Os temas mencionados pelo papa Francisco em audiência com os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, proferido no dia 15-11-2019, no Palácio Apostólico do Vaticano, como o ecocídio, a macrodelinquência das corporações, o encarceramento em massa, a apropriação privada de recursos públicos, o lawfare, “perfazem uma esplêndida síntese do que há de mais premente na discussão penalística do mundo atual”, pontua Fábio D’Ávila, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
Segundo ele, que esteve presente no encontro da Associação Internacional de Direito Penal, “o que se pôde perceber, a partir das conversas informais que se seguiram ao discurso do Papa, foi um forte sentimento de entusiasmo”. O pronunciamento do pontífice, assegura, “conforma hoje um documento de referência — de referência instransponível, aliás — a todos aqueles que se dedicam aos grandes temas do direito penal”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Fábio D’Ávila comenta algumas das críticas do Papa ao Direito Penal, como o uso arbitrário da prisão preventiva, que leva ao encarceramento em massa, as práticas de lawfare e os desafios de avançar na direção de uma justiça restaurativa. A crítica do pontífice ao encarceramento em massa, comenta, “é um ponto de particular interesse do direito penal brasileiro, dado o número alarmante de presos provisórios em nosso país. Ao meu juízo, o problema não é tanto normativo, mas sim de mau uso da lei penal. Denota, em realidade, uma grave disfunção do sistema, por meio da qual não raramente se percebe a manipulação de critérios jurídicos em prol de uma suposta maior efetividade da justiça penal. Manipulação que não só se mostra manifestamente ilegal, como é também resultado de uma percepção distorcida e, em alguma medida, até mesmo infantil, dos problemas que assolam a funcionalidade do sistema de justiça criminal”.
Fábio D'Ávila (Foto: Arquivo pessal)
Fábio D’Ávila é mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente leciona Direito Penal na Faculdade de Direito da PUCRS e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da mesma universidade. É representante brasileiro no Grupo Europeu para Iniciativas Jurídicas contra a Criminalidade Organizada (Europäischer Arbeitskreis zu rechtlichen Initiativen gegen die Organisierte Kriminalität) e coordenador da Delegação Brasileira junto ao International Forum on Crime and Criminal Law in the Global Era - IFCCLGE, em Pequim, na China.
IHU On-Line - Em que consistiu o XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal - AIDP, do qual o senhor participou entre 13 e 16 de novembro em Roma?
Fábio D'Avila - A Associação Internacional de Direito Penal é a mais antiga associação científica no âmbito do direito penal, contando hoje com aproximadamente três mil membros e reunindo profissionais e pesquisadores de todo o mundo. A cada cinco anos é realizado um grande congresso internacional, o qual é sempre precedido por colóquios preparatórios. Logo, o XX Congresso da AIDP foi não apenas um encontro científico, mas o coroamento de um longo trabalho, de longos cinco anos de importantes estudos e debates em torno dos cruzamentos entre justiça criminal e as grandes corporações (criminal justice and corporate business).
IHU On-Line - Qual sua avaliação do discurso do papa Francisco em audiência com os participantes do XX Congresso Mundial da AIDP, sobre o tema "Justiça criminal e negócios corporativos”?
Fábio D'Avila - O discurso do Santo Padre impressiona por sua lucidez, equilíbrio e precisão técnica. De pronto, merece destaque a seleção dos pontos abordados. Conquanto sejam incontáveis as problemáticas de relevo hoje carentes de atenção, os temas destacados pelo papa Francisco perfazem uma esplêndida síntese do que há de mais premente na discussão penalística do mundo atual. Segundo, a abordagem conferida demonstrou não apenas um incomum domínio dos elementos jurídico-penais envolvidos, mas uma cuidadosa condução, perpassada por rara lucidez, sabedoria e comedimento. Não tenho a menor dúvida de que o discurso do Santo Padre conforma hoje um documento de referência — de referência instransponível, aliás — a todos aqueles que se dedicam aos grandes temas do direito penal.
IHU On-Line - Qual foi a reação dos participantes do XX Congresso Mundial da AIDP ao discurso do Papa? Eles concordaram integralmente com as sugestões e críticas do Papa ou há pontos de discordância?
Fábio D'Avila - A reação dos participantes não poderia ter sido melhor. Independentemente da religião ou origem — pois, como é de se esperar, éramos um grupo muito heterogêneo —, o que se pôde perceber, a partir das conversas informais que se seguiram ao discurso do Papa foi um forte sentimento de entusiasmo. Entusiasmo pela sensibilidade do Santo Padre em perceber os graves problemas penais relatados, e suas não menos importantes implicações, e pelo grau de humanismo que marcou toda a sua intervenção. Com todos com quem pude falar — é preciso que se diga — o que encontrei foram elogios de todas as ordens, sem pontos de divergência. O discurso do Papa estava, sem dúvida, em harmonia com a percepção de todos que o ouviam. Ao menos essa foi a minha experiência pessoal naquele memorável dia.
IHU On-Line - Os temas levantados pelo Papa no discurso estavam em consonância com os demais temas tratados ao longo do XX Congresso Mundial da AIDP? Como as questões mencionadas pelo pontífice em seu discurso estão sendo discutidas internacionalmente?
Fábio D'Avila - O discurso do Papa Francisco, em si, não foi objeto de debates no XX Congresso da AIDP. Contudo, dentre os pontos destacados estavam justamente a problemática central do encontro, no que toca as relações entre direito penal, mercado e grandes corporações. Em especial, foram mencionados pelo Santo Padre a idolatria ao mercado e os custos sociais, econômicos e ambientais envolvidos, a gravidade dos danos sociais advindos da macrodelinquência corporativa e a questão da tutela jurídico-penal do ambiente diante de fatos que, por sua magnitude, têm sido denominados de ecocídio. Pontos que, como se percebe, tocam diretamente a temática de estudo do XX Congresso da AIDP e que, ademais, têm recebido crescente interesse de penalistas de todo o mundo. As soluções para problemas dessa natureza, contudo, e como se pode imaginar, não são simples. Muito pelo contrário. Elas envolvem um olhar que contemple a complexidade inerente a tais fenômenos e se ocupe delas de maneira pluridimensional. É dizer, não se trata de problemas passíveis de solução nos estritos limites da lei penal e da sua sanção. Demandam, em realidade, um enfrentamento estratégico, a convocar múltiplos olhares e saberes em torno de políticas (criminais e não criminais) verdadeiramente comprometidas com resultados concretos. Enfrentamento, aliás, que se projeta cada vez mais em âmbito internacional e, por sua vez, carente de cooperação na definição de espaços de consenso entre os países.
IHU On-Line - O Papa também criticou o uso arbitrário da prisão preventiva que leva ao encarceramento em massa. Como essa questão especificamente pode ser tratada à luz do Direito Penal?
Fábio D'Avila - Sim. Esse é um ponto de particular interesse do direito penal brasileiro, dado o número alarmante de presos provisórios em nosso país. Ao meu juízo, o problema não é tanto normativo, mas sim de mau uso da lei penal. Denota, em realidade, uma grave disfunção do sistema, por meio da qual não raramente se percebe a manipulação de critérios jurídicos em prol de uma suposta maior efetividade da justiça penal. Manipulação que não só se mostra manifestamente ilegal, como é também resultado de uma percepção distorcida e, em alguma medida, até mesmo infantil, dos problemas que assolam a funcionalidade do sistema de justiça criminal.
IHU On-Line - Outro ponto citado pelo Papa são os casos de lawfare. Como esse tema tem sido discutido pela comunidade internacional?
Fábio D'Avila - Casos de lawfare não consistem em algo novo na história do direito penal. Contudo, a especial gravidade de tais casos nos dias de hoje diz respeito, por um lado, à impressionante vulnerabilidade que os institutos democráticos têm revelado diante de tais fenômenos. Por outro, diante do forte e massivo recrudescimento do discurso extremista ao redor do mundo, de que têm sido vítimas os mais variados povos, mas que, por razões óbvias, têm feito sofrer, de modo muito particular, democracias como a brasileira, ainda muito imaturas e especialmente frágeis. É preciso estar alerta a esse preocupante movimento e pronto a reagir, sempre que necessário, de modo a assegurar a continuidade dos direitos humanos e das garantias fundamentais, a tanto custo conquistadas.
IHU On-Line - O Papa concluiu seu discurso fazendo referência à necessidade de o Direito Penal avançar em direção à justiça restaurativa porque, segundo ele, “entre a pena e o crime existe uma assimetria e que a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor”. Concorda com essa compreensão? Como o Direito penal pode permitir que se faça justiça à vítima em todos esses casos que o próprio Papa critica?
Fábio D'Avila - Também nesse importante aspecto, é preciso reconhecer razão ao discurso do Santo Padre. Em termos históricos, o direito e o processo penal têm negligenciado a vítima, sob o argumento de uma justiça penal “pública”. Essa forma de ver as coisas, todavia, já não se revela suficiente e, nem mesmo, adequada. O movimento em prol da denominada justiça restaurativa é, nesse contexto, o mais importante desenvolvimento das ciências penais e vem ganhando, a cada dia, novos adeptos. Outros caminhos, porém, também se mostram possíveis e necessários. Tanto no processo penal quanto no direito penal material têm se buscado formas alternativas de reposicionar o papel da vítima na solução do conflito penal, perfazendo, em seu conjunto, uma certa tendência, na qual é preciso dar voz à vítima e, até mesmo, antes disso, voz ao diretamente interessado no valor tutelado pela norma.