25 Abril 2020
"O vírus é imparcial, mas somos desiguais: e a pandemia acentua nossos atrasos. É esse desequilíbrio que questiona a política, porque faz parte da emergência. Com um único ponto a favor de nosso país, além da generosidade daqueles que trabalham para salvar os outros: o estado de bem-estar, instrumento da civilização, que deverá ser tirado da lógica do mercado", escreve o jornalista italiano Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica, em artigo publicado por La Repubblica, 22-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
O vírus é imparcial, mas somos desiguais e a pandemia acentua nossos atrasos. Esse desequilíbrio desafia a política porque faz parte da emergência. Justamente o caráter universal da pandemia, que se movia de maneira indiferente e imparcial nas partes altas e baixas da sociedade, entre a elite e o povo, havia contribuído para construir esse sentimento de solidariedade geral que o país não estava mais acostumado a reconhecer a si mesmo ou, pelo menos, aquela sensação de compartilhamento diante do perigo comum que gera uma coesão social inesperada. Parecia que havíamos nos tornado todos iguais, porque todos igualmente expostos na mesma fragilidade humana, prisioneiros do mesmo grau de impotência diante do mal.
Na realidade, aquele sentir comum e aquele espírito compartilhado surgiram em grande parte do medo e da necessidade natural de compartilhar com os outros a preocupação com o assédio do vírus, para não sentir sozinhos todo o seu peso: ainda mais quando, devido às medidas necessárias do distanciamento social, membros distantes da família, amigos e colegas de trabalho não podiam se encontrar como de costume. O apoio da relação próxima, da troca face a face foi substituído pelo conforto de uma condição geral compartilhada, que parecia anular as desigualdades sociais, econômicas e de papéis. Apenas uma diferença resistia e prevalecia, sem precedentes para a estrutura familiar da nossa sociedade: aquela entre os jovens, poupados da infecção e os idosos, precipitados repentinamente e todos juntos na categoria socio-sanitária de velhos, vítimas designadas e talvez até mesmo predestinadas.
Nascido do pânico, esse esquema consolador não conseguiu aguentar a realidade. Sobretudo diante da crise, que independentemente de como se apresente, é sempre um ator social de primeira linha, capaz de subverter os equilíbrios: ou pelo menos de radicalizar os desequilíbrios latentes no corpo social, levando à explosão das contradições internas que a suposta normalidade dificilmente regulava. Vimos que a grande crise econômico-financeira de uma década atrás atuou na escala das desigualdades existentes, transformando-as em exclusões. Hoje a crise da saúde gera um desafio entre a vida e a morte, portanto, acrescenta uma descompensação emocional, um contragolpe instintivo, um reflexo primitivo que afunda no primordial e no irracional. Afinal, o Quarto Cavaleiro do Apocalipse, quando o quarto selo foi aberto, apareceu em um cavalo esverdeado que carregava a Peste e a Morte "atrás dele vinha o inferno".
Hoje, o primeiro impulso da crise da pandemia faz precipitar uma parte do país da precariedade para a pobreza. De fato, as duas condições estão mais entrelaçadas do que nunca. Tínhamos aceitado por força da situação a precariedade como uma nova forma de proletariado, mudando a morfologia do trabalho, com os pais que saíam jovens da produção ativa, os jovens que entravam tardiamente, uma fatia de trabalhadores empregados reduzida, uma geração ou quase expulsa no alto, outra embaixo que estava se preparando para um amanhã em que nunca teria conhecido a aposentadoria. Hoje, o bloqueio da produção amplia a incerteza e a dúvida sobre o amanhã para uma parte da população que até ontem se considerava uma classe produtiva, porque tinha uma função nas mãos e um emprego. A insegurança do emprego dos funcionários, o cálculo do trabalho perdido para as pequenas empresas próprias, as incertezas no reinício de todas as empresas restringem o horizonte das famílias. Ao reduzir a renda, que também se torna precária, se reduzem os consumos e a espiral de empobrecimento ameaça apertar o país.
Três valores dão uma primeira dimensão do fenômeno. Nos primeiros seis meses do ano, o PIB marca uma redução de 15%, um nível de economia de guerra, que pode levar a um declínio na renda nacional entre 7 e 9% no final de 2020. Nas contas de final de ano, faltarão ao estado 26 bilhões de receitas tributárias, enquanto os municípios apenas no mês de março perderam 600 milhões em impostos e receitas tarifárias. Os pedidos de abonos de salário atingiram 2,9 milhões, enquanto um milhão e setecentos mil trabalhadores pediram o valor previsto para essa emergência para funcionários de empresas que não participam do sistema de abono.
É uma situação comum a todas as economias desenvolvidas, com o último relatório da Oxfam prevendo meio bilhão de pessoas mais pobres no mundo e um salto para trás de trinta anos na luta contra a pobreza absoluta. Na Itália, as estimativas falam de 10 milhões de possíveis novos pobres, que desde o bloqueio não receberam mais salários e não sabem se o receberão na reabertura, e estão na fila diante da burocracia para as redes de apoio social, que serviriam para o momento imediato. Mas fora dos cálculos, falam claramente as filas sem distanciamento social diante dos letreiros das Caixas de Penhores, o boom das chamadas às organizações de caridade para as cestas alimentares, as filas nos refeitórios dos pobres, as respostas reveladoras dos italianos à mais recente pesquisa Demos Unipolis: 91% estão dispostos a trocar cotas de liberdade por cotas de segurança diante de uma pandemia que, para a grande maioria, durará meses, 47% suspenderam suas atividades de trabalho ou trabalham em casa, 96 por cem evitam sair. Mas depois os medos tomam forma, e todos dizem respeito ao espectro do empobrecimento. De fato, 53% estão preocupados com o futuro de seus filhos, 44 com a perda do trabalho, 42 com o risco de não ter uma aposentadoria, 38 com medo de perder a poupança e 39% confessam abertamente a angústia "de não ter dinheiro suficiente para viver".
É a nova infecção da pobreza, o limiar em que uma parte da Itália está afundando agora. Mas, além da renda, há outro indicador de empobrecimento social, e é o nível das desigualdades. A reproletarização em curso de uma parte da classe produtiva e o impacto da pandemia atuam sobre as diferenças sociais, transformando-as em desigualdades, e tudo isso pressiona sobre as disparidades existentes, precipitando-as em descompensação geral. Se o trabalho "formal" e regular está em crise, vamos nos perguntar o que acontece com os 4,2 milhões de pessoas no sul que trabalham “se virando” no trabalho informal. Se a emergência sanitária entra em caos devido ao ataque de coronavírus, vamos pensar nos doentes de outras patologias, no ritmo alterado das quimioterapias e nos check-ups, nas listas de espera que de ordinárias se tornam extraordinárias. Vamos refletir sobre o medo do vírus nas prisões italianas, lotadas a ponto de contar 121,75 prisioneiros para cada 100 lugares regulares e já com 94 infectados nas celas, além de 204 agentes. Vamos pensar sobre os migrantes irregulares, cobaias-fantasmas nas favelas ilegais que os expõem à infecção. Não vamos esquecer os 50.000 desabrigados, nas mãos de médicos voluntários que vão procurá-los nas entradas dos bancos onde dormem, para medir a febre à noite. E, finalmente, ressurgindo além da linha da pobreza, vamos analisar a ilusão da escola em rede igual para todos, com um terço das famílias que não têm computadores em casa, e no sul a situação é ainda pior.
O vírus é imparcial, mas somos desiguais: e a pandemia acentua nossos atrasos. É esse desequilíbrio que questiona a política, porque faz parte da emergência. Com um único ponto a favor de nosso país, além da generosidade daqueles que trabalham para salvar os outros: o estado de bem-estar, instrumento da civilização, que deverá ser tirado da lógica do mercado.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A infecção da pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU