21 Mai 2020
"A solidariedade como estilo de construção da história significa que a solidariedade deve se tornar a alma da revolução a ser planejada; médicos e enfermeiros generosos não são suficientes, mas é preciso um mundo direcionado a construir a felicidade do outro como finalidade da própria vida. O cuidado do outro é a obra-prima que pode dar sentido às existências: e isso em todos os níveis, a partir da família, para chegar aos mais altos níveis políticos e econômicos. Todo conflito deve ser aplainado, porque somente juntos, como para a questão ambiental, sairemos dessa tragédia", escreve Matteo Prodi, publicado por Settimana News, 20-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para construir um povo em paz, justiça e fraternidade, assumindo as contradições e antinomias presentes na sociedade como energia para a mudança, o atual pontífice pede para se referir aos quatro princípios propostos na Evangelii gaudium, mas elaborados em seus ensinamentos pelo menos desde 1984[1]. Gostaria de tentar aplicá-los à situação que a atual pandemia causou. Não é fácil, inclusive porque Bergoglio não ensina como usá-los[2].
Essa pandemia restabeleceu a primazia do espaço sobre o tempo, sobretudo em nossas existências pessoais: confinados em casa, vivemos e continuamos a viver dias uns iguais aos outros; a sensação é a do hamster girando sem parar em sua roda. Assim, experimentamos o limite e perdemos de vista a plenitude.
Para interpretar o tempo presente, uma frase é decisiva: "Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre para o futuro como a causa final que atrai"[3]. Em uma tragédia incalculável, com mais de 30.000 mortes somente na Itália[4], ninguém consegue garantir um futuro livre de contágios, no aguardo de uma messiânica vacina. A restrição e, às vezes, a solidão das casas rouba o amanhã. O primeiro princípio fala apropriadamente do tempo como luz, como horizonte para superar os limites, como utopia que se torna causa final que atrai.
A utopia, "só pode nascer quando, com a transição para a modernidade, surge a possibilidade de projetar uma sociedade alternativa à dominante e de lutar por sua transformação em realidade".[5] Seria necessário repensar a profecia, isto é, a crítica radical que a palavra revelada derrama contra os poderes e os poderosos e nos perguntar o que quer dizer hoje profecia.
Devemos recuperar a palavra revolução, palavra decisiva para a história do Ocidente, tanto que sobre ela construiu a sua fortuna e sua ausência está decretando seu declínio.[6] Justamente esse evento inesperado (até certo ponto inesperado)[7] mostra nossa fragilidade e incapacidade de transformá-lo, de revolucioná-lo. Onde encontramos um pensamento revolucionário? A história poderia nos ensinar alguma coisa, mas repudiamos as três palavras da Revolução Francesa, especialmente no se reforço mútuo. Alguns absolutizaram a liberdade, outros a igualdade; todos esqueceram a fraternidade.
É interessante ler o documento sobre a Fraternidade humana, assinado pelo Grande Imam de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb e pelo Papa Francisco: a fraternidade aparece, mas também liberdade e igualdade. O isolamento a que somos forçados pode nos levar para as três palavras da Revolução Francesa, para horizontes mais amplos. Nos espaços fechados de nossas salas, precisamos aprender com os enclausurados, para quem se retirar significa abrir-se para a eternidade de Deus. Somente reivindicamos a possibilidade de voltar a ocupar espaços, já abundantemente esvaziados.
A Igreja e a política precisam redescobrir o gosto de tempos longos, do início de processos rumo a compreensão da plenitude do ser humano: é necessário "criar processos que construam um povo, mais que obter resultados imediatos que produzam uma renda política fácil, rápida e efêmera, mas que não constroem a plenitude humana. A história talvez possa julgá-los com aquele critério que Romano Guardini enunciava: ‘O único modelo para avaliar com sucesso uma época é perguntar até que ponto se desenvolve nela e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da própria época’".[8]
O vírus é um inimigo invisível e não sabemos muito bem como combatê-lo. Arriscamos nos matar um ao outro, tentando atingir a ameaça com ferramentas inadequadas. Uma crise tão delicada pode desandar em conflitos, em vez de trazer a unidade. Vamos tomar como exemplo a Itália e as medidas tomadas pelo governo e pelas regiões.
A Constituição prevê a articulação territorial para sermos mais próximos das pessoas, não para minar a unidade da nação, a solidariedade que une do sul ao norte. Mas todos esqueceram que a profilaxia internacional é uma competência estrita do Estado, não das Regiões (art.117q; no art.120, o Estado pode substituir as Regiões para a segurança das pessoas; para as epidemias, é responsável o Ministro da Saúde).
A Itália se despedaçou; de pouco serve cantar o hino nacional nas varandas. Não estamos falando dos cenários geopolíticos, nos quais o vírus serviu para aumentar as contraposições e para esquecer o simples fato de que dessa crise só se pode sair juntos. Acrescentamos as tentativas de muitos de enriquecer, prejudicando a coletividade. Em suma, a bela retórica segundo a qual sairemos melhores, pode permanecer um exercício de pura retórica. Também demos um jeito de nos encontrar na encruzilhada trabalho ou saúde, que havíamos jurado, graças ao antiga ILVA de Taranto, evitar absolutamente. Muita solidariedade também foi vivida, mas não construímos um mundo solidário. Eventos traumáticos recentes serviram às elites para consolidar seu poder e suas riquezas.[9]
Portanto, não é dado como certo que o refrão tudo vai ficar bem se concretize. Muito pelo contrário. Os líderes atuais saberão interpretar corretamente seu papel? Saberemos cuidar dos outros? Hoje estamos muito comovidos com a dor, apenas porque agora também é nossa, nossa e de nossos vizinhos e parentes? Ninguém disse que tudo ficará bem para as emergências de migrantes ou na guerra na Síria. Isso não é amor político, mas egoísmo social. O Covid-19 devia nos lembrar que "é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.”[10]
A solidariedade como estilo de construção da história significa que a solidariedade deve se tornar a alma da revolução a ser planejada; médicos e enfermeiros generosos não são suficientes, mas é preciso um mundo direcionado a construir a felicidade do outro como finalidade da própria vida. O cuidado do outro é a obra-prima que pode dar sentido às existências: e isso em todos os níveis, a partir da família, para chegar aos mais altos níveis políticos e econômicos. Todo conflito deve ser aplainado, porque somente juntos, como para a questão ambiental, sairemos dessa tragédia.
O terceiro princípio é simples e peremptório: “Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma"[11].
Nestes últimos meses, a correlação entre realidade e ideia percorreu caminhos divergentes. Algumas ideias remodelaram nossa maneira de viver de um momento o outro. Não se discute sobre a validade ou não das ideias. O fato é que a ideia dominou o real. Para a Itália, basta pensar nos vários DPCMs, cujo conteúdo variou ao longo dos dias, cuja complexidade criou desnecessárias desorientações, onde a política foi substituída pelo pensamento de cientistas: são eles que ditam as diretrizes para as nossas vidas.
As ferramentas para enfrentar a realidade foram entregues em modalidades absolutamente novas e com efeitos dificilmente mensuráveis. Depois de enfatizar o heroísmo dos professores que ensinaram a distância (além do heroísmo das famílias que tiveram que conseguir conexões, dispositivos etc.), algo aconteceu na didática. Especialmente em crianças menores, o ensino não pode ser separado de uma corporeidade afetuosa. Nenhuma explicação substitui o carinho de uma professora que nos convida a tentar novamente diante de um problema que parece não ter soluções.
Finalmente, o real exigiu novos paradigmas e perspectivas. Para os trabalhos agrícolas que ficaram sem mão-de-obra, agora está se pensando fazer anistias e regularizações de imigrantes. Conversões radicais ocorreram na Europa sobre questões de dívida pública e o papel do Estado na economia. Quando a realidade pressiona, só podemos sentir a necessidade de pensamentos revolucionários que ajudem o verdadeiro desenvolvimento.
Portanto, o papa está certo quando diz: "A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade”.[12]
A realidade e a compaixão que podemos experimentar diante dela devem nos levar a reelaborar nossos esquemas para o futuro. Nisso tem um papel decisivo a teologia que deve construir para a Igreja “em saída”, lugares onde começar a “'mudar o modelo de desenvolvimento global e redefinir o progresso: o problema é que ainda não dispomos da cultura necessária para enfrentar esta crise e é necessário construir uma liderança que indiquem caminhos.”[13] O Covid-19 torna isso urgente e necessário.
“Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha cotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra."[14].
Durante anos, a globalização tem sido apresentada como o remédio para todo mal; na realidade, apenas os ricos tiraram vantagem, enquanto bilhões de pessoas entraram em competição com os trabalhadores no mundo ocidental, fazendo com que os salários despencassem e as proteções desaparecessem, fazendo declinar o Estado nacional.
Esses meses de pandemia impõem um reequilíbrio. Clínicos gerais e hospitais de referência têm sido fundamentais na proteção da saúde, mas a cooperação global, que teve algum crescimento em algumas áreas, também é importante. Na economia, "o impulso para a hiperglobalização no comércio e nas finanças, que visava criar mercados mundiais perfeitamente integrados, acabou despedaçando as sociedades em nível nacional".[15]
Somente escolhas políticas de outro tipo, capazes de ouvir as vocações econômicas locais e de ligar as várias regiões de maneira construtiva, podem nos tirar do túnel. Mas temos pouca esperança nos líderes atuais.
O papa, falando do quarto princípio, lança a belíssima imagem do poliedro: a relação entre todos os cidadãos do mundo deve permitir que todos vivam e aprimorem sua própria especificidade, sem a homogeneização que poderia ser evocada pelo modelo de esfera. É crucial que cada um possa dar sua própria contribuição; só assim se constrói o povo (palavra-chave para entrar no mundo-Bergoglio) em paz, justiça e fraternidade palavras que só têm significado se projetadas em nível global, mas profundamente enraizadas na vida concreta das pessoas.
Os quatro princípios do Papa Francisco podem nos ajudar a construir um pensamento novo, revolucionário, construtivo e contagioso para o futuro do nosso mundo. O pensamento de Bergoglio é tão sólido e prático que não precisa de defesa. Essas reflexões desejam ser um estímulo para manter isso presente em nossos sonhos. A Carta do Santo Padre aos movimentos populares (12 de abril de 2020) confirma que essas são as perspectivas sobre as quais se encaminhar.
Antes de tudo, é necessário mudar o paradigma; e o papa diz: "Espero que os governos entendam que os paradigmas tecnocráticos (que colocam o estado ou o mercado no centro) não são suficientes para enfrentar esta crise ou outros grandes problemas da humanidade".[16]
Então devemos ter em mente o objetivo: "Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”[17] Finalmente, o grande segredo é transformar a crise em um bem a ser compartilhado: "Vocês conhecem crises e privações ... que com modéstia, dignidade, comprometimento, esforço e solidariedade conseguem transformar em uma promessa de vida para suas famílias e comunidades".[18] Vamos transformar o mundo, esperando que os quatro princípios do Papa Francisco possam se tornar virais!
[1] Para um estudo dos quatro princípios, remeto a M. Prodi, “Fonti, metodo e orizzonti di papa Francesco a partire dai quattro principi. Applicazioni per l’oggi”, in F. Mandreoli (ed), La teologia di papa Francesco. Fonti, metodo, orizzonti e conseguenze, EDB, Bologna, 2019.
[2] Eles, por exemplo, estão presentes no raciocínio de Laudato si ', mas não são o elemento estruturante. São mencionados quase marginalmente.
[3] EG 221.
[4] Vale lembrar, por exemplo, que as mortes pelo terremoto de L'Aquila foram pouco mais de 300.
[5] P. Prodi, Profezia, utopia, democrazia, in M. Cacciari, P. Prodi, Occidente senza utopie, il Mulino, Bologna, 2016, 27.
[6] Cf. P. Prodi, Il tramonto della rivoluzione, il Mulino, Bologna, 2015.
[7] Cf. por exemplo, os livros sobre o risco por U. Beck, publicado há alguns anos.
[8] EG, 224.
[9] Cf. N. Klein, A Doutrina Do Choque. A Ascensão Do Capitalismo Do Desastre, Nova Fronteira, 2009.
[10] EG,
[11] EG 231.
[12] EG 232.
[13] VG 3.
[14] EG 234.
[15] D. Rodrik, Dirla tutta sul mercato globale. Idee per un’economia mondiale assennata, Einaudi, Torino, 2019, pag. 260.
[16] Carta do Santo Padre aos movimentos populares, 12 de abril de 2020.
[17] Ivi.
[18] Ivi.
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