18 Junho 2020
Em uma coluna publicada em abril, no jornal The New York Times, intitulada “Por que os ricos temem as pandemias”, o historiador austríaco Walter Scheidel destacou que o novo coronavírus, como outras pragas anteriores a esta, poderia mudar o equilíbrio entre ricos e pobres. Assim o professor da prestigiosa Universidade Stanford revisita a polêmica tese de seu livro de 2017, “The Great Leveler: violence and the history of inequality from the Stone Age to the twenty–first century” [O Grande Nivelador: violência e historia da desigualdade, da Idade da Pedra ao século XXI], hoje, um best-seller.
É que Scheidel postula que o estudo das tendências de longo prazo na história prova que a desigualdade só se repara com fatos violentos. Em seu livro, aponta especificamente “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse” que abarcam este fenômeno: o colapso de grandes Estados, como a queda do Império Romano, as revoluções transformadoras, como a russa ou a chinesa no século XX, as guerras que acarretam uma mobilização massiva, como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e as pragas catastróficas, como a peste negra na Europa medieval.
Neste contexto, seria a pandemia de Covid-19 uma força niveladora? Para Scheidel, não possui essa dimensão. Ao contrário, a menos que a atual crise econômica provoque uma profunda perturbação, o coronavírus poderia fazer com que o mundo seja ainda mais desigual, destaca o historiador nesta entrevista.
A entrevista é de Fernando Fuentes, publicada por La Tercera, 15-06-2020. A tradução é do Cepat.
Esta pandemia pode se tornar um “grande nivelador” para a sociedade?
A atual pandemia é diferente, porque até mesmo no pior dos cenários, a pandemia de coronavírus matará uma proporção muito menor da população em comparação às grandes epidemias do passado. Como resultado, não haverá escassez de mão de obra e os salários dos trabalhadores comuns não aumentarão. Só por esta razão, não se tornará um nivelador verdadeiramente excelente. E até mesmo se a mortalidade fosse muito maior, como poderia ser em uma futura epidemia, a inteligência artificial e a automação poderiam absorver parte da escassez de mão de obra resultante e manter sob o valor do trabalho humano.
No entanto, a crise também tem o potencial de aumentar a pressão política a favor de uma mudança mais progressiva. Se a flexibilização quantitativa consegue manter as economias ativas e os avanços médicos nos permitem conter o vírus, podemos presenciar o retorno a alguma versão dos negócios como de costume, com todas as desigualdades arraigadas que isto acarreta. Mas se a crise for mais prolongada, se conduzir a uma depressão global ou se as vacinas demorarem muito, a miséria popular e o descontentamento podem alcançar níveis tais que as decisões políticas mais radicais podem se tornar mais atrativas ou inclusive inevitáveis. Isto poderia incluir intervenções tais como nacionalizações de indústrias privadas, esquemas de rendas básicas universais e uma tributação mais alta e progressiva dos ricos. Isto, por sua vez, poderia reduzir a concentração de renda e riqueza.
Segundo Ben Steverman, da Bloomberg, no momento, o roteiro mais óbvio do que vem após a pandemia de Covid-19 não é a peste negra, mas a Grande Recessão. No entanto, com a crise financeira de 2008, a desigualdade disparou para alturas não vistas desde inícios do século passado. É provável que este fenômeno aumente após a pandemia?
Em curto prazo, é provável que a pandemia aumente a desigualdade em vez de reduzi-la. Já estamos vendo brechas cada vez maiores entre os trabalhadores em setores relativamente estáveis e outros que suportam a pior parte dos confinamentos. O desemprego agora é distribuído de maneira mais desigual por renda e idade. Os estudantes que têm problemas para participar na instrução online, ficam para trás em relação aos lares mais ricos. E se a Grande Recessão de 2008-2009 é um guia, os investimentos dos ricos podem se recuperar mais rapidamente que os mercados de trabalho.
Precisamente, você disse que “para os ricos, a epidemia não será tão prejudicial”. Qual a sua avaliação da reação das elites mundiais, diante da atual pandemia? Vê uma reação diferente da esperada?
As elites mundiais dependem de uma combinação de medidas de alívio quantitativo e socorro, a curto prazo, para manter as economias ativas, gerir o desemprego e evitar o descontentamento e a agitação popular. As intervenções realizadas durante a Grande Recessão servem como modelo. Acredito que o objetivo das elites, a longo prazo, é desenhar uma volta a alguma versão do status quo. Estarão preparadas para acomodar certas modificações, por exemplo, algumas restrições limitadas à globalização, para reduzir a dependência de cadeias de fornecimento frágeis, mas não há boas razões para acreditar que a mudança transformadora seja parte de sua agenda. Isto não deveria ser uma surpresa, mas veremos se funciona.
Você escreveu: “Ainda que alguns comentaristas já tenham traçado o espectro de próximos distúrbios sociais, o registro histórico fala contra tais cenários, ao menos no que diz respeito aos países de altos ingressos”. Por que acredita que isso não ocorrerá?
Não podemos estar seguros de nada que esteja no futuro, mas na medida em que a história possa servir como guia, parece muito pouco provável que as sociedades de altos ingressos experimentem violentos distúrbios sociais ou revoluções. A riqueza massiva e a alta capacidade do Estado atuam como barreiras formidáveis para tais desenvolvimentos. Mas quanto mais baixo é o PIB, mais aumenta o potencial de um transtorno mais substantivo. Está bem estabelecido que, nos países em desenvolvimento, uma maior desigualdade aumenta o risco de colapso e guerra civil.
O Chile sofreu uma explosão social em 2019. E agora a pandemia agravou ainda mais a situação dos setores mais pobres. Como observa esta situação? Qual deveria ser a reação do governo?
Após ter transitado de um nível superior entre economias de rendas médias ao nível mais baixo das economias de rendas altas do mundo, enquanto mantinha altos níveis de desigualdade, o Chile ocupa uma posição precária. Como demonstram os acontecimentos recentes, não se deve subestimar o potencial de distúrbios violentos. Espera-se que os responsáveis políticos tomem os eventos do ano passado como uma chamada de atenção, para garantir o manejo da atual crise de forma que proteja os elementos mais vulneráveis da sociedade das consequências econômicas.
Em termos mais gerais, não há uma boa razão para acreditar que a tendência a uma menor desigualdade, observada em muitos países latino-americanos, durante a primeira década deste século, irá ser retomada logo. A crise do coronavírus fará com que isto seja ainda menos provável.
Antes da Covid-19, observou-se uma tendência dos países a fechar suas fronteiras, gerando temores sobre o futuro do multilateralismo. A globalização está ameaçada?
As crises geralmente atuam como catalisadores, amplificando e acelerando as tendências existentes. Espera-se que esta pandemia tenha um efeito similar. As críticas e a reação populista contra a globalização são anteriores a esta crise e podem muito bem se tornar mais fortes como resultado disto. Mas, ao mesmo tempo, a integração econômica global avança há muito tempo e é pouco provável que saia do trilho por este evento. Isto significa que deveríamos esperar ver compromissos que façam com que a globalização continue sendo politicamente aceitável para os eleitores.
Você reconhece o economista francês Thomas Piketty como uma fonte de inspiração. Mas não concorda com o argumento de seu livro mais recente, de que as ideologias são cruciais para determinar o tamanho da desigualdade. Por quê?
Concordo em que a ideologia desempenha um papel crucial na manutenção e legitimação da desigualdade, bem como esta pode contribuir para justificar a redução da desigualdade. Mas a desigualdade econômica foi extremamente resiliente, ao longo da história mundial, e se manteve em uma grande variedade de sistemas muito diferentes, das sociedades agrárias às economias de serviços pós-industriais. Por si mesma, é pouco provável que a ideologia altere a ordem enraizada e supere os interesses plutocráticos.
Dito isto, uma crise como esta tem o potencial de fazer com que certas ideias sejam mais atrativas para mais pessoas. No presente caso, isto pode aumentar o apoio aos programas de redistribuição, como os esquemas de renda básica universal. Mas depende muito da gravidade geral da crise em si, se é o suficientemente disruptiva para provocar uma mudança suficientemente grande em atitudes e preferências.
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“Por si mesma, é pouco provável que a ideologia altere a ordem enraizada e supere os interesses plutocráticos”. Entrevista com Walter Scheidel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU