21 Agosto 2020
“Se há uma dimensão onde se revela a crise da hipótese da sociedade de controle é no surgimento estarrecedor e sintomático dos libertários atuais que marcham pelo mundo. Dias passados, em Madri, assim como ocorreu depois em Buenos Aires, reuniram-se muitas pessoas contrárias à quarentena. É um verdadeiro insulto à tradição da palavra Libertária escutar semelhante repertório delirante, na boca desses energúmenos”, escreve Jorge Alemán, psicanalista e escritor, em artigo publicado por Página/12, 20-08-2020. A tradução é do Cepat.
Em meio a esta pandemia crucial, muitas teorias e correntes de opinião dos grandes autores contemporâneos merecem ser revisadas e ressignificadas a partir da conjuntura. É o caso do grande Foucault e suas teses sobre as relações de poder. Mais do que entrar na complexidade de seu discurso teórico, interessa-me o que se divulgou a respeito do mesmo.
Para Foucault, nas sociedades modernas, o Poder não é mais repressivo. A hipótese repressiva, própria da sociedade disciplinar, se transformou em uma nova ordem na qual o poder é produtivo e gera novas formas de sujeição, onde proliferam diferentes tecnologias do eu e produções de saber. Deste modo, Foucault dá conta de uma transformação histórica em relação ao Poder: o trânsito da sociedade disciplinar à sociedade de controle.
Na sociedade de controle, o poder se torna quase imperceptível porque os próprios sujeitos se subordinam ao controle, sem a necessidade de que o Soberano o imponha. Através de diferentes dispositivos, o sujeito foi avaliado, classificado, localizado, calculado e enrolado em um regime biopolítico de controle de sua própria vida. Neste aspecto, Foucault não deixa escapar que a denominada sociedade de controle é um antecedente do neoliberalismo.
Tudo se prepara para que os sujeitos garantam sua vida a partir de um controle reticular que opera em diversos registros. Se nos ficássemos com este desenvolvimento, a quarentena e todos os exercícios de sua aplicação seriam um exemplo consumado da sociedade de controle. Talvez, por esta razão, um reputado filósofo pertencente à tradição foucaultiana, Agamben, quis ver na quarentena uma imposição da biopolítica.
Aqui, a questão essencial é que a quarentena corresponde a uma ética do cuidado e aos imperativos de renúncia a favor do bem comum e não à biopolítica da sociedade de controle. Notemos de passagem que no último Foucault encontramos interessantes reflexões sobre o cuidado de si no mundo grego. No entanto, hoje em dia, em meio a esta Pandemia, o cuidado do Comum onde habitamos provocou um curto-circuito na tese de Foucault.
Não é um assunto de controle do Poder, mas de um teste onde a espécie humana deverá mostrar sua capacidade para conter e sublimar a pulsão de morte que a habita de um modo constitutivo. Trata-se dos grandes motivos da solidariedade na luta com as pulsões narcisistas que sempre buscam no uso da lei sua mais-valia de gozo, ignorando as consequências mortíferas de sua ação. As desigualdades sociais desdobradas pelo capitalismo sempre correspondem a este aspecto tanático da subjetividade.
Se há uma dimensão onde se revela a crise da hipótese da sociedade de controle é no surgimento estarrecedor e sintomático dos libertários atuais que marcham pelo mundo. Dias passados, em Madri, assim como ocorreu depois em Buenos Aires, reuniram-se muitas pessoas contrárias à quarentena. É um verdadeiro insulto à tradição da palavra Libertária escutar semelhante repertório delirante, na boca desses energúmenos, que se chegassem a ter que passar por cima dos cadáveres, continuariam insistindo em que estão nos matando com as máscaras e com os microchips dos celulares. É a versão delirante e paranoica da denominada sociedade de controle.
Inesperadamente, para a hipótese da sociedade de controle, o trajeto final do delírio dos novos libertários fica alojado no receptáculo megalomaníaco da extrema direita. É o desejo de matar e não de morrer o que parece prevalecer e isto não foi pensado na tese de Foucault.
Há também uma pequena corrente de intelectuais anarquistas ou neoanarquistas que também traduz a Pandemia como uma horrível imposição do Poder à qual nos submetemos como cordeiros. Esta é muito mais uma atitude estética e, como os respeito, espero que se cuidem e cuidem dos outros.
Contudo, é uma obrigação ética, independente das críticas que vão e vêm com os governos, admitir que neste mundo, onde a fronteira entre os vivos e os mortos se deslocou seriamente, as categorias que nos permitiam uma certa inteligibilidade da realidade, como tantas outras coisas, começam a ranger em seus alicerces.
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Quarentena e sociedade de controle. Artigo de Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU