01 Julho 2020
"O trabalhador fica à disposição do empregador o tempo todo. Ele assume o risco da atividade econômica como se fosse um empresário. Quando é acionado o trabalhador tem que cumprir a tarefa imediatamente para ser remunerado, caso contrário a mesma será atribuída a outra pessoa cadastrada na plataforma", escreve Fábio de Oliveira Ribeiro, em artigo publicado por Jornal GGN, 30-06-2020.
No mundo em que os algoritmos fazem tudo, inclusive e principalmente garantir os lucros fabulosos de seus proprietários mantendo-os absolutamente distantes e inatingíveis pelos seus empregados, os seres humanos estão sendo condenados a não fazer nada. Explico.
Algoritmos não suprem uma necessidade. Eles criam uma. Para trabalhar as pessoas são praticamente obrigadas a se cadastrar nas plataformas que exploram o trabalho remunerando-o não pelo tempo à disposição do empregador e sim pelo tempo efetivamente gasto no trabalho.
A diferença entre o trabalho tradicional e o controlado pelo algoritmo é evidente. Quando está a disposição do empregador, o empregado é remunerado caso esteja trabalhando ou não. O risco da atividade econômica é atribuída ao empresário. Isso significa que ele se apropria dos lucros quando a empresa trabalhada à toda carga. Mas é ele que suporta o prejuízo de remunerar o salário dos empregados caso a empresa seja obrigada a reduzir ou a interromper a produção.
Isso não ocorre em relação ao trabalho algoritmizado. O trabalhador fica à disposição do empregador o tempo todo. Ele assume o risco da atividade econômica como se fosse um empresário. Quando é acionado o trabalhador tem que cumprir a tarefa imediatamente para ser remunerado, caso contrário a mesma será atribuída a outra pessoa cadastrada na plataforma.
No primeiro caso empregado não pode ser prejudicado em razão das oscilações do mercado. No segundo as oscilações do mercado não provocam nenhum ônus para o empregador, pois a margem de lucro dele é protegida pelo distanciamento total entre ele e o empregado.
Numa empresa as relações entre o capitalista e o empregado são pessoais. Isso pode ser fonte de abusos e de perseguições, mas também pode originar um respeito mútuo não mediado exclusivamente pelo desejo do lucro. Vinculados exclusivamente aos algoritmos, os trabalhadores das plataformas de internet estão totalmente desligados dos seus empregadores.
As necessidades humanas de uns e outros são ignoradas pelo sistema. Ele é impessoal e essa impessoalidade é um problema.
Ao criticar a possibilidade de um governo mundial, Hannah Arendt disse que:
“O fato de nenhum indivíduo – nenhum déspota, per se – poder ser identificado nesse governo mundial não mudaria de forma alguma o seu caráter despótico. O governo burocrático, o governo anônimo do burocrata, não é menos despótico porque ‘ninguém’ o exerce. Ao contrário, é ainda mais assustador porque não se pode dirigir a palavra a esse ‘ninguém’ nem reivindicar o que quer que seja.” (A promessa da política, Difel, Rio de Janeiro, 2008, p. 149)
Empregado por “ninguém”, o trabalhador submetido ao algoritmo não tem a quem dirigir a palavra. Ele faz greve, mas a greve não é sentida como uma manifestação coletiva na porta da fábrica ou dentro dela.
Os entregadores de alimentos entraram em greve. As condições de trabalho deles são realmente deprimentes.
Os serviçais do algoritmo ficam dezenas de horas à disposição do empregador todos os dias, mas cada qual trabalha apenas algumas horas para receber mensalmente menos do que o salário mínimo. “Ninguém” foi identificado como o empregador contra quem esses trabalhadores protestaram. “Ninguém” foi confrontado pela imprensa em virtude das relações de trabalho que podem muito bem ser consideradas análogas à escravidão. Quem o Tribunal Regional do Trabalho intimará para instaurar o Dissídio de Greve? “Ninguém”?
Se um trabalhador morre na empresa, a empresa pode ser responsabilizada pelo fato. Quando um empregado algoritmizado morre, “ninguém” toma a providência adequada: a caixa de entrega e a máquina de débito é recolhida. O cadáver fica lá estendido no chão, porque “ninguém” poderá ser responsabilizado pela morte.
O algoritmo é um feitor de escravos impiedoso. Ele obriga o empregado a assumir o risco da atividade econômica, deixa-o várias horas sem fazer nada, mas quando o aciona é capaz de puni-lo caso ele atrase a entrega ou não a realize por qualquer motivo. “Ninguém” não se importa com as necessidades humanas dos seus trabalhadores. Se eles morrem… Bem. Esse problema pode ser resolvido virtualmente: outro entregador próximo ao local será acionado. O serviço de “ninguém” não pode parar. Ele é incapaz de chorar ou de se chocar com o sangue derramado no chão.
Lucro sem risco. Trabalho sem proximidade entre empregado e empregador. Punição sem qualquer mediação da justiça humana. Acidente fatal sem reconhecimento empresarial da humanidade da vítima. Hannah Arendt intuiu que o maior despotismo é aquele que se torna impessoal. Não existe impessoalidade maior do que aquela que é proporcionada pelos algoritmos. Eles banalizam o mal de uma maneira nunca antes imaginada.
Não é nem mesmo possível comparar o que está ocorrendo ao regime escravocrata. Um senhor de engenho podia suspender a punição imposta ao escravo segurando o braço do feitor encarregado de chicoteá-lo. A punição imposta pelo algoritmo é impessoal e instantânea. “Ninguém” certamente não tem qualquer interesse em alterar o funcionamento do algoritmo, pois isso poderá acarretar a minimização dos lucros.
O bem estar do escravo não era garantido pela legislação do Império. Todavia, ele era considerado um investimento patrimonial considerável. O proprietário do escravo tinha interesse em sua manutenção e reprodução. Se alguém mutilasse ou matasse o escravo de outra pessoa isso seria juridicamente relevante. A violação do direito de propriedade do senhor de escravos teria que ser reparada. Não só isso. O art. 266, do Código Criminal do Império considerava crime “Destruir, ou danificar uma cousa alheia de qualquer valor”.
“Ninguém” não se interessa pela mutilação ou pela morte do trabalhador algoritmizado. Ele é uma peça intercambiável sem qualquer valor específico que pode ser rapidamente substituída por outra escolhida de maneira impessoal pelo sistema. “Ninguém” não pode ser responsabilizado por acidentes graves e fatais que ocorrem nas ruas com os entregadores vinculados à sua plataforma virtual de entregas. Não foi “ninguém” que causou o acidente, muito embora ele puna a demora na entrega, obrigando o motoboy ou o ciclista a correr riscos que seriam desnecessários caso o tempo dela fosse maior.
Os escravos costumavam fugir e criar quilombos. Eles eram auxiliados por homens livres que se opunham a escravidão dispostos a correr o risco de sofrer a pena prescrita por “Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo fim” (art. 115, do Código Criminal do Império.
Como pode o trabalhador autônomo submetido à uma plataforma de internet romper os grilhões que o vinculam ao empregador impessoal? “Ninguém” faz a intermediação entre os entregadores e as entregas garantindo o menor custo do serviço que eles prestam. Portanto, as empresas que se servem da plataforma de internet não tem qualquer interesse em contratar os serviços dos entregadores que não estejam submetidos ao algoritmo.
Tudo bem pesado, podemos concluir que a situação do trabalhador algoritmizado pode ser considerada pior que a do escravo. Não existe saída para a situação dele sem a adoção de uma legislação que limite de maneira pró-ativa o uso de plataformas virtuais, responsabilizando os donos delas pelos acidentes e mortes ocorridas durante a relação de emprego. Os empregadores devem ser obrigados a remunerar os empregados pelo tempo que eles ficam à disposição sem serem ativados pelo algoritmo.
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O trabalho algoritmizado e suas consequências desumanas. Artigo de Fábio de Oliveira Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU