14 Julho 2020
No Papa Francisco, em Jorge Bergoglio, ou simplesmente em Jorge, que é como ele o trata em suas conversas particulares "não há preocupação de ver de onde você vem, não há relatório institucional, na cabeça de Bergoglio não há tal pensamento de que ele é judeu, ele é islâmico". Quem fala isso é Luis Liberman, um judeu argentino, que está ligado ao Papa por interesses ideológicos comuns desde seu tempo como Arcebispo de Buenos Aires, já que Bergoglio sempre se aproximou daqueles que buscam o bem comum.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Para dizer a verdade, o primeiro da família Liberman a conhecer Bergoglio foi Julio Liberman, avô de Luis, um líder do Partido Comunista da Argentina, que nos últimos anos de sua vida teve como bandeira a defesa dos aposentados, que ganham muito pouco. Naquela época, no início dos anos 90, "Bergoglio conheceu meu avô quando era bispo auxiliar e responsável pela Pastoral dos Idosos", disse Liberman. Dois dias antes de sua morte, Julio Liberman chama seu neto e anuncia que ele vai morrer, e lhe diz "tudo o que você tem que fazer é chamar Bergoglio".
Luis Liberman e Papa Francisco. (Foto: Enviada por Luis Liberman)
"Três horas depois de ligar para sua secretária, Bergoglio foi ao velório e perguntou por mim", diz Luis Liberman. Ele não estava lá, mas uma semana depois, estamos falando de fevereiro de 2003, ele telefonou e eles marcaram uma reunião, na terça-feira seguinte às 7 da manhã, algo que foi repetido por 6 meses. Depois eles se encontraram nas sextas-feiras às 17h, diz o amigo judeu do Papa, embora a religião não tenha sido o que os levou a se encontrarem. Na verdade, "nosso ponto de encontro com Bergoglio foi a política, a literatura e a educação. Não foi uma questão religiosa", insiste Luis, acrescentando que "temos uma amizade que transcende a religião, uma amizade fraterna, e Jorge, Francisco, é um mestre sensacional". Jorge apoia seus amigos".
A política é a arte de tornar possível o necessário, diz Luis Liberman, e na política "Francisco tem uma visão ontológica", algo que aparece tanto na Evangelii Gaudium como na Laudato Si', que têm uma estrutura política, de acordo com o antropólogo argentino. De fato, segundo ele, "pensar que Laudato Si' é uma encíclica ambiental é cometer um erro de reducionismo". Liberman afirma que "na construção das tensões polares que Francisco propõe, há um entrelaçamento com a política, em termos de poder como verbo, não de poder como substantivo, que é uma ação transformadora que só torna possível a construção do bem comum a partir de uma práxis".
A partir desta afirmação, ele vê que "Laudato Si' é uma visão geopolítica, social e ambiental, que propõe que o problema da humanidade, a salvação do planeta, começa na política". De fato, Liberman afirma que "Francisco é um sujeito político, que pensa em termos de animal político", algo que, por exemplo, demonstrou em seu discurso nas Nações Unidas, onde "ele desliza a visão política da sustentabilidade de um organismo que, se realmente não fixa metas concretas e como obtê-las, é um organismo que deixa de ter um poder real, de ter um poder formal e, portanto, inútil para o desafio de fazer um mundo melhor".
Para Liberman, "em termos weberianos, poderíamos dizer que a ação política de Francisco está ligada a fins racionais, mas também a uma ética, que é marcada pela possibilidade de pensar no futuro". Isto é algo que pode ser vislumbrado na relação entre Laudato Si' e o Sínodo para a Amazônia, que poderia ser visto como a aplicação do documento papal ao território. Nesta perspectiva, as palavras do Papa no final da Assembleia Sinodal assumem especial importância, "concentrar nos diagnósticos, porque é aí que devemos intervir, e essa intervenção é social, ambiental, cultural e política", disse Luis.
De fato, "o Sínodo é a concretização política de Laudato Si', e sua extensão ao território e a implementação de suas decisões abre um desafio esperançoso e transformador", de acordo com o antropólogo. Nesta perspectiva, ele destaca que "em um mundo onde os partidos políticos estão tão desacreditados e a democracia se torna uma democracia de pessoas, o fato de tomar consciência da tragédia humana que está acontecendo na Amazônia, e essa consciência ter uma pedagogia de cuidado e mudança, alerta os poderosos que os humildes estão tomando algo que estava escondido, que é o conhecimento". É por isso que, sem esquecer a relação dos Estados com o extrativismo predatório, Liberman insiste em buscar estratégias de desenvolvimento para a Amazônia junto com os povos que ali vivem. Procurar um programa político amazônico, "baseado na compreensão de nossas diferenças e caminhar juntos como irmãos, o que deveria levar os poderosos a se unirem, não a considerá-los como inimigos".
Luis Liberman e Papa Francisco. (Foto: Enviada por Luis Liberman)
Em vista da pandemia da COVID, que afeta as populações mais vulneráveis, algo ainda mais evidente na Amazônia, Luis insiste na necessidade de investimentos em políticas de saúde por parte dos estados nacionais, que nunca favoreceram os setores desprotegidos da Amazônia e, consequentemente, estas mortes, que são evitáveis em outro contexto, não foram evitadas de forma alguma. Ele lembra as palavras de Patricia Gualinga, líder do povo Kichwa de Sarayaku, que disse que estão procurando alternativas à COVID na medicina ancestral, com algum grau de sucesso, sem esperar que a medicina ocidental resolva o que ela nunca atacou, o que tem a ver com a negligência, com a falta de proteção dos povos originários.
Desde o mês passado, o Instituto para o Diálogo Global e a Cultura do Encontro, do qual Luis é o fundador e diretor, está organizando, junto com a Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, o "Fórum sobre o Direito à Água e o Direito à Esperança", que ele define como uma continuidade de uma série de reuniões de gestão do conhecimento que começou com o caminho comum que tomamos com a REPAM desde 2015. Nesta caminhada, já foi realizado o "Seminário sobre o Direito à Água e Políticas Públicas", realizado no Vaticano em fevereiro de 2018, do qual foi emitida uma declaração que foi citada na abertura do Sínodo, outro Seminário, "Do Direito à Água ao Direito à Paz", naquele mesmo ano, acompanhando a visita do Papa à Colômbia, com líderes das FARC e a administração estatal do pós-conflito.
Liberman enfatiza que "nossa pregação sempre procurou territorializar o conhecimento, não para levar o conhecimento apenas ao nível acadêmico, mas também para colocá-lo ao alcance daqueles que necessitam desse conhecimento para realizar suas ações". Este trabalho, que também teve outro encontro em Buenos Aires, "Do Direito à Água ao Direito ao Futuro", pretendia fazer deste seminário, que está sendo virtual, com sessões a cada duas semanas, que devem ser prolongadas até outubro, em Roma. O objetivo é "fortalecer, atender e acompanhar as decisões científico-técnicas, a difusão e a gestão do conhecimento que saiu do Sínodo", diz Luis, que insiste que "nossa ideia é gerar um espaço de intercâmbio entre o conhecimento comprovado que possa ser transferido para as comunidades".
O diretor do Instituto de Diálogo Global e Cultura do Encontro afirma que "a COVID, como uma crise global, nos dá a oportunidade de repensar nossas políticas públicas, colocando a água e o meio ambiente no início da gestão das políticas públicas, não no fim, depois de ter colocado o capital financeiro e produtivo, deixando os direitos básicos, o direito à água, para o fim, para o qual são criados os Ministérios do Meio Ambiente". A importância desta posição reside no fato de que se trata de construir o futuro, segundo Liberman, que vai mais além, dizendo que "um futuro só é possível se fizermos o que é necessário no presente para que o futuro exista". Isso exige, em sua opinião, "ser capaz de semear um grau de consciência de que a política ambiental, no sentido amplo, talvez no sentido expresso por Laudato Si', tem que estar no início da ética e das práticas das políticas públicas", o que exige "criar sistemas educacionais de uma ordem diferente que nos permitam postular esse futuro".
Esta construção do futuro é uma das preocupações do Papa Francisco, que criou a Força Tarefa neste sentido. Liberman a entende "como se fossem círculos concêntricos, com o Vaticano no centro, que propôs uma abordagem transversal a vários dicastérios que lhe permitiram mobilizar a partir de uma certa zona de conforto, na qual está instalada a Cúria Romana, atores que até agora não se haviam expressado". Neste sentido, ele a vê como "uma comissão inspiradora e não prática, porque está elaborando cenários para o futuro, que são algo hipotético e não preditivo". Um elemento importante é que "esta comissão deve se forçar a pensar em entrar no território, deve entrar em contato profundo com a Conferência Eclesial Amazônica e com as Conferências Episcopais", assinala Luis, que a vê como um instrumento que "fornece à Igreja um andaime político que muitas vezes a Igreja não articula". Nesta perspectiva, o antropólogo compara a Igreja a algo que está permanentemente em tensão, sabendo que a unidade é superior ao conflito.
Para Liberman, "o desafio da Força Tarefa é cruzar aquelas tensões polares que Francisco menciona muitas vezes e vertebrá-las em termos de um desafio temporário de uma abordagem política e cultural". Acima e além do impacto que pode ter, um conceito que ele diz não gostar, em relação à Força Tarefa, "o importante é que uma trama acontece, que é o que causa as mudanças de baixo para cima, como um entrelaçamento, que torna fortes os fios que só por si são frágeis". Portanto, "o desafio é construir tramas que tenham uma transferência pedagógica para a Igreja universal através do local", insistindo em apoiar a nascente Conferência Eclesial Amazônica, que Luis define como polifônica, pois leva as vozes de todos os participantes.
Em referência a esta Conferência Eclesial da Amazônia, que não podemos esquecer foi uma orientação do Papa, Liberman define Francisco como "um peregrino das periferias". Ele afirma que "Jorge Bergoglio é um homem que quando estabelece um objetivo, de acordo com suas convicções, não se afasta do cumprimento desse objetivo, mesmo que o caminho seja mais longo". Nesta caminhada da Conferência Eclesial da Amazônia ele aponta alguns elementos importantes como a criação da Universidade Amazônica, que aparece como sugestão no Documento Final do Sínodo, e os seminários, afirmando que "se o Papa quer mudar a Igreja ele deve reformar o currículo dos seminários".
Liberman conta uma anedota que nos ajuda a entender a personalidade de Jorge Bergoglio. Ocorreu em 2010, quando “lhe perguntei se ele seria Papa, ao que ele respondeu que não tenho nenhuma chance de ser Papa, mas só seria Papa se a pátria precisasse de mim". O amigo do Papa diz que "quando ele foi eleito, entendi que a pátria era a humanidade e que este homem, aos 76 anos de idade, com um pulmão e três quartos, estava se entregando à humanidade". Com isso ele também perdeu muito, porque, segundo Luis, "nada agradava mais a Jorge Bergoglio do que sair às ruas, encontrando-se com as pessoas mais humildes". A partir daí pode-se entender termos presentes no vocabulário de Francisco, como a cultura do descarte ou a globalização da indiferença.
Na verdade, Luis Liberman define o pensamento de Bergoglio como muito complexo, não complicado. É isso que ajuda a entender "a dimensão pela qual Bergoglio observa a realidade e a traduz em palavras muito simples, que no entanto têm uma estratigrafia tal que para muitos é difícil de entender e para outros é uma matriz conceitual". Daí ele entende que "a indiferença globalizada é a incapacidade de ver o outro que sofre ao ponto de a indiferença excluir o outro". Junto com isso, ele vê que "a cultura do descarte é a cultura da sociedade quebrada, que surge de um homem que caminhava".
Tudo isso leva alguém que diz e sente que é seu amigo, um amigo judeu do Papa, a dizer que "para mim ele é um mestre e é um mestre inspirador, ele é porque essencialmente Bergoglio é um pedagogo". Ele exemplifica apontando que "eu sempre digo que a sabedoria deste homem não está em dizer que você vai bater na parede, mas em ordenar-lhe o caminho para que você não bata, agora, se você bater, a culpa é sua".
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“Bergoglio para mim é um mestre inspirador, porque ele é essencialmente um pedagogo”. Entrevista com Luis Liberman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU