30 Setembro 2020
"Com o tempo, então, migrar passa a ser uma queda ladeira abaixo, com exceções de sucesso cada vez mais raras. Para a Pastoral Migratória e para os próprios migrantes, fica o gigantesco desafio de transformar toda fuga em uma nova busca. E cada busca representa uma etapa que nos aproxima da pátria definitiva, ao mesmo tempo pré-anúncio e antecipação do Reino de Deus", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
Neste ano, a data é celebrada no domingo, 27 de setembro. A mensagem do Papa Francisco para o momento tem como tema: “Forçados, como Jesus Cristo, a fugir. Acolher, proteger, promover e integrar os deslocados internos”. Como se vê, o olhar do pontífice está centrado na multidão de migrantes internos, número hoje estimado pela ONU em mais de 45 milhões de pessoas. Seguindo o título da obra do filósofo francês da Martinica, Frantz Fanon, e guardadas as devidas proporções, não seria exagero classificá-los como “os condenados da terra”, obrigados a um deslocamento contínuo no interior dos respectivos países (Cfr. FANON, Frantz, Os condenados da terra, Editora UFJF, 2006).
Nestes parágrafos, embora conscientes que o problema é universal, destacamos as migrações internas no Brasil. Representam, de alguma forma, o povo em fuga e em êxodo permanente em busca de um solo que possa ser chamado de pátria. Exílio e diáspora dentro das próprias fronteiras. Fogem não tanto em razão da falta de terra ou da falta de vontade de cultivá-la, e sim em decorrência de uma estrutura fundiária ao mesmo tempo concentradora e excludente. A perda da terra e o desenraizamento das origens pode ser temporário ou definitivo, ou ainda dividido em duas etapas que se complementam: um período de vaivém temporário, que não raro serve de trampolim para uma migração definitiva normalmente para a zona urbana.
Tomando em consideração a história do Brasil, ao longo dos séculos, os vários “ciclos econômicos” são movidos por deslocamentos humanos de massa, como assinala o historiador e padre José Oscar Beozzo. A extração do pau-brasil e da borracha exigiram grandes deslocamentos seja de indígenas que residiam em suas aldeias, quanto de trabalhadores que eram compulsoriamente recrutados. Entre o final do século XIX e início do século XX, no auge da borracha, cerca de meio milhão de nordestinos migraram para a selva amazônica. Com o fim do ciclo, muitos se estabeleceriam ali como populações ribeirinhas (Cfr. BEOZZO, José Oscar, Brasil 500 anos de migrações, Editora Paulinas, São Paulo 1992; ver também: DE CASTRO, Ferreira, A Selva, Guimarães & Cia. Editores, Lisboa, sem data).
Os ciclos da cana-de-açúcar e do cacau, por sua vez, antes de contar com a mão-de-obra afrodescendente e escrava, experimentaram o trabalho dos indígenas no eito e no engenho, trazendo-os à força do interior de suas aldeias. E ainda no decorrer do século XVII, o ciclo do ouro desencadeou movimentos intensos, tanto de novos imigrantes portugueses que se instalavam no Brasil, quanto de africanos e/ou afrodescendentes que eram trazidos como escravos do Nordeste para o sertão de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A populações brasileira se interioriza.
Não foi diferente com o ciclo do café no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e hoje em Minas Gerais. Antes da imigração em massa de italianos como substituição da mão-de-obra escrava, eram os negros que trabalhavam no eito e no terreiro. De fato, de acordo com o sociólogo José de S. Martins, enquanto o trabalhador era escravo, a terra podia ser livre. Mas quando o trabalhador se tornou livre, a terra teve de ser escravizada. Foi o que ocorreu com a Lei de Terras de 1850, a partir da qual a propriedade legítima da terra podia ser adquirida não mais pelo cultivo, e sim pela compra. O que veio a impedir que os afrodescendentes, após a Lei Aurea, adquirissem um pedaço de chão para trabalhar por conta própria. Coisa que, de resto, também estaria reservado aos italianos. Até hoje, no sul de Minas Gerais, o café continua contando com a mão-de-obra de migrantes vindos do Ceará, Maranhão, Piauí, e outros estados (Cfr. MARTINS, José de Souza, O cativeiro da terra, Editora Contexto, São Paulo, 9ª edição, 2010).
Comecemos pelo desfile de seus rostos mais característicos. Temos inicialmente os migrantes temporários das safras agrícolas (cana-de-açúcar, laranja, café, tomate, morango, azeitonas, uvas, entre outras). Oscilam periodicamente entre o polo de origem e o polo de destino. Podem fazer mais de uma safra por ano, antes de voltar para casa. Por mais paradoxal que pareça, trata-se de uma migração de resistência. Os trabalhadores temporários buscam fora os meios para sustentar a família que ficou ligada à terra. Em outras palavras, migram temporariamente para não o fazer em definitivo. Até o dia em que não der mais para continuar essas idas e vindas mais ou menos regulares.
Além das safras agrícolas, os trabalhadores temporários também se dirigem para as grandes obras da construção civil (barragens, usinas, estradas, por exemplo). Neste caso, a periodização mantém-se irregular. Tudo depende da duração da obra. Formam em geral a mão-de-obra braçal, como pedreiros, serventes, pintores!... Também aqui tentam sustentar a família com o dinheiro ganho à distância. Por isso, não será exagero falar igualmente de migração de resistência. Enquanto os pés e as mãos se encontram no cimento, no ferro e no concreto da obra, o coração, a cabeça e a alma viajam para o lugar de origem. Manter-se na terra é sua motivação.
Ao lado da migração temporária, não podemos esquecer a continuidade do forte êxodo rural que marca a história do Brasil, de modo particular no decorrer do século XX. Vários estudiosos falam de polos de repulsão e polos de atração. A repulsão estaria ligada às regiões menos desenvolvidas, como o sertão e agreste nordestinos, por exemplo. A atração é representada pelo fascínio e a sedução das luzes da cidade. Evidente que a leitura é bastante simplista. A repulsão e a atração, que à primeira vista podem parecer mecânicas e automáticas, na verdade contam com outros fatores, tais como, de um lado, a precariedade dos serviços públicos básicos no campo e, de outro, a busca de oportunidades no mercado de trabalho cada vez mais urbanizado.
Depois, a introdução da agroindústria, do garimpo e da pecuária, além de criar poucos empregos, tende a esvaziar a terra para a entrada dos rebanhos de gado e da monocultura. Ela se dá simultaneamente à mecanização do trabalho, seja na extração de minério, seja nas extensas plantações de grãos. A primeira porta de entrada na cidade costuma ser os serviços gerais, o trabalho doméstico, a construção civil, o comércio ambulante – numa palavra, mais do que a exclusão social, poderíamos reproduzir, ainda desta vez, a expressão de José de Souza Martins de “inclusão perversa”. Trata-se de fato de uma inclusão invisível no mercado informal, com todas as consequências negativas que isso traz. Os migrantes internos, na realidade, acabam desempenhando os serviços mais sujos e perigosos, mais pesados e mal remunerados.
O cuidado com a saúde e com a educação dos filhos são outros fatores decisivos para trocar o campo pela cidade. Primeiro, vem a tentativa de buscar a cidade média mais próxima, onde em geral as coisas já são um pouco mais avançadas quanto ao ensino primário e secundário. Depois, porém, com a chegada dos estudos superiores e com melhores meios de formação sanitária, a tendência é a migração para a capital do próprio estado. Num terceiro momento, soará a hora de viajar para o sudeste do Brasil, São Paulo ou Rio de Janeiro, onde é mais fácil o acesso à saúde e à educação e onde costumam aparecer distintas e melhores oportunidades de trabalho. Convém ter presente que a dinâmica desse tipo de migração cresce na proporção direta das visitas daqueles que já têm alguma experiência da “cidade grande”, bem como com a revolução dos meios de transporte e da informática. A telefonia celular e o barateamento das passagens de avião exercem aí não pouca influência.
Nos dias que correm, aumentam progressivamente os fugitivos das grandes estiagens, das inundações, dos furacões ou de outras catástrofes climáticas. A ONU já fala em milhões de “refugiados climáticos” em todo mundo. Muitos deles sequer ultrapassam as fronteiras do país. Apenas escapam de regiões atingidas e inóspitas para outras localidades menos sujeitas a tais fenômenos extremados. Neste ponto não há como esquecer atualmente as teorias sobre a devastação do meio ambiente, sobre a contaminação do ar e das águas, sobre a desertificação do solo e sobre o aquecimento global. A respeito dos efeitos nocivos de tais excessos, os movimentos ambientalistas e numerosos cientistas nos têm alertado com frequência.
Num país como o Brasil (e poderíamos incluir uma série de outros países da América Latina e Caribe), constatamos a desterritorialização crescente dos povos indígenas, por exemplo, como nos estados de MS, MT, PA, PR, RR, RO, AM e, mais perto de nós, no vale do Ribeira, em SP. Em circunstâncias diferentes e ao mesmo tempo similares, verifica-se o que o sociólogo argeliano Abdemalek Sayad chama de dupla ausência: ao perder a terra, esses povos perdem igualmente sua identidade de indígenas, tornando-se “ausentes” em suas próprias aldeias; por outro lado, nas cidades para onde se deslocam, ao tentar entrar no mercado de trabalho, são considerados cidadãos de segunda ordem, “ausentes” portanto da sociedade urbana (SAYAD, Abdemalek, A imigração e os paradoxos da alteridade, São Paulo, Edusp, 1998).
A isso se junta a indiferença e o descaso das autoridades não só em relação aos primeiros habitantes do continente, mas também em relação aos descendentes dos escravos africanos, às comunidades quilombolas e às populações ribeirinhas da região Norte. O agronegócio e a pecuária, o fogo e o garimpo descontrolados contribuem de forma decisiva, seja para a dizimação desses povos vulneráveis, seja para a extinção de numerosas espécies de fauna e flora. Não custa lembrar que, a cada espécie de planta ou de animal que desaparece da face da terra, diminui sensivelmente a qualidade humana de vida em geral, e da vida humana em particular.
O Brasil é também lugar de origem para o tráfico de crianças, adolescentes e jovens (meninos e meninas), em vista da exploração trabalhista ou sexual. O crime organizado em termos globais, além de faturar alto com drogas, armas e outras mercadorias, tem no tráfico de seres humanos e de órgãos uma das maiores fontes de renda. Antes de saírem do país, as suas vítimas costumam serem deslocadas de um estado para outro, ou entre as regiões. Os serviços análogos ao trabalho escravo costumam contar não apenas com pessoas adultas, mas também com crianças de ambos os sexos (carvoarias, desbravamento, colheitas, quebradeiras de coco, marisqueiras...).
O conceito de “desplazados” internos está ligado à atuação da guerrilha, de modo especial em países como Colômbia (tempo das FARC) ou no Peru (tempo do Sendeiro Luminoso). Mas não seria exagero falar de deslocados internos no caso da violência urbana em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Vitória, entre outras capitais. Uma vez mais, os componentes do crime organizado forçam a saída de muitas famílias de favelas e periferias, para evitar tanto o recrutamento de seus filhos, quanto a retaliação por não seguirem as ordens do crime. Onde o Estado se faz ausente, predomina o crime organizado, com sua força violenta e implacável, a qual não hesita em assustar, matar e pôr em fuga.
Merece um parágrafo particular a situação dos nômades e/o ciganos. Trabalham em geral como circenses ou parquistas, transportando suas tendas, seus pertences e seus artistas populares, às vezes seus animais de acordo com as necessidades do trabalho. Em não poucos casos, tropeçam com resistência, o preconceito e a discriminação. E essa rejeição não se deve apenas às autoridades constituídas, mas até mesmo à população em geral, como também aos mais diversos setores da sociedade civil. Não são todas Igrejas, dioceses, paróquias e comunidades, por exemplo, que os recebem de braços abertos.
Temos de incluir, ainda, a "migração pendular", ou seja, o deslocamento diário, ida-e-volta, em razão do trabalho, o que ocorre particularmente nas grandes metrópoles, através de vários meios de transporte. Num país continental como o Brasil, não podemos esquecer os técnicos e especialistas de grandes empresas, que vão trabalhar em outro estado, como também os missionários (as), os militares, os médicos, os aeroviários, os turistas e os trabalhadores ligados ao mundo do turismo, os motoristas de caminhão e de ônibus, enfim a migração devida a determinadas profissões.
Com raras exceções, não é difícil retornar ao título. Os migrantes internos na trajetória brasileira, ao lado de uma multidão de outros rostos empobrecidos e vulnerabilizados, representam, sim, “os condenados da terra”. Condenados ao deslocamento compulsório, mas também à Senzala, à moradia pobre e precária. Enquanto aos habitantes da Casa Grande estão reservados os privilégios e os benesses intocáveis, aos moradores da Senzala cabem as migalhas, os favores. E estes últimos são sempre provisórios e eventuais. No fundo, estão sujeitos ao humor do senhor de plantão. Quando o humor azeda, os favores se convertem em chicote, em tronco, em polícia ou em exército.
Historicamente, e até os dias atuais, sempre e quando os moradores da Senzala tentaram transformar os “favores provisórios” em “direitos adquiridos”, tiveram de enfrentar as forças da ordem: capatazes, jagunços, policiais, soldados. George Floyd, o afra-americano barbaramente assassinado nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020, constitui o ícone mais recente dessa cadeia de escravidão, seguida de estigmatização e discriminação racial. Mas o “Floyd” brasileiro, digamos assim, chama-se João Pedro, jovem de 14 anos morto em maio de 2020, numa operação policial, no Rio de Janeiro. Não faltam outros jovens e adolescentes, tanto lá quanto cá. Os condenados da terra, em todo mundo, há tempo perderam suas raízes originais, errando hoje daqui para ali ao sabor dos ventos e das sobras do capital.
Em conclusão, daria para afirmar que em décadas anteriores, no decorrer do século XX, a migração interna representava, em boa medida, uma forma de ascensão social. Vinha o pai ou o irmão mais velho que, pouco a pouco, chamava o restante da família. E esta, a duras provas, conseguia muitas vezes subir na vida e se reestabelecer. Hoje em dia essa possibilidade se tornou bem mais difícil e complexa. Diminuíram consideravelmente as oportunidades num mercado simultaneamente exigente e saturado. Com o tempo, então, migrar passa a ser uma queda ladeira abaixo, com exceções de sucesso cada vez mais raras. Para a Pastoral Migratória e para os próprios migrantes, fica o gigantesco desafio de transformar toda fuga em uma nova busca. E cada busca representa uma etapa que nos aproxima da pátria definitiva, ao mesmo tempo pré-anúncio e antecipação do Reino de Deus.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Dia Mundial do Migrante e do Refugiado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU