21 Setembro 2020
Há um ano, o Conselho de Direitos Humanos da ONU ordenou a criação de uma missão internacional de investigação para estudar possíveis violações aos direitos humanos cometidas pelo Governo da Venezuela, a partir de 2014. Paul Seils é um dos três membros dessa equipe, que apresentou, nesta quarta-feira, seu relatório final de mais de 400 páginas. Neste documento, elaborado a partir de 274 entrevistas, documentos confidenciais e fontes públicas, os autores acusam diretamente o Governo de Maduro de contribuir para a perpetração de crimes contra a humanidade, nomeadamente execuções extrajudiciais, desaparecimentos, detenções arbitrárias e tortura.
Seils é membro do Instituto Europeu da Paz e há anos se especializa em casos de direitos humanos. Foi chefe de análise de situação no escritório da Promotoria do Tribunal Penal Internacional, chefe de análise da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala, diretor da unidade de Estado de Direito, no Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, e vice-presidente do Centro Internacional para Justiça Transicional.
A entrevista é Javier Biosca Azcoiti, publicada por El Diario, 17-09-2020. A tradução é do Cepat.
O Governo da Venezuela rejeitou desde o primeiro momento a configuração da equipe de investigação, afirmando que se tratava de um exemplo de uso político do Conselho de Direitos Humanos. Agora que o relatório foi publicado, o Executivo denuncia que não é rigoroso e que está cheio de falsidades. Qual é a sua reação a essas acusações?
Em primeiro lugar, lamentamos profundamente a falta de cooperação por parte do Estado da Venezuela, durante os trabalhos da missão, mas sempre tiveram a oportunidade para isso. No início dos trabalhos, nós os convidamos a colaborar, a falar sobre a missão, sobre o mandato... e nunca responderam. Durante o trabalho, também enviamos várias cartas que ficaram sem resposta. Também demos a oportunidade de contestar e responder às conclusões, mas nunca responderam.
É bastante comum que governos de estados, onde há missões de apuração de fatos ou comissões de inquérito, não cooperem. Já trabalhei em outros antes e vi a mesma história. Trabalhei grande parte de minha vida profissional investigando e atendendo casos na Guatemala, contra o Exército, relativos a genocídio e crimes contra a humanidade cometidos contra os povos indígenas, durante a guerra civil. Durante todo esse tempo, é claro, o governo e o exército nos acusaram de ser comunistas.
É preciso levar isso a sério, mas é preciso entender o que é, e é uma crítica bastante comum e sem fundamento. Realmente é um refúgio e não uma análise séria do trabalho.
Essa falta de cooperação influenciou os resultados da investigação?
Bem, é preciso dizer honestamente que é claro que qualquer investigação será mais rica se tiver informações sobre as pessoas que parecem ser responsáveis pelas violações e crimes que estamos investigando. Claro que ajudaria, mas não significa que prejudique as conclusões.
Tínhamos que chegar ao que chamamos de padrão de prova, um limite. Esse limite é que temos que estabelecer motivos razoáveis para concluir algo. Obviamente, este não é o mesmo nível de uma condenação em tribunal criminal. Não é o mesmo grau de certeza porque não temos que comprovar da mesma forma. Estamos colocando algo em outro nível. Nesse sentido, as conclusões são absolutamente estáveis e firmes e nelas temos um alto grau de confiança.
Voltando à questão da responsabilidade criminal que mencionava anteriormente, acredita que há alguma possibilidade de que essas acusações cheguem a algum tipo de tribunal nacional ou internacional?
Bem, em termos ideais, o que na minha opinião deveria acontecer são duas coisas. Primeiro, que o governo pare as violações. Esta é uma mensagem fundamental. Pode-se acusar a missão de ser um abuso político do Conselho de Direitos Humanos e muitas outras coisas, mas ninguém em sã consciência vai duvidar, por exemplo, de que existem abusos e torturas ocorrendo de forma comum nas instalações dos serviços de inteligência.
Segundo: investigar e iniciar processos contra os responsáveis em nível nacional. Essa seria a mensagem mais forte e honesta de que o Estado está levando a sério suas obrigações.
Isso seria o ideal, mas em termos do mundo real, até agora não há nenhuma indicação muito positiva de que o sistema de justiça cumprirá com suas responsabilidades. Se isso não acontecer e se não realizarem as investigações, é claro que outras instituições com mandato para isso podem e esperamos que façam. Isso inclui, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional, que obviamente está examinando essa possibilidade, nesse exato momento.
O relatório aponta para o topo do Governo. O que os faz pensar, como investigadores, que o presidente e os ministros da Defesa e do Interior contribuíram para o cometimento desses crimes?
Basicamente, o que o relatório diz é que identificamos dois planos e duas políticas em nível de Governo. Um plano tem a ver com a repressão da oposição política e o outro tem a ver com o que chamaríamos, em termos vulgares, de limpeza social, ou seja, uma política em que ocorreram execuções extrajudiciais de pessoas identificadas por órgãos do Estado como criminosos ou ligadas a criminosos. Em outras palavras, é uma manifestação do que vimos diversas vezes na América Latina, principalmente nas décadas de 70 e 80 do século passado.
Muitas pessoas foram assassinadas no quadro desta limpeza social, em situações onde era óbvio e imprescindível que houvesse um alto nível de planejamento, logística, comunicação e recursos humanos. Todas as informações que temos é que durante os anos que estamos investigando, ou seja, desde 2014, a cadeia de comando, os sistemas de comunicação e a disciplina interna das forças públicas estiveram em pleno funcionamento. Sabemos disso não apenas por inferências objetivas, mas também por pessoas que trabalharam com esses sistemas. Em termos concretos, temos alguns indícios específicos de que o presidente e o ministro estiveram presentes durante as discussões de várias operações específicas.
A isto se somam as declarações públicas em que o próprio presidente e os ministros indicados admitem que aprovavam e apoiavam o que estava acontecendo. Por exemplo, se tomarmos a declaração do presidente logo após um pedido da Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, que pedia basicamente o desmantelamento das FAES (Forças de Ação Especial), no dia seguinte, o presidente disse Viva as FAES!'. Ou seja, houve uma intenção de apoiar e ele sabia o que estava acontecendo.
Em primeiro lugar, as autoridades políticas conheceram, apoiaram, dirigiram e planejaram. Em segundo lugar, nunca fizeram nada para prevenir. Essa é a responsabilidade do presidente e dos ministros indicados.
O relatório fala em padrões de comportamento que os fazem pensar que existe um plano coordenado em relação a esses crimes. Poderia especificar e detalhar algum desses padrões?
A forma como a missão investigou se divide na identificação de três contextos: o primeiro é a repressão à oposição política, outro diz respeito às operações de segurança, que é basicamente a limpeza social, e o terceiro faz referência a protestos políticos. Em cada um desses contextos, investigamos padrões de comportamento.
Por exemplo, na repressão política, vemos primeiro a prática da detenção arbitrária. Pessoas presas sem mandado, pessoas mantidas incomunicáveis, mas ainda mais preocupante é um padrão mais ou menos sistemático de tortura, especialmente a partir de 2018.
Quanto à limpeza social, o padrão de conduta tem a ver com a sistemática execução extrajudicial de pessoas. O que vemos em várias operações é mais ou menos o mesmo modus operandi, que vimos em muitos outros países latino-americanos: o grupo entra, normalmente nas primeiras horas da manhã, fecha a entrada e saída da comunidade e dividem as pessoas, por exemplo, enviam para outros lugares mulheres e crianças. Dentro de casa, em muitos dos casos que investigamos, havia uma montagem de evidências. Por exemplo, antes de matar a pessoa que haviam detido, atiravam contra a parede para fazer parecer que houve troca de tiros e que o detido tentava sair. E isso não acontece uma ou duas vezes, mas muitas.
O mesmo vale para os protestos. É verdade que houve assassinatos e possivelmente execuções arbitrárias no contexto dos protestos, mas talvez o mais sistemático e planejado tenha sido a tortura de detidos. O que deve ser lembrado aqui é que estamos falando de pessoas exercendo seus direitos democráticos, não importa se estamos de acordo com o Governo ou contra o Governo, isso não tem nada a ver. Pode ser que estejam violando o direito nacional em relação à assembleia e por não ter a autorização necessária para se manifestar, mas temos informações absolutamente claras sobre um padrão de tortura. Estamos falando de coisas sérias, como choques elétricos, violação sexual... que acontecem nos prédios centrais das instituições de inteligência e polícia. Não está acontecendo em algum lugar secreto e desconhecido.
Associações de vítimas da violência cometida por forças da oposição afirmaram, no passado, que suas vozes não foram ouvidas. Está consciente dessas demandas?
Soa como uma resposta muito elegante, mas é preciso levar a sério o mandato que temos, e esse mandato é investigar as violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado.
Em termos normais, se não estamos falando de uma guerra civil ou de um conflito em que os combatentes assumem o controle de um território onde podem exercer funções de Estado, não podem assumir responsabilidades como se fosse o Estado, ou seja, deveres como garantidores dos direitos humanos. Na Venezuela, até o momento, não estamos nessas condições. É verdade que o que temos em alguns casos são agressões e ataques de pessoas da oposição, mas este não é o mandato da missão. O mandato é investigar violações de execução extrajudicial, detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado. Tudo isso tem a ver com deveres do Estado.
Qual é o objetivo do Governo em relação a esses crimes sistemáticos?
As duas políticas nos parecem muito claras. A primeira é reprimir e silenciar a oposição política, e a segunda é reduzir o grave problema da criminalidade de forma que, a nosso ver, viole totalmente seus deveres internos de garantia do direito à vida e ao devido processo.
Acredita que indultos políticos como os que vimos em 31 de agosto são uma forma de desacelerar o conflito social na Venezuela?
Bem, existem várias interpretações possíveis. O que diria é que qualquer passo positivo deve ser bem-vindo. Embora a missão não deva se intrometer nos assuntos políticos, se as condições de direitos humanos de algumas pessoas melhoram, nós celebramos. E também esperamos que essa prática se expanda rapidamente até que todos sejam libertados. Se é possível para um grupo limitado, deve ser possível para um grupo muito mais amplo.
Segundo, em relação aos motivos por trás disso, pode-se pensar em várias coisas, mas não podemos dizer muito. O que estou dizendo é que mostra que o Estado tem o controle dos fatos, sabe o que está fazendo e não está surpreendido. Então, espero que amplie essa medida. Mas, acima de tudo, espero que também demonstre uma mudança de atitude e uma decisão fundamental para parar as violações.
Houve algo que o impressionou ou afetou particularmente durante a investigação?
É difícil, mas para mim, que trabalhei vários anos na Guatemala, lamento que décadas após o que aconteceu na América Latina, nos anos 1970 e 1980, principalmente pelas mãos das ditaduras de direita, embora não me importe se são de esquerda ou de direita, estejamos vendo algo tão grave em termos de violações sistemáticas dos direitos humanos por um Governo da região. Não estou dizendo que seja igual ou semelhante. É triste que não tenhamos conseguido chegar a um ponto em que os problemas políticos sejam enfrentados sem este tipo de violações.
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Venezuela. “Ninguém em sã consciência vai duvidar de que existem abusos e tortura no país”. Entrevista com Paul Seils, relator da ONU - Instituto Humanitas Unisinos - IHU