16 Dezembro 2019
Um artigo publicado em 11 de dezembro pelo Wall Street Journal, escrito por Francis X. Rocca, tem um título provocativo e mesmo chocante: “Vatican Uses Donations for the Poor to Plug Its Budget Deficit” (O Vaticano usa as doações aos pobres para suprir o seu deficit orçamentário). Focalizando o Óbolo de São Pedro, coleta de doações em nível mundial voltadas às necessidades das obras caritativas do papa, o artigo afirma que apenas 10% da ajuda anual, que a publicação estima em U$ 55 milhões (número que era maior em anos anteriores), vão para as obras de caridade e que dois terços do dinheiro é usado para cobrir o crescente deficit financeiro do Vaticano.
A reportagem é de Colleen Dulle e James T. Keane, publicada por America, 12-12-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Estaria o Vaticano enganando os doadores do Óbolo de São Pedro? O sítio eletrônico da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos explica a finalidade deste trabalho de caridade, normalmente realizado nas paróquias americanas na última semana de junho, nos seguintes termos: “Hoje, a Coleta do Óbolo de São Pedro apoia a filantropia do Papa ao dar ao Santo Padre os meios para prestar assistência emergencial aos necessitados em decorrência de desastres naturais, guerra, opressão e doença”.
O próprio Vaticano é mais circunspecto em sua descrição desta obra de caridade. “É aquilo que cada fiel sente que pode entregar ao Papa para que ele provenha as necessidades de toda a Igreja”, afirma o sítio eletrônico do Vaticano dedicado ao Óbolo de S. Pedro, “especialmente ali onde há uma maior dificuldade”. Além disso, as obras de caridade do papa “tem como extensão toda a humanidade, a cujo serviço estão as estruturas da Igreja. Portanto, o Óbolo também contribui para sustentar a Sé Apostólica e as atividades da Santa Sé”.
Um outro sítio mantido pela Secretaria de Estado do Vaticano acrescenta outros detalhes:
“As ofertas que os fiéis dão ao Santo Padre destinam-se a obras eclesiais, a iniciativas humanitárias e de promoção social, e também para a sustentação das atividades da Santa Sé. E o Papa, enquanto Pastor da Igreja inteira, preocupa-se também com as necessidades materiais de dioceses pobres, institutos religiosos e fiéis em graves dificuldades (pobres, crianças, idosos, marginalizados, vítimas de guerras e desastres naturais; ajudas particulares a Bispos ou Dioceses em necessidade, educação católica, ajuda a refugiados e migrantes, etc.).”
O fato de o Vaticano usar os fundos do Óbolo de São Pedro para equilibrar o seu orçamento dificilmente foi um segredo fortemente guardado, no entanto. Em seu livro de 1992 intitulado A Flock of Shepherds (Um rebanho de pastores, em tradução livre), o padre jesuíta Thomas J. Reese, ex-editor-geral da revista America, descreve o Óbolo de São Pedro como uma “coleta em nível mundial que auxilia o papa em seu serviço à Igreja inteira. Em 1989, U$ 13,6 milhões foram arrecadados nos EUA. Este dinheiro costumava ir às entidades de caridade do papa, mas hoje ajuda a equilibrar o orçamento do Vaticano”. Em seguida, Reese cita o Cardeal John Krol, da Filadélfia, quem trabalhou para arrecadar dinheiro para o Vaticano, segundo o qual “começou-se pegando um pouco do Óbolo de São Pedro, então mais e mais, e depois tudo” para equilibrar o orçamento. O déficit deveria ser coberto por fontes alternativas, disse o cardeal, e “o dinheiro do Óbolo deveria voltar ao papa na ajuda aos pobres”.
Quando contatado para este artigo, Reese comentou que “sem o Vaticano ser mais transparente em suas finanças, não temos como julgar a verdade do que afirma a publicação [da Wall Street Journal], mas sabemos que, no final nos anos 1980, o Óbolo de São Pedro era usado para equilibrar o orçamento”.
O Papa Bento XVI considerou o Óbolo de São Pedro como “a expressão mais emblemática da participação de todos os fiéis nas iniciativas de caridade do Bispo de Roma a bem da Igreja universal”, em um discurso de 2006 reproduzido no sítio eletrônico da Secretaria de Estado. “Trata-se de um gesto que se reveste de valor não apenas prático, mas também profundamente simbólico enquanto sinal de comunhão com o Papa e de atenção às necessidades dos irmãos”.
O próprio Papa Francisco já defendeu o modo como o Vaticano gere o fundo, descrevendo-o como uma “boa administração”. Durante uma coletiva de imprensa a bordo do avião que o trazia de sua visita apostólica ao Japão em novembro deste ano, uma jornalista italiana pediu ao papa que comentasse sobre o uso das finanças vaticanas para adquirir propriedades multimilionárias em Londres. Ela falou que as pessoas ficam “um pouco confusas com este emprego das finanças do Vaticano, em particular quando o Óbolo de São Pedro está envolvido”. Em seguida, perguntou se Francisco tinha ciência de tais operações financeiras e “se, em sua opinião, a maneira como o Óbolo de Pedro está sendo usado é correta?”
“Chega a soma do Óbolo de São Pedro. O que eu faço, coloco na gaveta? Não, isso é má administração!”, disse Francisco. “Procuro fazer um investimento e quando preciso doar, quando há necessidade, em um ano, pega-se (o dinheiro) e esse capital não se desvaloriza, se mantém ou cresce um pouco. Esta é uma boa administração”.
“E, sim”, continuou Francisco, “Pode-se comprar também uma propriedade, alugá-la e depois vendê-la, mas com segurança, com todas as seguranças para o bem das pessoas do Óbolo.
O Óbolo de São Pedro deriva o seu nome de um costume inglês do século IX iniciado pelo rei Alfredo, o Grande, quem coletava dinheiro dos proprietários de terras como apoio financeiro ao papa. Depois, o dinheiro adveio das taxas matrimoniais, funerais e confirmações. As primeiras coletas do Óbolo de S. Pedro também incluíam taxas especiais para financiar as Cruzadas. Ao longo dos séculos essa prática se enfraqueceu, especialmente depois da Revolução Francesa, quando o papado se viu no ponto mais baixo de suas fortunas políticas.
Em 1870, enquanto o Risorgimento italiano unificava a Itália, o Vaticano perdeu propriedades e bens em níveis significativos. “A pauta do Risorgimento italiano baseava-se na destruição do poder temporal do papado”, escreve o padre jesuíta Jeffrey von Arx em artigo publicado na revista America, “ou na governança que o papa tinha dos Estados papais, sobre a qual presumivelmente se encontravam a independência política do papado e sua posição enquanto ator internacional”.
Com o Papa Pio IX, o Vaticano começa a incentivar um renascimento do Óbolo de São Pedro em todo o mundo católico. Em italiano, era conhecido por “Obolo di San Pietro” (ofertas dos fiéis), e a coleta era para ser usada não apenas nas obras de caridade como também para as despesas operacionais diárias do Vaticano. Em God’s Bankers: A History of Money and Power at the Vatican (Os banqueiros de Deus: uma história do dinheiro e poder no Vaticano, em tradução livre), Gerald Posner apresenta uma visão altamente crítica dos motivos e métodos o papa: “Não só Pio precisava de dinheiro para sobreviver, mas a Igreja também exigia um exército profissional para proteger o pouco que lhe havia restado” depois da perda dos Estados papais.
“Os pobres e os sem instrução foram induzidos a doar ouvindo histórias de que os inquisidores italianos tinham acorrentado o papa em uma prisão. Uma dessas fraudes chegou a vender “palha sagrada” do piso da cela que não existia”, escreve Posner. “Católicos de diferentes países competiam entre si para ver quem levantava mais recursos”. O papa enviava fotos assinadas, títulos e bênçãos aos maiores doadores.
Começando nos idos de 1880, o Papa Leão XIII iniciou investindo o Óbolo de S. Pedro em propriedades romanas para tirar um melhor retorno, o que deu certo para a estabilização das finanças vaticanas. Mas as doações ao Óbolo de São Pedro diminuíram com a Grande Depressão e permaneceram baixas durante a Segunda Guerra Mundial. O total anual subiu para U$ 15 milhões com o Papa João XXIII, mas novamente quedou, para U$ 4 milhões, na época da morte do Papa Paulo VI em 1978. Em 1992, mais da metade do papado de João Paulo, a coleta anual arrecadou U$ 67 milhões. O montante elevou-se de novo nos primeiros anos dos papados de Bento XVI e Francisco. Condições econômicas e a percepção pública do papado, em outras palavras, desempenharam um fator no sucesso do Óbolo de São Pedro – indicador um tanto ominoso para o Vaticano na medida em que a Igreja enfrenta escândalos contínuos relativos a abusos sexuais e improbidade financeira.
Depois dos anos 2000, o Óbolo de S. Pedro cessou de ser uma colega inteiramente feita em dinheiro vivo, com o Vaticano passando a permitir pagamentos com cartões de crédito e transferências bancárias como contribuições para o fundo. Hoje, ele também encoraja a realização de doações on-line.
Segundo a publicação no The Wall Street Journal, não mais do que um quarto das contribuições anuais do Óbolo de São Pedro fica disponível para investimentos, depois que o montante é gasto nos custos operacionais do Vaticano, de acordo pessoas familiarizadas com o fundo”. (Nenhuma fonte é identificada no artigo, com a política vaticana que geralmente pede que os clérigos evitem ser nomeados como fontes de notícia.) Este número contrasta com as diretrizes gerais para entidades de caridade e organizações sem fins lucrativos ao redor do mundo, onde os custos indiretos são analisados por grupos especializados e especialistas em contabilidade industrial. Por exemplo, nos EUA o Better Business Bureau recomenda que uma organização sem fins lucrativos gaste “no mínimo 65% do total de suas despesas em atividades do programa”.
A Charity Navigator, importante entidade americana avaliadora de organizações de caridade, elogiou a Fundação Rotária, do Rotary Internacional, por empregar, no ano passado, 90,6% dos seus gastos totais em seus programas e serviços “que são sua razão de ser”. “Os nossos dados mostram que 7 a cada 10 entidades de caridade que avaliamos gastaram, pelo menos, 75% dos seus orçamentos em programas e serviços. E 9 a cada 10 gastam, pelo menos, 65%”, explica a Charity Navigator em seu relatório intitulado Financial Efficiency Performance Metrics. “Acreditamos que aqueles que usam menos do que um terço de seu orçamento nos gastos com os programas não estão vivendo para a missão a que se propõem. As entidades caritativas que demonstram uma tal ineficiência recebem 0 pontos e uma avaliação de 0 estrela para a sua Saúde Financeira”.
Mas é a Santa Sé realmente comparável a uma organização sem fins lucrativos ou a entidades tradicionais de caridade? Professor de direito a Universidade de Notre Dame, Rick Garnett criticou duramente o artigo como se este estivesse comparando coisas sem relação entre si. “A operacionalização da Santa Sé – que supervisiona o maior empreendimento de caridade na história humana – custa dinheiro, e os católicos deveriam se dispor a contribuir no pagamento destes custos”, tuitou Garnett na quarta-feira, dia 11, acrescentando que “não admito que (a) o papa usar as contribuições para pagar os custos da Igreja é significativamente análogo a (b) uma entidade de caridade usar as contribuições para pagar os administradores”.
Além disso, o Papa Francisco pode ter sido o primeiro papa em muitos anos a abordar os problemas associados ao Óbolo de São Pedro. Biógrafo papal e jornalista que escreve para a revista America, Austen Ivereigh observou, em seu recente livro Wounded Shepherd (Pastor ferido, em tradução livre), que, dentro de meses desde sua eleição, “Francisco criticou aquilo que chamou de uma mentalidade ‘nouveau riche’, uma cultura que visa o benefício próprio e de uma falta de cuidado a respeito dos custos que devoram a receita do Óbolo de São Pedro, a qual deveria ser usada pelo papa para ajudar os necessitados, não suprir o deficit orçamentário”.
Ivereigh também atribui ao Cardeal George Pell, que Francisco nomeou para fazer uma limpeza nas finanças vaticanas, a introdução de “padrões profissionais de contabilidade, bem como orçamentos oportunos e confiáveis” no Vaticano. (Pell, condenado após acusações de abuso sexual em Melbourne em abril de 2019, está preso na Austrália. Ele está recorrendo da condenação.) Embora o desperdício financeiro tenha se reduzido, Ivereigh observa que em 2017 Pell se queixou de que “a porção do Óbolo de São Pedro sendo usado para subsidiar o deficit ainda era grande”.
Os projetos que o Vaticano anuncia como “obras realizadas” pelo Óbolo em 2019 incluem um repasse de 100 mil euros em ajuda humanitária para Albânia após o terremoto que atingiu o país em 2019; uma outra doação de 100 mil euros para a Caritas Hellas, na Grécia, em apoio aos que buscam asilo e a refugiados; a renovação e a expansão de um hospital infantil na República Centro-Africana; uma doação de U$ 50 mil para ajudar os sobreviventes dos dois terremotos de 2015 ocorridos no Nepal; um repasse de U$ 500 mil em apoio a migrantes no México; 100 mil euros a populações atingidas por enchentes no Irã; 150 mil euros em apoio aos que tiveram a vida devastada por um ciclone que atingiu Moçambique, Zimbábue e Malaui; e U$100 mil para os sobreviventes do terremoto de 2018 na Indonésia.
Devido a revelações de abusos sexuais bem como aos recentes escândalos financeiros mencionados acima, o Vaticano deverá receber fundos inferiores no Óbolo de São Pedro do próximo ano, embora continuará sendo o principal veículo para o papa fornecer ajuda humanitária.
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Estaria o Vaticano enganando doadores? Explicando o Óbolo de São Pedro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU