02 Setembro 2020
Em março, no dia em que a Itália registrou seu maior salto no número de fatalidades por coronavírus, o Papa Francisco saiu do seu confinamento para fazer uma oração extraordinária e um apelo a seu rebanho no sentido de que sejam reavaliadas as prioridades, argumentando que o vírus provou que uns necessitam dos outros.
A reportagem é de Nicole Winfield, publicada por America, 30-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
As palavras de Francisco, pronunciadas sob forte chuva na Praça São Pedro, resumem as mensagens centrais que ele vem destacando nestes sete anos de pontificado: solidariedade, justiça social e cuidado com os mais vulneráveis. Esse momento dramático também sublinhou o quão isolado o papa está durante a pandemia de covid-19 e uma forte oposição de seus críticos conservadores: ele estava sozinho, diante de um inimigo invisível, pregando em uma praça assustadoramente vazia.
Durante esta pandemia, Francisco virou o “prisioneiro do Vaticano” do século XXI, como é conhecido um dos seus antecessores, impedido de estar entre as multidões, fazer viagens ao exterior e visitas às periferias que tanto definem e popularizam o seu papado. Ele retomará o contato físico com o rebanho esta semana, nas Audiências Gerais de quartas-feiras, porém estes encontros serão realizados em um pátio interno do Vaticano diante de um grupo limitado de fiéis, e não na vasta Praça São Pedro.
Depois de semanas tendo o vírus sob controle no país, o número de casos nacionais voltou a chamar atenção, acrescentando mais 1 mil novas infecções diárias. Portanto, não é possível dizer quando nem como os encontros públicos e as viagens serão retomados.
O que isso tudo significa para um papa itinerante de 83 anos e seu ministério em uma igreja de 1,2 bilhão de membros?
Alberto Melloni, historiador católico, diz que a pandemia marcou o início do fim do pontificado de Francisco. Em ensaio recente, ele escreveu que as tensões que haviam se infiltrado por todo o papado vieram à tona durante estes meses de confinamento e que não vão desaparecer mesmo depois que a covid-19 acabar.
“Em todos os papados, há um momento histórico após o qual a fase final começa, o que pode durar anos”, escreve Melloni. Para Francisco, “esse ponto foi a pandemia e sua solidão diante do vírus”.
O biógrafo papal Austen Ivereigh concorda que a pandemia foi, de fato, “um momento decisivo” para o papado e a própria humanidade. Mas contestou que Francisco esteja isolado e disse que a crise lhe oportunizou oferecer orientação espiritual a um mundo necessitado.
Em entrevista recente, Ivereigh diz que a pandemia deu “um ímpeto totalmente renovado ao papado” para acentuar sua mensagem central, articulada de forma mais clara na encíclica Laudato Si’, de 2015. Nesse documento, Francisco pede que os líderes políticos corrijam as desigualdades estruturais “perversas” da economia mundial que têm transformado a Terra em um “imenso depósito de lixo”.
“É uma convicção do papa de que vivemos um ponto de inflexão e que o que a Igreja tem a oferecer à humanidade pode ser muito útil”, disse Ivereigh. “Ele está convencido de que, de uma crise (…) ou saímos melhor ou saímos pior”.
Há rumores de que Francisco estaria escrevendo uma encíclica para um mundo pós-covid-19. Por enquanto, parte importante de sua mensagem toma forma em uma comissão vaticana que vem auxiliando os bispos ao redor do mundo na garantia de que as necessidades dos mais pobres sejam atendidas, agora e depois da pandemia.
Essa comissão vem dando assistência concreta – mensalmente o Vaticano anuncia novas entregas de ventiladores a países em desenvolvimento – bem como recomendações de políticas sobre como os governos e instituições podem repensar as estruturas econômicas, sociais, de saúde e outras, para que sejam mais equitativas e sustentáveis.
“O papa não apenas olha para a questão da pandemia”, disse a Irmã Alessandra Smerilli, economista e participante da comissão vaticana. “Talvez ele seja um dos poucos líderes mundiais que busca garantir que não desperdiçemos esta crise, que toda a dor que a crise vem causando não seja em vão”.
Nas últimas semanas, Francisco também lançou uma série de novas lições catequéticas, aplicando o ensino social católico à pandemia e reafirmando a “opção preferencial pelos pobres”, ao exigir que os ricos não tenham prioridade na vacinação e que os líderes políticos enfrentem as injustiças sociais exacerbadas pela crise.
“Alguns podem trabalhar de casa, enquanto para muitos outros isto é impossível”, disse o papa semana passada. “Algumas crianças (…) podem continuar a receber uma educação escolar, enquanto para muitas outras houve uma brusca interrupção. Algumas nações poderosas podem emitir moeda para enfrentar a emergência, enquanto que para outras isso significaria hipotecar o futuro. Estes sintomas de desigualdade revelam uma doença social; é um vírus que provém de uma economia doente”.
Essas palavras foram ditas diante de uma câmera de televisão instalada na biblioteca de Francisco. Essa é a configuração que o Vaticano usa desde março, quando suspendeu as atividades e reuniões não essenciais.
Esta pandemia tem privado Francisco de uma de suas ferramentas mais potentes também: as viagens ao exterior. Desde os dias de São João Paulo II, a Santa Sé conta com viagens ao exterior e com a cobertura da imprensa, de 24 horas por dia, a fim de levar a mensagem papal a uma grande audiência internacional que, de outra forma, dificilmente lhe prestaria muita atenção.
Francisco usou essas viagens para entrar em contato com padres e freiras distantes, deixar mensagens de amor a líderes mundiais e prestar acompanhamento pastoral, frequentemente em cantos esquecidos do planeta. Essas viagens também permitiram que ele inovasse em perguntas importantes durante as coletivas de imprensa na volta para casa.
Resta saber o que uma ausência prolongada dessas viagens significará para o atual papado. Mas Francisco aderiu de bom grado às medidas de confinamento anunciadas pelo governo italiano, e até criticou os padres que delas reclamaram.
Segundo Ivereigh, Francisco expressa sua “proximidade espiritual” de outras maneiras, entre elas via missas matinais transmitidas ao vivo e que foram assistidas por milhões antes de o Vaticano encerrá-las após a reabertura das igrejas na Itália.
Em todos estes meses, houve relatos de padres, freiras e pessoas comuns de todo o mundo recebendo telefonemas do papa: um bispo de Moçambique que lutava com surtos de cólera e malária, bem como uma insurgência muçulmana; uma freira argentina que cuida de mulheres transgênero.
Embora essas histórias alegres tenham ocasionalmente vazado dentre os muros do Vaticano, elas não abafaram o ritmo constante de críticas na imprensa católica americana feita por opositores conservadores de Francisco, estes que formam uma ala pequena porém barulhenta da Igreja.
Este grupo vem usando o isolamento atual do papa para continuar com os ataques e demandas por responsabilização em acobertamentos de duas décadas atrás no caso envolvendo o ex-cardeal americano Theodore McCarrick, o qual Francisco excomungou ano passado depois que uma investigação vaticana concluiu que McCarrick abusou sexualmente de menores e seminaristas.
Francisco ainda não liberou um relatório sobre o que o Vaticano sabia sobre McCarrick, dois anos depois de prometer fazê-lo.
Como prova do desejo da ala conservadora de olhar além do papado de Francisco, o grupo publicou dois livros recentemente escritos por autores católicos de destaque. Ambos foram intitulados The Next Pope, “o próximo papa”.
Um apresenta resumos de 19 candidatos papais no próximo conclave, o outro uma lista das características que o próximo papa deve ter. Cada uma das publicações pontificou sobre um futuro pontificado, o que é incomum enquanto o papa vigente se encontra vivo e bem disposto. Estas obras sugerem que pelo menos alguns estão pensando sobre o que virá a seguir, não só depois da pandemia, mas do papado também.
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O que acontece quando uma pandemia atinge um papa itinerante? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU