19 Abril 2020
Para Agamben, o bem e a liberdade são conceitos sem nuances, sem mediações, sem graus. Um maximalismo do bem e uma totalização da liberdade só produzem escândalo sem experiência. Que se reforça ainda mais no escândalo quando não pode se permitir nenhuma experiência.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Come Se Non, 17-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde o início desta triste temporada de "pandemia", percebi que Giorgio Agamben estava interpretando os fatos – ou, talvez melhor, alguns aspectos dos fatos – de um modo original demais.
Agora, com este artigo publicado em Settimana News, 16-04-2020, "Uma pergunta", compreendi totalmente onde está o problema da sua pergunta.
Mas vamos por ordem: reconstruamos a “sua” pergunta, busquemos o seu significado e confrontemo-la com outra pergunta.
Desde as primeiras linhas, Agamben esclarece qual é a pergunta que o mantém agitado há mais de um mês. Ei-la: “Como é que um país inteiro, sem se dar conta disso ética e politicamente, pôde desmoronar diante de uma doença?”.
Com esse desmoronamento, a Itália teria ultrapassado o limite entre humanidade e barbárie. A pergunta, portanto, é: “Como pudemos nos tornar bárbaros?”.
E a barbárie consiste, para Agamben, em três coisas: na morte e no enterro sem funeral de tantos homens e mulheres; na concessão de limitar o nosso movimento e as nossas amizades e amores; em ter confiado à medicina a separação entre vida biológica e vida espiritual.
Tudo isso, diz Agamben, ocorreu “somente em nome de um risco que não era possível especificar”. E esse “princípio de distanciamento social” se tornará “o novo princípio de organização da sociedade”. Portanto, “aquilo que se aceitou sofrer não poderá ser cancelado”.
Segundo Agamben, todos somos responsáveis por essa “concessão”, mas, principalmente, dois sujeitos que não teriam vigiado sobre a dignidade do ser humano. Acima de tudo, a Igreja, que se tornou “serva da ciência”, que é a nova religião, e, por isso, Agamben recorda à Igreja que Francisco, não o papa, mas o santo, abraçava os leprosos, que “visitar os doentes” é uma obra de misericórdia, e que se abandonarmos o próximo, se perderá a fé.
Mas os juristas também têm as suas culpas, por terem deixado que o poder executivo substituísse o poder legislativo, determinando um desvio despótico. Com o temor de que o “estado de exceção” se mantenha para sempre. E depois de lembrar como Eichmann, o famoso nazista, cometera os mais terríveis crimes dizendo que obedecia à lei moral, ele encerra o seu artigo com esta frase esclarecedora: “Uma norma que afirme que se deve renunciar ao bem para salvar o bem é tão falsa e contraditória quanto aquela que, para proteger a liberdade, impõe que se renuncie à liberdade”.
A pergunta, assim como formulada por Agamben, impõe uma interpretação dos fatos absolutamente unívoca. Com efeito, se houvesse uma situação de alguma incerteza, uma vaga sensação de perigo e um governo decidisse confiar aos médicos todo poder, de fechar em casa uma nação inteira e de separar drasticamente os vivos dos mortos, subtraindo os segundos do controle do primeiros e “descartando-os” da maneira mais desumana, Agamben certamente poderia levantar o seu grito escandalizado e pedir a todos, acima de tudo à Igreja e aos juristas, que voltassem a si mesmos, que não traíssem a sua vocação e missão.
Pois bem. Todo esse cenário está subordinado, porém, a uma hipótese que não leva em conta a dura realidade. Porque essa pergunta, se formulada assim, parece precisamente uma pergunta retórica, uma pergunta vazia, uma pergunta aérea. Poque os três “escândalos” – os falecidos sem funeral, as ausências de liberdade e a imposição dos cuidados de saúde – não são, acima de tudo, a “estratégia ilusionista para realizar um golpe de estado”, de forma alguma podem ser remetidos àquilo que Agamben, com uma fórmula que é um eufemismo chamar de redutiva, definiu como uma ação realizada “apenas em nome de um risco que não era possível especificar”.
Tenho uma impressão aqui: desde o início desta história, quando os seus contornos e a sua gravidade ainda não eram totalmente claros, Agamben adotou esta linha de leitura: é uma forçação institucional, não há nada de sério, confunde-se uma gripe com uma peste... Naquele momento, essa podia ser considerada uma imprudência, mas apenas no início, como ocorreu com outros, e até se podia deixar passar. O ponto, porém, é que hoje Agamben continua trabalhando com essa “premissa maior” da sua argumentação.
O seu silogismo, assim, tornou-se o mais falacioso e o mais vazio de toda a história da filosofia. O filósofo deveria saber bem que, se, no início do raciocínio, coloca uma premissa falsa, todo o restante das suas palavras desmorona como um castelo de cartas. Se tudo o que ocorreu, mesmo nas suas formas mais trágicas, é lido à luz de uma “ficção” – a ausência de um perigo real para a vida de dezenas de milhares de pessoas – é óbvio que contenção, isolamento, distanciamento, cuidados de saúde e “leitura médica” da realidade resultam ser apenas forçações, atos arbitrários, imposições do estado de exceção, estar à beira da barbárie.
A pergunta a ser levantada por um filósofo em uma contingência como esta não pode se basear em uma premissa falsa. Como vimos, no texto de Agamben, parte-se da pergunta que é formulada imediatamente, nas primeiras linhas. Depois, ilustram-se os conteúdos, e o autor é forçado a jogar sobre a mesa a sua “carta falsa”. Por fim, chega-se à conclusão, e é aí que compreendemos a maior fraqueza da sua argumentação.
De fato, quando ele escreve que “uma norma, que afirme que se deve renunciar ao bem para salvar o bem, é tão falsa e contraditória quanto aquela que, para proteger a liberdade, impõe que se renuncie à liberdade”. Precisamente aí, nessa frase final, entende-se tudo.
Para Agamben, o bem e a liberdade são conceitos sem nuances, sem mediações, sem graus. Um maximalismo do bem e uma totalização da liberdade só produzem escândalo sem experiência. Que se reforça ainda mais no escândalo quando não pode se permitir nenhuma experiência.
Por isso, a pergunta certa seria: “Como é que um país inteiro, embora sofrendo ética e politicamente, pôde conseguir se manter de pé diante de uma epidemia tão grave?”.
Não é por acaso que, no olhar de Agamben, são precisamente a Igreja e os juristas que são colocados no banco dos réus. Aqueles que aparecem no seu texto como “traidores”, na realidade, sabem há milênios que, na história, em toda história, existe um bem máximo e um bem possível. E que a história é precisamente a difícil mediação, sofrida e provisória, entre esses polos. Também na nossa história destes dias, contanto que se aceite o princípio de realidade – ou seja, a efetiva periculosidade do vírus –, é preciso “equilibrar” níveis diferentes do bem. Só nesse caso é que pode ser razoável e até um ato abençoado renunciar a um bem para alcançar outro, renunciar a uma liberdade para garantir outra mais importante.
Obviamente, nem tudo o que ocorreu é desprovido de limites, de questões ou de perguntas muito legítimas. Mas est modus in rebus. A frase que conclui o texto de Agamben – tão drástica e, no fundo, tão desumana – permanece totalmente cega a esse lado sincero e preciso da mediação, da qual são ricas as grandes tradições, incluindo a eclesial e a jurídica.
E, embora essas sabedorias milenares pareçam garantir uma abertura que pode ser capaz de continuar sendo “mestra em humanidade”, a leitura ideológica e conjectural de Agamben aparece apenas como a expressão carrancuda demais e nostálgica demais de uma infância destinada a permanecer sempre sem história.
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Agamben e a pergunta equivocada. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU