóia em nenhum tipo de convenção. Segue a proposta de deixar-se conduzir pelo que particularmente nos interessa, nos toca. Ouvir e sentir a partir do que está dentro e não o inverso. É isso que Frida sugere.
IHU On-Line - A obra de Kahlo pode ser considerada uma metáfora de uma certa desintegração do sujeito pós-moderno?
Vanessa Macedo - Não sei se vejo como uma metáfora da desintegração. A obra de Frida valoriza a autenticidade, firma-se em cima de uma fala própria, autobiográfica, confessional, mas não se perde em si mesma. Torna-se um depoimento contundente da dor humana, da nossa condição de fragilidade, da nossa efemeridade. O sujeito pós-moderno caracteriza-se por uma identidade múltipla, sincrética, de rompimento de fronteiras, que desestrutura conceitos estáveis e questiona estabilidades. Talvez possa ser uma metáfora do paradoxo inerente à condição humana, que sempre existiu, mas é mais percebido no pós-modernismo.
IHU On-Line - Para você, qual o maior legado de Frida Kahlo?
Vanessa Macedo - A possibilidade de vermos a fragilidade como um meio de vitalidade, de nascente, de criação. Além, é claro, da valorização da arte genuína, sem fronteiras estéticas, que cumpre a função de aproximar-se do outro pela proximidade que tem com o próprio artista criador.
Notas:
[1] Leia também a edição 227 da Revista IHU On-Line de 09-07-2007 intitulada Frida Kahlo 1907-2007. Um olhar de teólogas e teólogos
[2] Carlos Fuentes Macías é um escritor mexicano. Foram-lhe já atribuídos diversos prémios e distinções entre os quais o Prêmio Miguel de Cervantes, em 1987.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A subjetividade e a realidade da mulher a partir da obra de Frida Kahlo. Entrevista especial com Vanessa Macedo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU