28 Setembro 2020
"Neste tempo de isolamento muitos de nós tivemos que nos confrontar conosco. A maioria de nós fez um filme sobre quem é. É difícil manter essas fantasias quando você está sozinho ou fechado dentro de casa com a família. Mas essa é a pessoa real amada por Deus. Essa é a pessoa real, não aquela imagem cuidadosamente criada no Facebook com milhares de amigos, ou o avatar em algum mundo de fantasia", escreve Timothy Radcliffe, OP (Ordem dos Frades Pregadores), teólogo dominicano, frade da Província da Inglaterra. De 1992 a 2001, foi Mestre Geral da Ordem Dominicana, em artigo publicado por Avvenire, 27-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Publicamos aqui a intervenção de Timothy Radcliffe da manhã do último domingo transmitida em streaming no site "Molte fedi sotto lo stesso cielo" promovida pela Acli de Bergamo. O dominicano inglês (do qual a editora Emi publicou recentemente Una verità che disturba. Credere al tempo dei fondamentalismi), abre mais uma semana de encontros de "Molte fedi", este ano apresentada em formato digital. Encontros disponíveis neste site.
Escute! O que escutamos? Logo após o início do lockdown, os britânicos ouviram os italianos aplaudindo de suas varandas. Esse fato expressou de forma maravilhosa o paradoxo dessa estranha época. Foi uma época em que o canto e a alegria foram compartilhados. Pessoas estranhas se conheciam. Pessoas que ficavam diante de seus computadores e televisores, em todos os canos do mundo, também cantaram com eles. Mais uma vez, as pessoas que vimos cantar estavam trancadas em seus próprios apartamentos, incapazes de se unir e se misturar com outras pessoas nas ruas. Essa foi uma imagem de uma comunidade e de um isolamento inesperados. Essas dimensões são totalmente opostas umas às outras? Idealmente não, visto que uma comunidade forte é capaz de nos fazer florescer individualmente e um indivíduo forte tem a coragem de pertencer a outras pessoas em uma comunidade.
O agudo individualismo da cultura ocidental moderna frequentemente tem o efeito de enfraquecer o senso de identidade das pessoas e pode levar a conformismo e insegurança. Esse tipo de individualismo pode levar à tirania da moda e à imitação das celebridades. "Só se eu usar aquelas roupas, cortar o cabelo desse jeito ou dirigir aquele carro, estarei visível para os outros." Pelo contrário, as comunidades em que estamos profundamente enraizados são muitas vezes – embora nem sempre - capazes de dar espaço à individualidade, até mesmo à excentricidade! Nesse sentido, comunidade e individualidade não são opostas.
É impossível para nós prever hoje as consequências definitivas desta pandemia. Ocorreram inúmeras pandemias no passado, mas esta é a primeira que ocorre globalmente. Todos os dias, podemos ler quantas pessoas foram infectadas ou morreram em cada país do mundo. Isso poderia levar à desintegração da sociedade. Mas se aproveitarmos a oportunidade, esse episódio poderia nos levar a um aprofundamento de nossos laços mútuos. É um tempo de perigo, mas também de possibilidades. Foi um tempo de isolamento social em que muitas pessoas ficaram confinadas em suas casas e apartamentos.
Alguns passaram por isso sozinhos e outros com seus familiares mais próximos. Quando voltei de Jerusalém para a Inglaterra, pouco antes do lockdown começar, imediatamente baixei o Skype e o Zoom, para poder ver os rostos das pessoas a quem quero bem. Usar o Zoom é exaustivo e muitos de nós já sofremos de algum tipo de Zoomia. Não é o mesmo que encontrar o olhar dos outros com prazer, mas é melhor do que nada. Além disso, fomos privados do toque daqueles que amamos. Os avós não puderam abraçar os netos. Rostos e toques alimentam a nossa humanidade.
E assim, este tempo de isolamento foi uma experiência de profunda privação para muitos, e também a causa de transtornos mentais. Mas também é possível vivê-lo como um momento em que amadurecemos como indivíduos e, assim, nos tornamos capazes de viver a comunidade de maneira mais felizes.
Em 1364, com apenas dezessete anos, Catarina de Siena iniciou um período de autoisolamento de três anos. Ela não o fez para escapar da peste bubônica, mas para dedicar a sua vida a Deus. Dessa maneira ela descobriu a si mesma; ela disse que havia entrado na "cela do conhecimento de si". Ela se viu diante da terrível clareza de quem ela era; todas as ilusões e fantasias foram removidas. Essa escolha não significou para ela olhar para seu umbigo de maneira narcisista. Ela também descobriu que era aquela Catarina que era totalmente amada por Deus. Esse é o alicerce de sua vida espiritual: você só se conhece quando vê que é totalmente amado.
Catarina escreveu a Raimundo de Cápua, um seu amigo dominicano: "Procure conhecer a si mesmo". Devemos entrar na "noite do conhecimento de si". Ali descobrimos a nossa própria sombra. Catarina escreveu: "Minha sombra me assustou". Só então descobriremos Deus, o único cujo amor, a cada momento, nos permite existir. Depois disso, poderemos descansar em ser nós mesmos porque estaremos em Deus.
Neste tempo de isolamento muitos de nós tivemos que nos confrontar conosco. A maioria de nós fez um filme sobre quem é. É difícil manter essas fantasias quando você está sozinho ou fechado dentro de casa com a família. Mas essa é a pessoa real amada por Deus. Essa é a pessoa real, não aquela imagem cuidadosamente criada no Facebook com milhares de amigos, ou o avatar em algum mundo de fantasia.
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Radcliffe: “Desponta o alvorecer da comunidade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU