16 Junho 2020
Pergunto a Gina Rippon, pesquisadora e professora de Neuroimagem Cognitiva da Aston University (Birmingham), como é possível que na época vitoriana os cientistas afirmassem que as mulheres não deveriam ir à universidade porque isso poderia prejudicar seu sistema reprodutivo. E me explica que no século XX as coisas não melhoraram, o cérebro feminino continuava sendo considerado muito pequeno e subdesenvolvido, mal organizado e inepto para a ciência. “Até mesmo em inícios do século XXI, contra o que nos mostram as imagens cerebrais, o neurolixo insiste nessa ideia de que os cérebros feminino e masculino são diferentes”. Em El gênero y nuestros cérebros (Galaxia Gutenberg), desmonta as falsidades sobre o chamado “cérebro feminino”.
A entrevista é de Ima Sanchís, publicada por La Vanguardia, 15-06-2020. A tradução é do Cepat.
Não existe nada que possa ser definido como cérebro masculino e cérebro feminino. Todos os cérebros são diferentes entre si. Seu cérebro é único.
Não tem gênero?
Há tantas diferenças entre os próprios cérebros masculinos e femininos, como entre um cérebro feminino e outro masculino.
Passamos séculos acreditando que eram diferentes.
Os neurologistas varões centraram suas pesquisas a partir dos papéis sociais de mulheres e homens. Os homens eram líderes, cientistas e exploradores, e as mulheres tinham uma posição inferior. A partir daí, buscaram formas de justificar o que fazia com que os cérebros das mulheres fossem inferiores.
Isso é o que ensinaram a você?
Na faculdade, estudei que o cérebro masculino e o feminino se organizavam de forma diferente. Foi assim até o século XXI, quando repensamos a questão.
Mas continuamos com isso de que nós, mulheres, não sabemos ler mapas.
Sim, porque em finais do século XX, esforçaram-se muito em fazer uma espécie de lista de compras de características que distinguissem homens e mulheres, desse modo, a história seguiu e foram publicados livros como Homens são de Marte, mulheres são de Vênus.
Todos best-sellers.
É uma ideia firmemente enraizada em nossa consciência, que recebeu muito apoio do que parecem pesquisas muito sérias. A ciência havia se fixado no objetivo de encontrar diferenças, mas quando tivemos um grande conjunto de dados cerebrais para comparar, vimos que não havia um argumento coerente, as diferenças se dão entre cérebros.
Mesmo assim, a neuroimagem não apagou a teoria da diferença.
Pelo contrário, deu origem ao neurolixo, muito difundido pelos meios de comunicação. Enquanto começamos a ter essas imagens preciosas do cérebro, houve uma onda de artigos e livros de divulgação que destacavam onde está o ponto de Deus ou do chocolate. Livros e teorias muito acessíveis e apetitosos.
Os primeiros a dar a informação foram os próprios cientistas.
Os preconceitos estão muito enraizados, mas algo que a neurociência do século XXI está mostrando é a plasticidade cerebral: o cérebro muda em função do propósito para o qual o treinamos e do que acontece a nosso redor.
Dizem que o cérebro masculino e o feminino começam a se diferenciar no embrião.
Um embrião exposto a grandes níveis de testosterona o torna masculino. Há quem afirme que essa química também afeta o cérebro, mas se nos fixamos nos cérebros dos recém-nascidos, acontece o mesmo do que com o dos adultos: não há diferenças claras, exceto o tamanho, que é proporcional ao corpo.
Não existe base biológica no fato de que as mulheres se deprimam mais que os homens e os homens assassinem mais que as mulheres?
Em meu trabalho, vimos que os processos relacionados à autoestima são biológicos e culturais. É uma rua de mão dupla.
Conte-me.
Entre os criminosos agressivos, 95% são homens, e isso tem muito a ver com a forma como a sociedade permite aos indivíduos expressar sua ira. A depressão é uma forma de violência que se volta contra você mesmo, ao passo que a agressão é a manifestação extrema da ira.
A porcentagem de homens que sofrem Parkinson é imensa.
Os homens estão mais expostos a toxinas e recebem mais golpes na cabeça pelo tipo de esportes que praticam. Novamente, entrelaçam-se biologia e experiências sociais.
Então, são as nossas experiências que possuem gênero?
Sim, um mundo de gêneros marcados, cria cérebros com o gênero marcado. O inato e o adquirido são indissociáveis. Nossos cérebros mudam ao longo de nossa vida e não só na etapa de crescimento.
Isso é muito libertador.
Afirmava-se que as meninas se saem mal com a habilidade espacial, até que se fez um experimento. Colocou-se um grupo de meninas para jogar Tetris, durante três meses, e ficou comprovado como melhoravam suas capacidades cognitivo-espaciais, na medida em que ganhavam habilidade no jogo.
O sexismo é fomentado desde o berço?
Sim, sabemos que os recém-nascidos respondem de forma imediata aos estímulos sociais e sua vida está cheia de estereótipos de gênero.
As mães afirmam que seus filhos varões se lançam para brincar com os carros.
... E que as meninas inexplicavelmente se lançam ao rosa e a querer ser princesas. Mas isso é o que as rodeia nas creches, nos desenhos, nos anúncios, nos filmes...
A saída é difícil, então.
É muito importante a informação, que as pessoas saibam que suas habilidades vão além dos estereótipos. Eu trabalho com colégios para promover as mulheres na ciência, em um mundo que não se orgulha de suas cientistas.
A visão sobre as coisas é essencial.
Exato, por isso devemos olhar o cérebro de uma maneira diferente, só assim avançaremos.
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“Nem de Vênus, nem de Marte: cada cérebro é único nesta Terra”. Entrevista com Gina Rippon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU