17 Setembro 2020
O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do executivo para 2021 não prevê os impactos da pandemia no próximo ano, deixando a população ainda mais vulnerável.
A reportagem é publicada por Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc, 16-09-2020.
No dia 31 de agosto, o executivo enviou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021, com todos os gastos que o governo pretende realizar no próximo ano. Em um cenário de crise econômica, social, política e sanitária, faz-se ainda mais fundamental analisar esse instrumento sob a ótica dos direitos humanos, para entender quais os planos e prioridades do governo Bolsonaro para ano que vem, já que o documento não prevê os impactos da pandemia em 2021. O PLOA ainda será emendado pelos parlamentares (entre 1 e 20 de outubro) e precisa ser aprovado até o final do ano.
O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), enviado para o Congresso em abril, já foi analisado pelo Inesc. O texto coloca que o Teto de Gastos será a “âncora fiscal” de 2021, pois o governo não pretende gastar ano que vem além do delimitado pelo teto. Atitude diferente da que o governo tomou este ano, quando vem realizando gastos extraordinários além do teto para enfrentar a pandemia, ainda que estes gastos tenham apresentado graves atrasos em sua execução.
No PLOA não é diferente. Seguindo as diretrizes do PLDO, a pandemia e suas consequências se restringirão a 2020, e em 2021 voltaríamos ao normal, com prioridade para o equilíbrio fiscal e redução do déficit primário. “Não trabalhamos com extensão de calamidade para 2021”, disse Waldery Rodrigues, secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, ao justificar que os gastos extraordinários em função da pandemia ficaram restritos a 2020.
Mas o que é o “normal”? O país está mergulhado numa recessão econômica e vivenciando cortes de gastos sociais há anos que, como analisado pelo Inesc, deixaram o Brasil sem imunidade para o enfrentamento da Covid-19. As consequências da pandemia sequer são completamente conhecidas, que dirá superadas. Indiferente a esse cenário, o governo pretende voltar à austeridade e aos cortes aos gastos sociais.
Veja abaixo o que isso significa em termos de garantia de alguns direitos: saúde, meio ambiente, povos indígenas, mulheres, população negra e criança e adolescente.
A saúde foi uma das áreas que sofreu cortes com o PLOA 2021 apesar de o Brasil ser o epicentro da pandemia do novo coronavírus na América Latina. O projeto de lei, que reserva R$ 136,7 bilhões para o Ministério da Saúde, simplesmente ignora a continuidade da pandemia da Covid-19 e seus efeitos no próximo ano. O recurso previsto tem quase R$ 40 bilhões a menos que a dotação atual do programa em 2020 e é apenas 4% maior que o apresentado no PLOA 2020. O governo federal desconsidera também o aumento do desemprego resultante da crise econômica, que certamente fará com que várias famílias fiquem sem plano de saúde e passem a depender do SUS.
A principal queda em relação à verba autorizada em 2020 é observada no programa de Atenção Especializada, que tem cerca de 40% a menos de recursos. Ou seja, a gestão do Presidente Bolsonaro não pretende contribuir com a manutenção dos leitos de UTI que foram criados para o enfrentamento da pandemia. Ademais, a Atenção Básica e o Desenvolvimento Científico e Tecnológico terão perdas de 13% e 3%, respectivamente. Apesar da importância de uma vacina contra o novo coronavírus, os programas de Assistência Farmacêutica e Vigilância em Saúde, de onde sairão os custos para sua aquisição, e o programa de Vacinação terão aumentos irrisórios, por volta de 4%. Em resumo, em 2021 o governo federal pretende manter sua gestão negacionista e irresponsável da saúde pública.
Para a Função Educação, foram previstos R$ 108,8 bilhões (2020) e R$ 111,8 bilhões (2021): apenas R$ 3 bilhões a mais diante do atual quadro de crise e abandono da política de educação por parte do governo federal. Para as ações de Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE) previu-se R$ 95 bilhões (2020) e R$ 98 bilhões (2021) , os mesmos R$ 3 bilhões a mais, ainda que o sistema de educação atravesse uma de suas maiores crises, advinda da pandemia: escolas públicas precisam se adaptar sem recursos financeiros ou tecnológicos, agravando desigualdades entre estudantes de escolas públicas e privadas, especialmente das periferias, zonas rurais, territórios indígenas e quilombolas. Então, em vez do poder público investir mais recursos para mitigar os efeitos da crise sanitária, que também se transformou em uma crise para a educação, há recursos de menos e maiores responsabilidades para os entes que menos arrecadam.
Há um Plano Nacional de Educação a ser cumprido, o qual registra em sua meta 20 que a partir de 2019 o financiamento da educação deveria ficar em 7% do PIB e 10% em 2024. Ao que tudo indica, o Brasil caminha no sentido contrário, não apenas com relação aos recursos, como também na busca por educação de qualidade.
O PLOA 2021 propõe para a função Urbanismo R$ 1,5 bilhão: R$ 200 milhões a menos do que foi aprovado para 2020. As principais políticas que possibilitam maior acesso ao direito às cidades inserem-se nesta função orçamentária, tais como projetos de acessibilidade, reformulação de áreas centrais, urbanização de assentamentos precários, regularização fundiária, além de implementação, modernização e contribuição para o funcionamento dos sistemas coletivos de transporte urbano.
A parte que cabe à União é apoio a estas ações que são de responsabilidade dos municípios. No entanto, este ente federado é quem menos arrecada, especialmente os de menor porte. São, ainda, os que mais têm sentido os efeitos da pandemia. Aqueles que precisam de um sistema de transporte urbano e rural estão sofrendo nas mãos de empresas, que cobram caro do poder público para não fecharem as portas. O Governo Federal, portanto, tem obrigação de aportar mais recursos para contribuir com a urbanização das favelas, locais com menos acesso a água potável e saneamento básico. Os recursos propostos não atendem às necessidades mais básicas da população, como ir e vir com tarifas acessíveis e segurança contra os efeitos da pandemia, ao serem ofertados mais veículos para locomoção, evitando aglomerações.
Entre 2019 e 2020, assistimos a sucessivas medidas infra legais de esfacelamento da capacidade institucional dos órgãos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), o que amplificou a dificuldade desses órgãos executarem seus poucos recursos autorizados. Em 2021 a tendência é que isto piore. O MMA, incluindo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ), perdeu 35% do orçamento se comparado ao PLOA 2020 e 40% se comparado à dotação atual.
No PLOA 2021, a previsão de corte de pessoal e encargos é de 45% se comparado com o valor autorizado para o ano em curso. A falta de pessoal tem sido motivo de alerta e denúncia, nacional e internacional.
Além disso, observa-se uma queda geral de recursos para ações finalísticas. Duas perdas chamam atenção. Primeiro, no programa “Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade e dos Recursos Naturais”, sob responsabilidade do ICMBIo. No PLOA de 2021 o programa perde R$ 33 milhões, se comparado ao PLOA 2020. Segundo, a extinção em 2021 do programa “Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios nos Biomas”.
Cabe lembrar, como já analisado pelo Inesc, que na tramitação do PPA 2020-2023 no Parlamento este programa havia sido inserido por meio de emenda, com uma meta de redução do desmatamento e incêndios ilegais nos biomas em 90% durante os quatro anos do PPA, com a linha de base estabelecida em dezembro de 2019. E, ainda, que no primeiro semestre de 2020 houve um aumento de 24% no desmatamento se comparado ao primeiro semestre de 2020: foram 2.544 km² de floresta perdida. Em 2020 o orçamento atual deste programa é de R$ 173 milhões dos quais foram gastos até agosto R$ 48 milhões somente.
O Ministério da Defesa vinha há dois anos arregimentando recursos públicos para operações de Garantia da Leia e da Ordem (GLO) e intensificando a presença militar na Amazônia. Esta estratégia, do ponto de vista orçamentário, perdeu fôlego, pelo menos se analisado na perspectiva da intenção do governo expressa no PLOA 2021. De uma dotação atual de R$ 1,68 bilhão para ações vinculadas à Amazônia, restou no PLOA 2021 apenas R$ 112 milhões. Há que se notar, contudo, que ao longo do ano de 2020 os militares conseguiram aprovar créditos suplementares que inflaram ainda mais seu orçamento, movimento que tem passado desapercebido do debate público.
Em uma primeira análise, a comparação entre o orçamento atribuído para a Funai pelo PLOA 2021 parece otimista: no ano que vem o órgão conta com cerca de R$ 11,5 milhões a mais do que no PLOA 2020 e R$ 6,1 milhões a mais que a dotação atual. No entanto, boa parte desses recursos está sujeita à aprovação legislativa, devido ao sufocamento orçamentário fruto da Regra de Ouro: dos R$ 648,5 milhões atribuídos para a Funai em 2021, R$ 338,5 milhões estão sujeitos à aprovação do Congresso. Além disso, o acréscimo orçamentário previsto para o ano que vem está longe de ser suficiente para recuperar a esgarçada estrutura do órgão. O valor, por exemplo, está muito distante dos R$ 870 milhões atribuídos à Fundação em 2013, o que representa uma queda de 26%.
No que tange à Saúde Indígena, o PLOA 2021 atribuiu R$ 67,9 milhões a mais para a principal ação orçamentária da área, totalizando R$ 1,4 bilhão. É possível que tal aumento seja resultado das mobilizações por ações mais efetivas no enfrentamento ao novo coronavírus nos territórios indígenas. No entanto, levando em conta que um estudo recente do Inesc demonstrou que a os recursos para a Saúde Indígena não têm chegado mesmo diante da pandemia, e que em setembro segue na taxa de 62% de execução orçamentária, resta saber se o acréscimo orçamentário na principal ação da saúde indígena implicará em melhor atendimento para indígenas por parte da SESAI.
Os recursos para garantir direitos humanos no orçamento do governo Bolsonaro foram, em sua maior parte, aglutinados em um só programa orçamentário, executado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). O PLOA 2021 prevê R$ 132,3 milhões para este programa, que abriga políticas para diversos públicos: mulheres, população negra, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, indígenas e quilombolas. Esse recurso é 66% inferior ao PLOA 2020 (R$ 394 milhões) e 77% inferior ao autorizado em 2020 (R$ 575 milhões), que leva em consideração o incremento dos créditos extraordinários da Covid-19.
Para as políticas específicas voltadas para a promoção dos direitos das mulheres, o PLOA 2021 prevê apenas R$ 1 milhão, a ser investido na implementação de Casas da Mulher Brasileira e Centros de Atendimento à Mulher. Esta ação conta em 2020 com quase R$ 64 milhões, mas nenhum recurso foi pago até o presente momento. Outras ações orçamentárias para mulheres não foram citadas no PLOA para o ano que vem, como por exemplo, a Ação Políticas de Igualdade e Enfrentamento a Violência contra as Mulheres, que em 2020 conta com R$ 24 milhões, mas apenas R$ 1,5 milhão foram executados.
As políticas de enfrentamento ao racismo são de responsabilidade do MMFDH, que possui inclusive uma Secretaria Nacional dedicada ao tema. Todavia, assim como em 2020, não há recursos específicos para estas políticas, a não ser para o funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Sobre os quilombolas, o MMFDH também não destinou qualquer recurso para esse grupo, ainda que seja possível que verbas de ações mais genéricas possam ser alocadas ao longo de 2021. No que se refere à regularização fundiária dos territórios quilombolas, realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a situação é vergonhosa: o PLOA 2021 prevê cerca de R$ 330 mil reais. Em 2020, R$ 3,2 milhões foram autorizados para esta ação, mas nada foi pago até o momento. O governo prevê R$ 80 milhões para Ações e Serviços de Saneamento Básico em Pequenas Comunidades Rurais ou Comunidades Tradicionais – entre elas, quilombos.
O programa apresenta um valor significativo, considerando que em 2020 não teve dotação orçamentária. Contudo, os valores apresentados para 2021 são 20% menores que o efetivamente observado em 2019, quando a ação teve execução de R$ 100 milhões. O Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, por sua vez, destinou R$ 18,6 milhões para a distribuição de alimentos a grupos populacionais tradicionais e específicos. Em 2020, essa política contou com R$ 7,2 milhões, mas até o momento foram pagos somente R$ 364 mil reais. Por fim, para a Fundação Cultural Palmares foram destinados apenas R$ 2,7 milhões, um corte de 87% em relação aos R$ 21,3 milhões autorizados em 2020, dos quais foram executados 50% até o momento.
Podemos aferir que a execução orçamentária das políticas para mulheres e população negra em 2020 está muito baixa e as perspectivas para 2021 não são promissoras.
A política de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente vem sendo progressivamente desmantelada. No PPA 2020-2023, a palavra adolescente sequer aparece e o programa voltado para o público em questão foi excluído. O único programa direcionado a esses sujeitos de direitos é o de Atenção Integral à Primeira Infância, que contém ações na área da assistência social para crianças desde a gestação até os 6 anos de idade. A proposta do orçamento do ano que vem apresenta valores inferiores aos disponíveis atualmente: o PLOA 2021 prevê R$ 448 milhões para este programa, 13% inferior ao previsto na PLOA 2020 e 7% a menos da dotação atual do programa.
Algumas outras ações direcionadas a crianças e adolescentes estão inseridas no programa Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. A única ação orçamentária específica é a Construção, Reforma, Equipagem e Ampliação de Unidades de Atendimento Socioeducativo que tem alocação no PLOA 2021 de R$ 1,6 milhões, bem maior que a PLOA 2020, que tinha previsto apenas R$ 450 mil. Contudo, esse valor é 79% menor do que a dotação atual. Quanto ao Funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, diferentemente do observado nas demais iniciativas, o valor previsto na PLOA 2021 é bem maior do que a PLOA 2020 e do que a dotação atual, R$450 mil, uma diferença de quase 90%.
O Projeto de Lei Orçamentária para 2021 aloca R$ 279 milhões para a Educação Infantil, 68,79% a mais do que a PLOA 2020. Deve-se garantir que esse valor seja aprovado pelo Congresso Nacional, pois o déficit de creches e de escolas de educação infantil é expressivo no Brasil. Por fim, em relação ao enfrentamento do trabalho infantil, o PLOA 2021 prevê um aumento de 60% em seus recursos. A execução dessas políticas em 2020, porém, está muito baixa. Urge, portanto, monitorar se os recursos prometidos de fato serão gastos para o combate ao trabalho infantil.
Confira o resumo dos principais pontos da análise.
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Orçamento de 2021 mantém equilíbrio fiscal acima das necessidades da população - Instituto Humanitas Unisinos - IHU