17 Abril 2020
Os mais ricos tentam apresentar-se como promotores de “obras sociais” – mas comemoram ampliação de mecanismo semi-secreto, que lhes garante sonegar em massa e impunemente. Bolsonaro participa da farra – denunciada até por Moro.
O artigo é de Ricardo Fagundes da Silveira, auditor Fiscal da Receita Federal, mestre em Sociologia Política pela UFSC, bacharel em Ciências Contábeis pela PUC/MG e bacharel em História pela UFSC, publicado por Outras Palavras, 15-04-2020.
Em meio ao alastramento da covid-19, dois fatos – um de sentido oposto ao outro – expuseram, esta semana, a alma dividida do 0,1% mais rico no Brasil. Na terça-feira (14/4), começou de forma coordenada uma grande campanha na mídia para exaltar as supostas “obras sociais” das corporações e famílias bilionárias. O momento de luxo foi, é claro, o Jornal Nacional, com sua audiência incomparável. Naquela noite, ao menos quinze longos minutos foram dedicados às “boas ações das empresas”. O primeiro lugar no pódio — oh, surpresa! – coube ao Banco Itaú e à família Setúbal, que garganteiam ter ofertado R$ 1 bilhão à luta contra a pandemia. O montante foi confiado, é claro, ao Hospital Sírio e Libanês, um dos mais elitistas de São Paulo… Mas ao longo do jornal sobraram homenagens também para os recém-chegados à nata de “beneméritos”. Na categoria, destacou-se o iFood, que foge de toda responsabilidade legal por seus entregadores, mas teria destinado R$ 7 milhões para… “ampará-los”!
O outro fato, muito menos difundido mas imensamente mais relevante, veio cerca de 24 horas antes. Em 13/4, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Medida Provisória 899-2019. Proposta por ele próprio em outubro de 2019, tramitou no Congresso sob silêncio da mídia e sem jamais ser debatida com a sociedade. Estabelece uma “novo Refis”– mais uma das inúmeras rodadas de renegociação da dívida tributária das grandes empresas, invariavelmente “recompostas”. Contém, além disso, um dispositivo inédito – que não fazia parte da proposta inicial de Bolsonaro mas foi aceito alegremente pelo capitão. Um artigo, ao qual o ministro Sérgio Moro resistiu em vão, altera (para muito pior) a composição do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Criado há cerca de cem anos, este órgão da Receita Federal é quase ignorado pela esmagadora maioria dos brasileiros. Há razões para isso. Trata-se de um tribunal semi secreto, no qual são perdoadas, ou proteladas a perder de vista, as dívidas fiscais dos grandes grupos econômicos e famílias ricas do Brasil.
Uma pequena brecha sobre o CARF, aliás, foi aberta na mídia a partir de março de 2015 – e logo se fechou. Por alguns meses, uma operação deflagrada pela Polícia Federal, e denominada Zelotes, revelou que grandes bancos e empresas compravam votos no conselho, para obter decisões favoráveis a seus interesses – e contrárias ao Estado brasileiro. Mas rapidamente, como tornou-se comum no Brasil, o assunto ganhou status de escândalo – garantia de que renderá manchetes por algum tempo, mas nada de efetivo será alterado.
No ano passado, porém, algo mudou. O auditor fiscal Ricardo Fagundes da Silveira fez, pela primeira vez, um estudo abrangente sobre as decisões do órgão. O trabalho tem status acadêmico. Ricardo foi orientado pelo rigoroso (porém valente) Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). As conclusões a que chegou são espantosas, pelo que revelam sobre o sistema tributário brasileiro[1]. Entre 2013 e 2017 – foram “julgadas” pelo CARF autuações fiscais cujo valor atingiu R$ 727 bilhões. É como se, a cada 60 horas – noite e dia, ao longo de cinco anos, sem parar nem nos fins de semana e feriados – as políticas públicas brasileiras ganhassem ou perdessem um valor equivalente à “caridade” do Banco Itaú, que mereceu holofotes de 15 minutos de Jornal Nacional.
Quais foram os resultados destas “disputas”? O trabalho de Ricardo Fagundes é preciso e eloquente. Eis as principais conclusões:
> A disputa média dura 9 meses e 16 dias. Ou seja, as grandes empresas e bancos entram no CARF sabendo que poderão protelar por este período o pagamento de impostos não pagos – e cobrados em autuações de auditores da Receita Federal.
> Porém, mesmo após transcorrido este longo período, apenas 3,74% das dívidas tributárias originais são efetivamente pagas à União. Em outras palavras, o CARF permite que os maiores grupos econômicos do país deixem de pagar 96,24% das autuações que recebem, por sonegação de impostos.
> Quando se observa o quadro com lupa – ou seja, discriminando por valor do débito fiscal, o caráter de classe o Conselho fica ainda mais nítido. Quanto maior é a autuação (ou seja, a provável sonegação), mais chances o sonegador tem… de ganhar! Os pequenos devedores da Receita normalmente perdem as disputas (são derrotados em 80% das decisões que envolvem valores de até R$ 5 mil). Mas o gráfico abaixo revela que… o CARF protege exatamente quem deve mais!
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Glamour, caridade e… sonegação! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU